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Paola Salinas (EBP/AMP)

O tabu da virgindade é abordado e justificado devido à hostilidade e ao desejo de vingança que o defloramento provocaria. Ao desenvolver correlações sobre o tema, Freud destaca a frigidez como aspecto importante na vida sexual da mulher, articulando ao Édipo e ao complexo de castração. Associa tal hostilidade, na base do tabu, à inveja do pênis e ao protesto de masculinidade.

A valorização da virgindade seria a extensão do direito de propriedade à mulher, incluindo seu passado, o que é natural e indiscutível para o homem da época; daí a incompreensibilidade do tabu presente nos povos primitivos, os quais, para evitar a hostilidade do defloramento, o fariam em rituais antes do casamento.

Tal valorização se associa à servidão sexual, dependência de uma pessoa com quem há envolvimento sexual, base do matrimônio, explicada em função da repressão sexual feminina, chegando ao sacrifício dos interesses pessoais.

Contudo, tal valorização também ocorre nos povos primitivos, ao ponto do defloramento ter se tornado tabu, proibição de cunho religioso frente à presença de um perigo, ainda que psicológico, segundo a definição freudiana.

Freud toma o horror à efusão de sangue e a angústia frente a todo ato primeiro, como possíveis motivos para o tabu. Contudo, destaca a importância do defloramento em relação à resistência sexual vencida e o fato de ocorrer apenas uma vez. Estamos diante de um acontecimento intenso e único, que tem o peso de um ato.

Este ato traz uma nova significação pelo furo no saber que engendra, presença de algo incompreensível e inquietante, por vezes tratado em rituais de passagem.

Crawley fala da abrangência do tabu em quase toda a vida sexual: “quase poderia se dizer que a mulher é um tabu em sua totalidade. Não somente em situações derivadas da sua vida sexual, menstruação, gravidez, parto e puerpério”2, exemplificando pela necessidade de afastamento das mulheres, em alguns povos, na época de caça, guerra ou colheita.

Verificamos nesse afastamento um temor fundamental à mulher. Esta ocupa o lugar de enigma, e algo disso persiste. A mulher encarna tal diferença em seu corpo.

Neste ponto, Freud fala do narcisismo das pequenas diferenças: “cada indivíduo se diferencia dos demais por um tabu de isolamento pessoal que constitui as pequenas diferenças entre as pessoas, que quanto ao restante são semelhantes, e constituem a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles”3. Poderíamos hipotetizar a repulsa narcisista à mulher.

Embora Freud diga que o tabu com a mulher em geral não esclarece o tabu da virgindade, abre uma questão sobre o lugar do feminino.

Os motivos levantados não explicam o tabu, a intenção de negar ou evitar ao marido algo que seria inseparável do primeiro ato sexual, mesmo que dali surja uma ligação intensa da mulher com o marido.

A gênese do tabu tem uma ambivalência original, que podemos articular à alteridade que a mulher representa. A relação entre o primeiro coito e a frigidez, estaria de pleno acordo com o perigo psíquico que o defloramento traz à tona. O gozo, pelo avesso, a frigidez, marca um funcionamento pulsional outro, articulado à proibição frente à sexualidade feminina.

Freud destaca a ofensa narcísica que o coito pode assumir pela destruição do órgão (hímen) e pela perda do valor sexual da mulher dele decorrente. Com maior importância fala do poder da distribuição inicial da libido, a fixação intensa da libido em desejos sexuais infantis. Nas mulheres, a libido estaria ligada ao pai ou ao irmão, sendo o marido sempre um substituto.

Destaca a inveja do pênis anterior à fase da escolha do objeto amoroso, mais próxima do narcisismo primitivo do que do objeto de amor. Haveria, portanto, algo do narcisismo feminino em jogo nesta hostilidade, hipótese que podemos aprofundar.

__________________________ 1 FREUD, S. “O tabu da virgindade (Contribuições à psicologia do amor III) (1918 [1917]). In: Edição Standard. Vol. XI, Imago: Rio de Janeiro. 1970. 2 _______. Op. Cit. P. 183. N.A.: Freud refere-se à Crawley (1902), Ploss and Bartels (1891), Frazer (1911) e Havelock Ellis [1913]. 3 _______. Op. Cit. P. 184.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – INTER-DITOS #05

Imagem: Instagram @mam.rio

VERBETE EPISTÊMICO:

A interpretação analítica alcança o além do princípio do prazer?

“A potencialidade infinita do discurso livre põe apenas como único limite ao gozo o princípio do prazer. O limite da interpretação deve ser outro […] Em vez de recorrer ao princípio do prazer e às suas possibilidades indefinidas, trata-se de introduzir a modalidade do impossível como limite”. (LAURENT, E. “O além do falo, a desordem do ilimitado”. Opção lacaniana, nº. 84, 2022, p. 71)

Em relação ao conceito de aparola – a fala, mais como monólogo e menos como comunicação – Laurent discorre sobre a forma de incidir a interpretação analítica. Penso que aqui vamos em direção à análise como poética. É o corpo que goza, enquanto um absoluto, que não tende ao infinito da representação; uma espécie de ponto zero. Nessa lógica, que conduz ao além do princípio do prazer, a interpretação analítica entra como uma espécie de escritura de um monólogo, ou de uma boa leitura de uma escritura já posta? O filme “Adeus à linguagem”, do Godard, em meio a uma mistura de frases soltas, imagens com alto contraste e ruídos, nos lança ao universo da linguagem como um jorro, que me ilumina a algo da escuta do além da representação e do recalque. Passando uma ideia de pureza, além e aquém da ficção, o encontrar se sobrepõe ao procurar. ((Marcella Pereira de Oliveira – Associada ao CLIN-a)

Bibliografia:

Eixo 1: O amor à verdade e as entrevistas preliminares

SINATRA, Ernesto

  • Las entrevistas preliminares y la entrada en análisis, 1ª ed. 1ª. reimp. Buenos Aires: Colegio Epistemológico y Experimental, 2010.

