O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
Eixo temático 2 – Ato analítico e tempo
Daniela de Camargo Barros Affonso (EBP/AMP)
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri (EBP/AMP)
Valéria Ferranti (EBP/AMP)

“O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece”[1]. Ao apontar o paradoxo, o poeta nos leva a mergulhar no enigma que faz do tempo um mistério sempre investigado pela humanidade. Bergson, lembra Jorge Luis Borges[2], disse que o tempo era o problema capital da metafísica e que, depois dele resolvido, ter-se-ia resolvido tudo. “Que é o tempo?”, perguntava Santo Agostinho, para responder: “Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, eu ignoro”. Este mesmo filósofo se debatia diante da dúvida: dizia que sua alma ardia por querer saber o que é o tempo e pedia a Deus que lhe revelasse a resposta. Não por vã curiosidade, arrisca Borges, mas porque ele não podia viver sem saber isso.
Para Borges, as indagações sobre o tempo levaram a mais bela invenção do homem: a eternidade. Sobre ela, diz: “A eternidade não é a soma de todos os nossos passados. A eternidade é todos os nossos tempos passados, todos os tempos passados de todos os seres conscientes. Todo o passado, esse passado que não se sabe quando começou. E, naturalmente, todo o presente. Este momento presente que engloba todas as cidades, todos os mundos, o espaço entre os planetas. E, é claro, o futuro. O futuro, que ainda não foi criado, mas que também existe”.
É certo – e isso todos podemos testemunhar – que a vivência consciente do tempo é variável. Experiências de alegria e satisfação, fazem-no parecer voar; de sofrimento ou tédio, tornam-no lento, quase congelado. De qualquer forma, o tempo marca uma sequência: um antes, um agora e um depois. O passar do tempo é a sua complexidade, pois o futuro deixa de ser futuro quando se torna presente e este, imediatamente, torna-se passado. Para Plotino, citado por Borges, há três tempos, e os três são o presente: o presente atual, em que falo; o presente do passado, chamado memória, e o presente do futuro, imaginado pela esperança ou pelo medo. Pode-se deduzir do postulado de Plotino que, para ele, o tempo é essencialmente presente.
Do que fala a psicanálise quando fala do tempo? Nada mais subvertido na psicanálise do que o tempo. É assim que Freud, na célebre carta 52 a Fliess, institui uma nova temporalidade, a da retroação: “um evento sexual ocorrido numa fase determinada atua sobre a fase seguinte como se fosse um evento atual e, por conseguinte, não é passível de inibição”[3]. Exemplificado no caso Emma, o trauma se dá numa lógica retroativa da temporalidade, na medida em que um acontecimento só é traumático em referência a outro anterior, ressignificado retroativamente. Um segundo evento recorda a inscrição de uma satisfação sexual, inaceitável pela consciência, de um primeiro evento, fazendo despertar a defesa patológica.
Sobre o nachträglich freudiano, Lacan diz que “anula os tempos para compreender em prol dos momentos de concluir, que precipitam a meditação do sujeito rumo ao sentido a ser decidido do acontecimento original”[4]. É possível notar, portanto, o caráter atemporal do inconsciente freudiano. Este caráter atemporal, sublinha Miller[5], refere-se ao inconsciente como sujeito suposto saber. Mas se o inconsciente não conhece o tempo, a libido, ao contrário, o conhece. O gozo tem uma temporalidade: uma temporalidade da resolução, quando se satisfaz, e da tensão, quando não há satisfação. Mas do lado feminino não se pode dizer o mesmo, pois este, afirma Miller, se caracteriza pela exigência de que na passagem do tempo o amor substitua o gozo. Pois não seria, afinal, a diferença do tempo no masculino e no feminino que impossibilitaria a existência da relação sexual?