“[…] ele já tinha me fornecido uma chave que, como analista, era preciso recorrer: ‘não me diga o que eu já sei, porque não me serve para nada, porque outro já me disse isso’; tal a enunciação de – o que agora podemos interpretar como – sua advertência ao analista.

Neste exemplo, por este detalhe, se considera uma questão crucial: vocês comprovam como o valor de verdade verdadeira de um enunciado pode ser absolutamente ineficaz, como pode passar – absolutamente – ao largo quando formulado de modo interpretativo. Com o qual, já estamos sensibilizados a respeito do valor que a verdade tem em análise; estamos preparados para comprovar o modo como um analista pode perder a bússola, caso se fie na verdade como mestre absoluto”, p. 20.

TROBAS, Guy

  • “Entrevistas prelimanares na clínica psicanalítica com crianças”. Opção lacaniana, nº 84. São Paulo: Eolia, 2022.

“[…] em minha prática, quando um dos pais me chama, já lhes indico que quero, em um primeiro tempo, ter uma entrevista com ambos, pelo menos, se for possível. […] em primeiro lugar, parece-me adequado que o primeiro passo se dê sem a criança, sem colocá-la em uma posição de objeto do qual se fala. Em segundo lugar, esta entrevista somente com os pais ou com um deles é o que permite uma liberdade maior da palavra e a possibilidade de interrogar e esclarecer a história familiar. […] para ter uma ideia da função do sintoma da criança com relação à verdade do casal e até do acesso que nossos interlocutores, ou somente um deles, têm ou não a essa verdade”, p. 144.

Eixo 2: Transferência: paradoxos entre saber, amor e gozo

FUENTES, Maria Josefina Sota

  • “Quando se estraga a função paterna”. Carta de São Paulo – Revista da EBP Seção São Paulo, Ano 25, nº1, 2018.

“Como estrago sob transferência, tudo vacilava, os semblantes desaguavam e a areia tornou-se movediça, de tal modo que não encontrei outro limite senão a ruptura do laço transferencial.

[…] Diante desse horror ao qual eu reduzira o dispositivo da análise – ao gozo de viver morrendo e de morrer no há-mar a mère que me protegeria com seu desejo da dor da inexistência, com um desejo que por fim me parisse – digo basta, minha análise acabou! […] Nada mais a esperar do inconsciente transferencial, que desmancha como um castelo na areia diante da imensidão do real que então ex-siste como um sinthoma, ao qual somente o ato analítico servirá de limite”, p. 148-151.

LEGUIL, Clotilde

  • “O novo amor, um amor que faz ponto de basta”. Correio : Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº 87, 2022.

“Se uma análise se funda sobre o amor, ela também transforma a relação com o amor na existência e na relação com o Sujeito Suposto Saber que somos nós. […] Para além do pai, o novo amor se articula a este inconsciente real, ‘isto que se lê antes de mais nada’. […] é quando se findam os amores com a verdade que se tem algo como um axioma: alguma coisa vem se escrever, mas sobre a qual não há muita coisa a dizer”, p. 115-121.

Eixo 3: A mentira verídica e a interpretação na experiência da psicanálise

MILLER, Jacques-Alain

  • “Do amor à morte. Opção lacaniana online nova série, Ano 1, nº 2, 2010.

“Somente no final de sua análise, no momento de dar a volta, é que o sujeito poderá saber que tudo o que falou no transcurso de sua análise, a referência de suas palavras, é aquilo representado no quadro de Holbein como a caveira, ou seja, a verdade de que se trata no circuito do gozo”, p. 15.

TELLES, Heloísa Prado Rodrigues da Silva

  • “Sonho, verdade e real: o que se impõe, o que se revela”. Papers, nº 4, Sonho, real, verdade.

“(…) a verdade não resulta como efeito da intervenção do analista, como a produção de um sentido a mais; a verdade é o que irrompe e se rompe, sob transferência, ao se consentir com o inconsciente. Tratar-se-ia mais propriamente do que encontramos no Seminário XIV: ‘em última instância, a verdade é o que deve ser buscado nas falhas do enunciado’, ou seja, naquilo que a estrutura do inconsciente produz”, p.8.

Eixo 4: O cogito lacaniano e o corpo que se goza

MURTA, Alberto

  • “Um psicanalista é um sinthoma”. Lacan XXI. Revista FAPOL online, vol. 1, 2020. Disponível em: Um psicanalista é um sinthoma : Lacan21

“[…] a prática da análise não é somente uma prática da interpretação; que o esbarrar no incurável do gozo como vital pode constituir o que se gasta na redução. […] Diante do encontro como esse gozo inerente ao real fora-sentido, como passar por ele, sendo errante e navegante? Na experiência de fim de análise do falasser a condição de errante é arrolada no funcionamento do sintoma. O tornar-se tapeado pelo real comparece como via aberta. Lacan indica a desvalorização da opacidade desse gozo. Essa desvalorização supõe, na análise, o recurso ao sentido. A chance de isso acontecer tem como condição, o se fazer tolo do pai. Desbastando a opacidade do gozo inerente ao sintoma, o falasser permite o se fazer ‘tapear … pelo pai’”.

ULLOA, Raquel Cors

  • “Um final que nasceu do real”. Opção lacaniana, nº 83. São Paulo: Eolia, 2021

“Como um pesadelo me ensinou, logo após pular o muro, restando em mim: ‘Algo que nunca deixou de se tomar pelo pior’. Saltar, Soltar, Sair, com um corpo solto do pesado gozo que havia. E, passar ao gozo simples e vital, de uma alegria leve que já não se engancha ao sintoma do qual sofria pelo fato de ‘ser um peso para o Outro’, isto foi e continua sendo uma transformação que se sente como uma certa satisfação de não ser mais do que isso…”, p. 96.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – INTER-DITOS #04

Imagem – Instagram: @montoro12_brussels
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VERBETE EPISTÊMICO:

Para além dos embrulhos da verdade, o real.

“É preciso esquecer que, precisamente, onde isso fala isso mente, e depois não se encontra mais. Daí a propriedade que Lacan em seu avesso confere ao verdadeiro, a saber: o verdadeiro se embrulha. Disso decorre a tese: o real se encontra nas embrulhadas do verdadeiro. Na análise, isso faz o real depender do esforço para dizer o verdadeiro, ou seja, embrulhar-se nele. Essa tese é a justificativa da análise.” (MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 114)

A direção de nossa clínica pelo real não se dá sem o encontro com as vicissitudes da verdade e sua impossibilidade de totalização: uma trajetória, tal qual um emaranhado, onde o próprio movimento em busca do verdadeiro é causa da perda de sua autenticidade. Seria a justificativa da análise servir-se da verdade, sob a condição de dispor dela? (Armando Adurens – participante da Comissão de Referências Bibliográficas e Livraria)

VERBETE CLÍNICO:

“O curioso é constatar como a psicanálise se obriga, como que de modo próprio, a reconhecer o sentido daquilo que a letra, no entanto, diz ao pé da letra, seria o caso de dizer, quando todas as suas interpretações se resumem ao gozo e o saber, a letra constituiria o litoral”. (LACAN, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semelhante. Rio de Janeiro: Zahar, DATA, ano, p. 109-110)

Os desdobramentos da verdade, como frutos das operações de metonímia e metáfora, começam a sua queda do paraíso. Aquele que outrora era o recanto da interpretação para Lacan passa pelo outono do seu ensino. As falhas, fall, as quedas, indicam um fim da equivalência entre a letra e o significante e novas cores germinam no ensino de Lacan. A letter, a litter, são os sopros que vem da Irlanda. (Magno Azevedo, Associado ao CLIN-a)


Bibliografia:

Eixo 1: O amor à verdade e as entrevistas preliminares

MILLER, Jacques-Alain

Uma psicanálise tem estrutura de ficção, in Aposta no passe: seguido de 15 testemunhos de Analistas da Escola Brasileira de Psicanálise; organização e tradução de Ana Lydia Santiago – RJ, Contra Capa, 2018, p.95.

“Uma análise que se inicia ocorre em uma atmosfera de revelação. Ela não necessariamente se inicia quando se estabelece um processo de encontros regulares, mas ela se desenvolve como fogos de artifício de revelações, a partir do momento em que o sujeito se esforça em fazer passar o acontecimento de pensamento para a fala. O amorfo dá lugar à articulação de elementos individualizados, que desse modo se mostram rastreáveis, para empregar um termo de nossos dias, demarcando-se que eles provêm de um antes – em geral, da infância – e retornam.”


Eixo 2: Transferência: paradoxos entre saber, amor e gozo

MARIAGE, Véronique

Versões do amor na experiência psicanalítica. Revista Curinga n. 24, BH, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais, junho 2007.

“Lacan, em continuidade com Freud, considera que o desejo do analista não consiste em destruir o amor de transferência, mas antes em servir-se dele, em situar-se em uma posição que o analisante se desaloje do abrigo que constitui esse amor para ele. Para além do amor, trata-se de fazer perceber o real. Para o analista, trata-se de fazer com que o amor de transferência se consuma até ao ponto último, no qual o real é vislumbrado. Esse real é condição das relações do sujeito com o gozo.”


Eixo 3: A mentira verídica e a interpretação na experiência da psicanálise

FERNANDES, Carla

  • “A verdade, o verdadeiro e o real”. Agente: Revista de psicanálise/Escola Brasileira de Psicanálise/Seção Bahia, nº 19. Salvador: EBP/BA, 2021.

“A noção de verdade se modifica ao longo do ensino de Lacan. […] ‘quanto mais irrompe o real no ensino de Lacan, menor é o valor atribuído à verdade’. […] Lacan destaca que, para Freud, ‘a relação analítica deve ser fundada no amor à verdade’; porém, considera que se há algo que deve inspirar a verdade em uma análise não é o amor, mas a morte, ‘o caráter radical da repetição’ Já no decorrer de sua obra, Freud se dá conta de que há algo além, um incurável em questão, que se repete e não cede à palavra, a pulsão de morte, que retorna ao mesmo lugar. É nesse impossível de dizer que está o ponto em comum entre a verdade e o real”, p. 73-74.


Eixo 4: O cogito lacaniano e o corpo que se goza

GOYA, Amanda

  • “O gozo triste”. Textos de orientação. Un réel pour le XXIe siècle. Disponível em: IX Congresso da AMP (congresamp2014.com)

“[…] depois que a ciência e o capitalismo uniram seus esforços para promover esse novo cogito que nos dirige, hoje – compro, logo sou -, o tratamento do real do gozo sem lei é revisitado por novos semblantes surpreendentes, no momento em que a desordem do real invade a sexuação.