Enquanto o status temporal do sujeito barrado, do inconsciente, está na temporalização do par significante, num presente instantâneo, entre S1 e S2, e, portanto, é evasivo, fugaz, evanescente, o presente do objeto a tem certa espessura. É o corpo que suporta esta espessura, daí Lacan acrescentar ao status do sujeito, o de falasser. “O falasser não é um sujeito, é o corpo como falante. O corpo, que é a sede de um sujeito, a sede do significante, mas que tem sua consistência, sua duração e seu lugar próprios”, conclui Miller.
Lacan levou às últimas consequências a subversão do tempo padrão no tratamento, feita por Freud, utilizando outro temporizador que não o relógio: o ato do psicanalista, marcando assim uma nova temporalidade nos tratamentos. Em “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”[6], o ato analítico estaria inserido num tempo caracterizado pela precipitação do ato, no momento de concluir. O que se precipita aí? O instante de ver é um instante sem duração. A diferença entre o instante de ver e o tempo de compreender é que o segundo se trata justamente de uma duração, de um tempo que transcorre. Um tempo de elaboração, de espera, e, portanto, um tempo subjetivo, histórico, diacrônico, em que os acontecimentos contam, e que dá lugar a um antes e um depois. Já o tempo de concluir é o tempo da precipitação da ação. O ato do psicanalista é o demarcador da temporalidade que interessa à psicanálise na direção do tratamento.
Ram Mandil[7] considera que pensar o tempo na lógica é uma das primeiras tentativas de Lacan em articular o campo simbólico ao campo das forças da libido. A presença do elemento libidinal, diz Mandil, se revela no sofisma dos três prisioneiros pela desregulação temporal que produz. Neste sofisma, o tempo não corre de maneira uniforme. As três modalidades de tempo – o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir – indicam uma “tensão temporal” em que o momento de concluir seria a “descarga”. Vê-se uma referência ao circuito tensão/resolução que acompanha a dimensão quantitativa do princípio do prazer.
Para Lacan, indica Mandil, é na resolução desta tensão temporal que está o ato. No sofisma dos três prisioneiros, nenhuma dedução lógica permitiria a qualquer um deles chegar a uma “asserção subjetiva”, uma afirmação sobre si mesmo, sem a interposição de um ato. Por isso, não é a certeza lógica que produz a conclusão, mas o ato de conclusão que produz uma certeza, a partir da qual o sujeito poderá fazer uma afirmação.
Miller trabalha o ato analítico como o que retira o sujeito da eternidade da neurose e promove uma subversão do tempo. Exemplo claro da eternização do tempo na neurose é a procrastinação do obsessivo, que goza ao postergar ao máximo a realização de desejo. Miller retrata a sessão analítica como “um lapso de tempo absolutamente especial, em que o sujeito é levado a fazer a experiência pura da reversão temporal”. Nesse âmbito, a interpretação não pode ser dita em qualquer momento ou em qualquer contexto, ou seja, ela se inscreve numa modalidade temporal específica: a surpresa. É um momento não homogêneo, imprevisto, após o qual todas as condições prévias a ele são perturbadas, apagadas, remanejadas.
Sergio Laia, em seu testemunho “Tempo que para, tempo que flui”[8], demonstra como a análise lhe permitiu fazer a passagem entre um tempo que para (e, portanto, se eterniza) e um tempo que flui. Conta que foi para a última temporada de sua análise sem nenhuma expectativa de chegar ao fim e que poderia permanecer nela a vida inteira, sem pressa e sem precipitação para sair. Contudo, um sonho e a intervenção do analista mudam o rumo das coisas. Após relatar o sonho ao analista, este lhe diz: “Olhe as horas… o tempo passa”. E ele, surpreso, lhe fala: “parece que nasci com essas palavras”. A sessão é cortada e, na porta, ainda escuta do analista: “o tempo, é isso o traumático”. Agora, é de outro ato que se tratava: a passagem de analisante a analista. A partir daí, conclui Laia, cabia a ele, “experimentando de outro modo o objeto a, deixar escoar a trama e o gozo para viver, como nunca me havia acontecido, o tempo fluir”. Como lembra Borges, referindo-se a Heráclito: “somos (…) algo cambiante e algo permanente. Somos essencialmente misteriosos”.