Uma torre de Babel envelopa essa desordem. Muitas teorias de gênero remetem a identidade sexual à cultura e algumas falam até mesmo, como o faz Judith Butler, de uma “autodesignação do sexo”. O denominador comum dessas teorias nominalistas é ignorar a dimensão real do sexo e o caráter de semblante de tudo o que pode, de maneira contingente, envolver e revestir esse real”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – INTER-DITOS #03

VERBETE EPISTÊMICO:

Imagem – Instagram: @debra_frances 
Imagem – Instagram: @debra_frances

“[…] o gozo tem suas raízes, mergulha na abjeção. […] Quando dizemos que o objeto a é um rejeito, um dejeto, nós, de fato, o qualificamos de abjeto, objeto de aversão, de nojo e de repulsa que, ao mesmo tempo, constitui um mais-gozar”. (MILLER, J.- A. Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 215)

Miller destaca que a palavra abjeção era muito cara a Lacan. É o ato, estado ou condição que revela alto grau de baixeza, torpeza, degradação, ou ainda, ato de rejeitar, expulsão, reprovação. O gozo tem aí sua origem, nomeado como das Ding e, posteriormente, objeto a, invenção de Lacan. Ao sujeito, na impossibilidade de tocá-lo, só lhe resta demonstrar sua relação [fundamental] com ele pela fantasia ($ ◇ a) como uma janela sobre o real, faz função de real – mas puro semblante. Essa relação testemunha uma repulsa e, ao mesmo tempo, uma atração invencível por ele experimentada. Marcel Jouhandeau em sua obra De l’abjection o demonstra e a define como sua “tendência monstruosa” que o levou a “descobrir sua verdade”, em sua singularidade, e essa verdade é o gozo, gozo no nível do sinthoma. (José Wilson Ramos Braga Junior, Associado à CLIPP)


VERBETES CLÍNICOS:

O resto em Freud e Lacan

O argumento dessas XI Jornadas da EBP-SP aponta que Lacan foi além de Freud ao abordar a verdade, articulando-a ao real e ao gozo. Trago aqui um trecho do seminário 10: a angústia – o afeto que não engana – do qual Lacan tira consequências clínicas do impasse vivido por Freud, provocado por seu amor à verdade, localizado no caso da Jovem homossexual. A passagem pelo impasse freudiano se dá por meio da formulação do objeto a, causa de desejo. (Eduardo Camargo Bueno, Associado ao CLIN-a)

“A própria paciente lhe diz que seus sonhos são mentirosos […] E o estranho é que Freud entrega os pontos, deixa cair, diante dessa garimpagem de todas as engrenagens. Ele não se interessa pelo que as faz garimpar, ou seja, o dejeto, o restinho, aquilo que detém tudo e que é, no entanto, o que está em questão aí. […] Esse é o ponto em que Freud se recusa a ver na verdade, que é sua paixão, a estrutura de ficção, a estrutura de ficção como algo que está em sua origem”. (LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 144)

O que um analisante fala com seu corpo?

Lacan, no seminário 20, capítulo X – “Rodinhas de barbante”, abordou o inconsciente freudiano, o sujeito no discurso analítico. “Falo com o meu corpo, e isto, sem saber” (p. 161). O que um analisante fala com seu corpo? Seguindo Lacan, ele diferencia um saber do ser e “há relação de ser que não se pode saber” (p. 162). Faz um jogo com o equívoco do título do seminário “segundo meu título deste ano, mais, ainda. É a incompetência do saber ao qual ainda estamos presos” (p. 162) – esse saber impossível encontramos no inter-dito. (LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda, 1972-1973, cap. X – “Rodinhas de Barbante”. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.160-186.

E é por aí que esse jogo, de mais, ainda, nos conduz “não que por sabermos mais ele nos conduziria melhor, mas talvez houvesse melhor gozo” (p. 162-163), ou seja, um acordo do gozo com o seu fim. (Perpétua Medrado – Aderente da EBP-SP, Associada à CLIPP)


Bibliografia:

Eixo 1: O amor à verdade e as entrevistas preliminares

FREUD, Sigmund

  • “O início do tratamento”. Artigos sobre a técnica [1913-1916] – Obras Completas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, vol. 10, 2019.

“O primeiro móvel da terapia é o sofrimento do paciente, e o desejo de cura daí resultante. A magnitude dessa força motriz é diminuída por várias coisas que apenas no decorrer da análise se revelam, sobretudo o ganho secundário da doença, mas a força motriz mesma deve se conservar até o fim do tratamento; cada melhora produz uma diminuição dela”, p.191.

MILLER, Jaques-Alain

  • “O avesso do passe”. Aposta no passe: seguido de 15 Testemunhos de Analistas da Escola, membros da EBP. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018 (Coleção Opção lacaniana, v.14)

“O que do ponto de vista do simbólico, chamávamos demanda é, na verdade, um pedido de urgência. E esse pedido é o que se avalia durante as entrevistas preliminares: há ou não urgência de satisfação? O sujeito chegou ao ponto de já não saber lidar bem com o seu sintoma?”, p.77-78.


Eixo 2: Transferência: paradoxos entre saber, amor e gozo

BRIOLE, Guy

  • “A invenção erotomaníaca”. Papers, nº6, Rumo à Barcelona 2018: as psicoses ordinárias e as outras, sob transferência, 2018.

“Na transferência erotomaníaca haveria então um deslizamento do amor – ele me ama – para o gozo – ele quer gozar de mim. Assim, quando um gozo não barrado é deslocado pelo analisante para com o analista, surge a erotomania de transferência”, p.17.

LACAN, Jacques

  • “A terceira”. Opção Lacaniana, nº 62. São Paulo: Eolia, 2011.

“A psicanálise, socialmente, tem uma consistência diferente dos outros discursos. Ela é um laço a dois. É nisso que ela se encontra no lugar de falta de relação sexual. Isto não basta de modo algum para fazer dela um sintoma social, pois uma relação sexual falta em todas as formas de sociedades. Está ligado à verdade que faz a estrutura de todo discurso”, p. 19.

“O sujeito suposto saber que é o analista na transferência não é suposto erroneamente se sabe em que consiste o inconsciente, em ser um saber que se articula com lalíngua, o corpo que aí fala só está enlaçado a ele pelo real do qual se goza”, p.21.

SANTIAGO, Jésus

“É sabido que o sujeito suposto saber exige a extração de uma configuração particular da cadeia significante que remete às características próprias do chamado sujeito cartesiano. O sujeito cartesiano se define pela relação que mantém com a cadeia significante visto que, para ele, esta última toma a forma de uma cadeia dedutiva, cujos elementos se articulam entre si por uma causalidade e uma temporalidade própria. Se a experiência analítica viabiliza a introdução do inconsciente como um sujeito dotado de uma matriz de combinações significantes calculáveis, ela introduz também uma temporalidade entre esses elementos que é inteiramente singular”, p. 5-6.


Eixo 3: A mentira verídica e a interpretação na experiência da psicanálise

LAURENT, Éric

  • “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. Opção lacaniana, nº 79, São Paulo: Eolia, 2018.

“A jaculação inclui o valor do ardente, ou do entusiasmo, mas para designar um uso do significante tal como ele desperta no sentido de produzir o vazio da significação”, p. 8.

LEGUIL, Clotilde

  • “A interpretação em psicanálise com Lacan, uma arte da surpresa”. Jornadas de estudos interdisciplinares: Técnicas do som e profissões de escuta, 2014.

“Lacan expôs sem cessar e é um ponto ao qual ele jamais cedeu. Para ele, o psicanalista interpreta se servindo do tempo. Ou seja, cortando as sessões em um lugar que surpreende precisamente o analisante, a fim de produzir certo efeito de ressonância”, p.7.

MILLER, Jacques-Alain

  • “A Palavra que fere”. Opção Lacaniana, nº 56/57, 2010, p. 69-70.

“O inconsciente é um fato, mas ele é suportado pelo que na análise o produz. Portanto, “ousar dizer!”, não ser esmagado pelo supereu da exatidão. O intérprete é aqui criador.”


Eixo 4: O cogito lacaniano e o corpo que se goza

AFLALO, Agnès

  • “Ato analítico”. Scilicet: Semblantes e sinthoma. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2009.

“O ato funda um novo sujeito: uma palavra corta o laço dos significantes singulares e os reduz ao sem-sentido, depois, a passagem em direção ao não-sentido negativiza o sentido gozado. O ato reproduz o duplo corte do sujeito e do objeto, mas efeito de verdade e sentido gozado são articulados”, p. 53.

MILLER, Jacques-Alain

  • Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

“Na perspectiva que tomo este ano, na mola da invenção conceitual de Lacan é a tradução múltipla e dificultosa da pulsão freudiana na ordem da linguagem.

Há dois marcos nessa investigação. O primeiro, no qual o ponto de partida é dado pelo dizer, em que o dizer é, antes de tudo, dizer o verdadeiro, e o sintoma é obstáculo ao dizer verdadeiro; nesse sentido, o tratamento consiste em liberar a verdade do sintoma, ao passo que o gozo é desvalorizado. O segundo, em que o gozar é que fornece a própria razão do dizer. É assim que se opõe o valor de verdade e o de gozo, criando o problema de sua conciliação. E conciliar o valor de verdade com o valor de gozo é o problema do ensino de Lacan.,” p. 52.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – INTER-DITOS #02

Imagem: Instagram @vikmuniz

VERBETE POLÍTICO:

“Esta vontade de identificar um mundo que fosse verdade do Um ao ser, faz surgir a careta de um mestre que se erige hoje em dia como polícia da linguagem e da História”. (LAURENT, D., “Chronique du malaise: ‘Cancel culture’, la vérité et le Un”)

De maneira coercitiva, a cultura do cancelamento impõe uma higienização da linguagem e também da História, fundada no princípio de uma verdade que não seria mentirosa. Ela tenta assim fazer existir um Outro absoluto, tirânico, ali justamente onde ele é inconsistente. Por consequência, a cultura do cancelamento, ao visar apagar as diferenças, própria à linguagem, ganha cada vez mais potência discursiva e dá origem aos movimentos segregativos, cuja raiz consiste em rejeitar o gozo hétéro que habita cada ser falante. (Camila Popadiuk – EBP/AMP)

VERBETES EPISTÊMICOS:

Freud e o gozo

Seria possível dizer que Freud, a partir das formulações apresentadas em Além do princípio do prazer, estava atento ao gozo ilimitado, para além do gozo do sentido? Dito também de outra forma, a escuta de Freud estava de acordo com a perspectiva clínica de que aonde isso fala, isso goza, e nada sabe? Para sustentar a discussão, destaco algumas passagens do trabalho freudiano de 1920:

“É claro que a maior parte do que a compulsão de repetição faz reviver causa necessariamente desprazer ao Eu, pois traz à luz atividades de impulsos instintuais reprimidos, mas é um desprazer que já consideramos, que não contraria o princípio do prazer, é desprazer para um sistema e, ao mesmo tempo, satisfação para o outro. Mas o fato novo e digno de nota, que agora temos que descrever, é que a compulsão à repetição também traz de volta experiências do passado que não possibilitam prazer, que também naquele tempo não podem ter sido satisfações.” (FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. Obras completas, v.14. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.132)

“Em vista dessas observações, extraídas da conduta na transferência e do destino das pessoas, sentimo-nos encorajados a supor que na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio do prazer” (FREUD, 1920/2010, p.135).

“Uma função do aparelho psíquico, que, sem contrariar o princípio do prazer, é independente dele e parece mais primitiva que a intenção de obter prazer e evitar desprazer” (FREUD, 1920/2010, p.143)

(Mariana Galletti Ferretti – participante da Comissão de Referência Bibliográfica e Livraria)

Antígona e o gozo: além do bem e do belo

“[…] É aliás, a grande figura de Antígona que aparece aqui em primeiro plano como franqueando a barreira da cidade, a lei, a barreira do belo, para avançar até a zona de horror que o gozo comporta. Um heroísmo do gozo, escrito por Lacan como uma espécie de sinfonia fantástica como que erguida por si mesma, devendo renunciar ao rumor do simbólico e do imaginário para alcançar o dilaceramento do gozo”. (MILLER, J-A. “Os seis paradigmas do gozo”. Opção lacaniana online, nº7, 2012, p. 14.)

Antígona traz uma crítica política ao silêncio e ao poder tirânico. Sua presença é símbolo de uma escolha: quem se agarra a uma causa, trazendo uma provocação à sociedade. O desfecho de Polinices pode representar o que está para além do bem e do belo: é preciso enterrar os mortos; o que faz lembrar parentes de mortos em ditaduras, fazendo questão de encontrar os corpos.

Lacan faz uso da dimensão trágica, evidenciando a ausência de garantias. Antígona morre trazendo a ideia de pureza, impossível de conservar em vida, e que elucida algo sobre a dimensão real do gozo. Enterrar o morto significa menos querer reencontrar o objeto, e mais uma organização em relação às coordenadas que ele representa; sua memória organiza a percepção de quem o perdeu.

Antígona opera o franqueamento da barreira do bem: do certo e o errado, podendo ser vista como a dimensão factual do simbólico e da verdade. Em seguida, há o franqueamento da barreira do belo, associada ao imaginário: próxima ao corpo. Mais além destas barreiras, há aquilo que não mente, e que pela resistência ao dialeto e à aparência, causa horror. O seminário da ética nos mostra que, para além de culpados e inocentes, há o gozo em dimensão real, cuja incidência em uma análise direciona ao desejo. (Marcella Pereira de Oliveira – Associada ao CLIN-a)

VERBETE CLÍNICO:

Ponto de viragem

“O pai lhe dá 10 marcos; ela paga a sua contribuição, deixa nove marcos sobre a escrivaninha do pai, e com 50 fênis restante compra as tintas, que esconde no armário de brinquedos. O pai desconfiado, pergunta o que ela tinha feito com os 50 fênis que estavam faltando, e se acaso ela não havia comprado as tintas com eles. Ela nega (…)”. (FREUD, S. (1913) “Duas mentiras infantis”. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p.179.)

A mentira ocupa um lugar sutil na prática clínica, quando escutada sob transferência. Ela é um índice que permite ao analista localizar como se desenrola a relação do sujeito com o Outro. De passiva a ativa no que cifra, decifra e entra em um discurso, a experiência de enganar o Outro introduz algo singular que separa o campo entre certeza e dúvida. Portanto, nesta contabilidade do amor, Freud deixa uma pista da maneira pela qual o falasser encontra sua própria nuance para sintomatizar o desejo do Outro. Deste programa de saber, o que serve ao programa de gozo? (Emelice Prado Bagnola – Associada ao CLIN-a)

Bibliografia:

LACAN, Jacques

  • O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 71.

Das Ding é originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado. É em função desse fora-do-significado e de uma relação patética a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque.”

  • O seminário, livro 19: … ou pior, 1971-1972, Lição IV – “Da necessidade à inexistência”. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

“[…] é a inexistência do gozo que o chamado autoerotismo de repetição faz vir a luz, pela inexistência desse marcar passo na porta que se designa como saída para a existência. Só que, para além dela, o que os espera não é, em absoluto, o que se chama uma existência: é o gozo, tal como funciona como necessidade de discurso, e ele só funciona, como vocês estão vendo, como inexistência”, p.>>>>.

  • O seminário, livro 20: mais, ainda, 1972-1973, Rio de Janeiro, Zahar, 1998.

Lição V – “Aristóteles e Freud: A Outra Satisfação”

“A realidade é abordada com os aparelhos do gozo”, p.75

“O gozo, então, como vamos exprimir o que não se deveria, a seu propósito, senão por isto – se houvesse um outro gozo que não o fálico, não teria que ser aquele”, p. 81.

Lição VI – “Deus e o Gozo D’Ⱥ Mulher”

“O pensamento é gozo. O que traz o discurso analítico é isto, que já estava começado na filosofia do ser – há gozo do ser”, p. 96.

Lição VII – “Letra de uma Carta de Amor”

“[…] O que o discurso analítico nos traz – e é esta talvez, no fim de tudo, a razão de sua emergência num certo ponto do discurso científico – é que falar de amor é, em si mesmo, um gozo”, p. 112.

“Outra coisa ainda nos ata quanto ao que é da verdade: é que o gozo é um limite. Isto se prende à estrutura mesma que evocavam, no tempo em que os construí para vocês, meus quadrípodes – o gozo só se interpela, só se evoca, só se saprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência”, p. 124.

Lição VIII – “O Saber e a Verdade”

“Da última vez, eu joguei, como me permito, com o equívoco um pouco forçado entre ele hait, ele odeia, e ele est, ele é. Não gozo com isto, senão em colocar a questão de que ele seja digno da tesoura. É justamente o de que se trata na castração”, p. 134.

MILLER, Jacques-Alain

  • Os seis paradigmas do gozo. Opção lacaniana online: Os seis paradigmas do gozo, nº 7, 2012.

“Isso introduz, evidentemente, uma pequena dificuldade, uma vez que se introduziu o inconsciente estruturado como uma linguagem, discurso do Outro, isto é, na medida em que o inconsciente não introduz esse gozo fora da simbolização. É disso, de certa forma, que o inconsciente não pode falar. É por isso que Lacan pode dizer, na página 94 de a Ética, que no nível do inconsciente, o sujeito mente sobre a Das Ding, que existe uma espécie de mentira originária sobre o gozo que é o comentário dessa disjunção separadora fundamental entre o significante e o gozo.

O que Freud chama de defesa é essa própria mentira originária, a mentira estrutural que o sujeito traz no lugar do gozo”, p. 15.

FREUD, Sigmund

  • Além do Princípio do prazer (1920). Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte. Autêntica, 2020.

“O instinto humano jamais desiste de lutar por sua completa satisfação, que consistiria na repetição de uma vivência primária de satisfação; todas as formações substitutivas e reativas, todas as sublimações não bastam para suprimir sua contínua tensão, e a diferença entre o prazer de satisfação encontrada e o exigido resulta o fator impulsor que não admite a permanência em nenhuma das situações produzidas, mas, nas palavras do poeta, “sempre impele, indomável, para frente” ( Mefistófeles, no Fausto, I, Gabinete de estudos – cena 4), p.209-210.

BATISTA, MCD

 O elogio da mentira. Texto de aula ministrada no IPLA em 04 de novembro de 2013.

“Um breve e certamente incompleto percurso cronológico pela obra de Lacan, cada vez que menciona a mentira, nos possibilitará melhor esclarecer a ideia de que a cada mentira corresponde uma verdade aguda, único caso de verdade absoluta, na medida em que, quando mentimos, sabemos bem qual objeto está intencionalmente escondido, oculto por detrás do dito mentiroso. O objeto oculto permite alcançar toda a verdade.” (Leia +)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – INTER-DITOS #01

Na intenção de que o levantamento das referências bibliográficas sobre o tema Ⱥ verdade e o gozo que não mente não seja apenas uma lista de consulta, esta Comissão de Referências Bibliográficas propõe uma apresentação das referências bibliográficas a partir de verbetes. Isto é, para cada número do Boletim Inter-dito, ofereceremos alguns verbetes (Clínico, Epistêmico e/ou Político), construídos a partir de uma citação e seguida de um pequeno texto.

A articulação citação-verbete é uma tentativa de introduzir nesta rubrica do Boletim, mas também nas mídias, algo do já escrito que toque o tema das XI Jornadas da EBP-SP, com uma leitura/escrita breve do responsável por apresentar essa articulação. Visamos com isso levar o leitor diretamente aos textos. Este trabalho será feito pelos integrantes da Comissão de Referências Bibliográficas e livraria.

Ainda nesta rubrica, ofereceremos algumas Bibliografias, acompanhadas de certas passagens, apoiando a pesquisa do leitor em sua investigação do tema.

Nossa proposta é promover uma rubrica mais viva e dinâmica!

Comissão de Referências bibliográficas e livraria

VERBETES CLÍNICOS:

 Ⱥ verdade entre semblante e real

“Desde sua introdução da categoria do semblante, Lacan anunciava que este, que se faz passar pelo que é, é a função primária da verdade. Sem dúvida há um paradoxo na expressão, o semblante que se faz passar pelo que é, já que supõe que há um semblante que não aparenta (faz semblante). Por outro lado, a verdade está escondida, ou seja, não esconde ser o que é. Por isso é coerente com a noção de que há saber no real a ideia de que a verdade possui estrutura de ficção”. (MILLER, J-A. De la natureza de los semblantes, BA. Paidós, 2011, p.21, tradução livre.)

Nesta citação Miller aponta o paradoxo em relação ao semblante, que de um lado aparenta  ser e por outro esconde a verdade, na medida em que não esconde ser semblante. O que parece ser um ponto importante da passagem do significante ao semblante na clínica, onde para além da ficção se figura o que não mente, está atrelado ao real e se liga à fixão. (Sílvia Sato – EBP/AMP)

Sintoma: verdade e gozo

“…Pode-se dizer que o gozo é o próprio corpo como tal, que é um fenômeno de corpo. Nesse sentido, um corpo é o que goza, mas reflexivamente. Um corpo é o que goza de si mesmo, o que Freud chamava de autoerotismo. Mas isso é verdade para todo corpo vivo. Pode-se dizer que gozar de si mesmo é o estatuto do corpo vivo. O que distingue o corpo de ser falante é que seu gozo sofre a incidência da fala. E precisamente um sintoma demonstra que houve um acontecimento que marcou seu gozo no sentido freudiano de Anzeichen e que introduz um Ersatz, um gozo que não deveria, um gozo que perturba o gozo que deveria, isto é, o gozo de sua natureza de corpo.” (MILLER, J-A. “Ler um Sintoma”. Opção Lacaniana, nº 70, 2015, p.19)

Em “Ler um Sintoma”, Miller nos mostra a passagem do sintoma freudiano, que “deve ser interpretado como um sonho, deve ser interpretado em função de um desejo e é um efeito de verdade”, para a leitura lacaniana de sintoma. O sintoma passa a ser não mais do sujeito, mas do ser falante, que porta um corpo vivo e que tem como finalidade do aparelho significante, o gozo. Nesta perspectiva, o estatuto da interpretação muda “da escuta do sentido para à leitura do fora de sentido”, tendo em sua mira a redução do sintoma em sua materialidade de letra. A interpretação para além das miragens da verdade, visando a “fixidez do gozo, a opacidade do real”. (Camila Morelli – Associada ao CLIN-a)

VERBETE EPISTÊMICO:

 As Teorias da Verdade

“Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real”, diz Lacan em Televisão[1].  Motivo, certamente, de se ter barrado o A, de Ⱥ verdade, no título das Jornadas da EBP-SP/2022 “Ⱥ verdade e o gozo que não mente”. Além de não-toda, a verdade é múltipla: há, pelo menos, quatro teorias da verdade, segundo o filósofo Prof. Newton da Costa[2]. A teoria da verdade como correspondência, a primeira delas, foi formulada por Aristóteles. “Dizer daquilo que é, que é”. Uma correspondência entre o dizer e o que está além da linguagem, na “realidade”. A teoria pragmática da verdade, criada por Peirce, considera verdadeiro o funcional, o útil e o que produz bons resultados. A verdade da ciência só pode ser pragmática. E Newton da Costa sugere nela inserir os conceitos psicanalíticos. A terceira teoria é a da coerência, esboçada em Hegel. Há concepções primárias consideradas verdadeiras pela linguagem e pelo pensamento. As novas proposições serão aceitas por comparação às primeiras, com as quais devem ser coerentes, compatíveis e consistentes. A quarta teoria é a da eliminação, de Frank Ramsey, onde o conceito de verdade é desnecessário. “É possível construir linguagens extremamente potentes eliminando o conceito de verdade.” (Maria do Carmo Dias Batista – EBP/AMP)

 Bibliografia:

 LACAN, Jacques

 O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970, lição IV – “Verdade, irmã de gozo”. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p.51-64.

“Na verdade, uma coisa deve ser enfatizada desde este começo – verdade não é uma palavra a ser manipulada fora da lógica proposicional, onde se lhe dá um valor reduzido à inscrição, ao manejo de um símbolo, que em geral é um: V maiúsculo, sua inicial. Tal uso, como veremos, é particularmente desprovido de esperança. E é justamente isto o que ele tem de sadio”, p.52.

“[…] um sonho desperta justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que só acordamos para continuar sonhando – sonhando no real, ou, para ser mais exato, na realidade”, p.54.

“A verdade, com efeito, parece mesmo ser-nos estranha – refiro-me à nossa própria verdade. Ela está conosco, sem dúvida, mas sem que nos concirna a um ponto tal que admitamos dizê-lo”, p.55.

“Em torno disso há todo um jogo de litotes, cujo peso e acentuação tentei mostrar naquilo que chama de não-sem [pas-sansl. A angústia não é sem objeto. Nós não somos sem uma relação com a verdade”, p.55.

  • (1972) “O aturdito”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.448-497.

“Pois essa segunda, que se diga fica esquecido por trás do que ela diz. E isso de maneira tão mais impressionante quanto, assertiva, ela – sem remissão, a ponto de ser tautológica nas provas que propõe -, ao denunciar na primeira o semblante, situa seu próprio dizer como inexistente, já que, ao contestá-la como dito de verdade, é a existência que ela faz responder por seu dizer, não por fazer com que esse dizer exista, já que só ela o denomina, mas por negar sua verdade – sem dizê-lo”, p.450.

“Metaforizei, por ora, pelo incesto, a relação que a verdade mantém com o real”, p. 453.

“[…] a impossibilidade de dizer verdade do real se motiva por um matema (sabe-se como eu o defino), um matema pelo qual se situe a relação do dizer com o dito”, p. 482.

“Será que a opinião verdadeira é a verdade no real como aquilo que barra seu dizer?”, p.483.

“Assim se explica o meio-dito que superamos, aquele segundo o qual a mulher seria, desde sempre, um engodo da verdade. […]”, p.495.

  • (1973) “Televisão”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.508-543.

“Não há por que nos espantarmos, se o Caminho, como eu disse, passa pelo Signo. Se nisso se demonstra um impasse – digo bem: certifica-se ao se demonstrar -, essa é nossa chance de tocarmos no real puro e simples – como o que impede que se diga toda a verdade”, p.532.

“[…] a verdade já é mulher, por não ser toda – não toda a se dizer, em todo caso”, p. 538.

MILLER, Jacques-Alain

 “O inconsciente e o corpo falante”. Scilicet: o corpo falante – sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.

“Antigamente falava-se das indicações de análise. Avaliava-se se tal estrutura se prestava à análise e se indicava a recusa da análise para quem a demandava por falta de indicações. Na época do falasser, digamos a verdade, analisa-se qualquer um. Analisar o falasser demanda jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio de maneira que sua debilidade ceda à tapeação do real. Freud tinha ainda de se haver com o que ele chamava de recalque. E pudemos constatar, nos relatos de passe, a que ponto essa categoria é, doravante, pouco utilizada. Claro, há relembranças. Mas nada atesta a autenticidade de alguma delas. Nenhuma é final. O chamado retorno do recalcado é sempre arrastado no fluxo do falasser, no qual a verdade se revela incessantemente mentirosa. No lugar do recalcado, a análise do falasser instala a verdade mentirosa que decorre do que Freud reconheceu como o recalque originário. Isso quer dizer que a verdade é intrinsicamente da mesma essência que a mentira. O proton pseudos é também o falso último. O gozo, ou os gozos do corpo falante, porém, é aquilo que não mente”, p.31-32.

“A interpretação não é um fragmento de construção incidindo sobre um elemento isolado do recalque, como o pensava Freud. Ela não é a elucubração de um saber. Ela não é tampouco um efeito de verdade logo absorvido pela sucessão das mentiras. A interpretação é um dizer que visa ao corpo falante para produzir nele um acontecimento, para passar para as tripas, dizia Lacan. Isso não se antecipa, mas se verifica a posteriori, pois o efeito de gozo é incalculável. Tudo o que a análise pode fazer é afinar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar no sintoma. Quando se analisa o inconsciente, o sentido da interpretação é a verdade. Quando se analisa o falasser, o corpo falante, o sentido da interpretação é o gozo. Esse deslocamento da verdade ao gozo dá a medida do que se torna a prática analítica na era do falasser”, p.32.

  • “O Um é letra”. Opção Lacaniana, nº 83. São Paulo: Eolia, 2021, p.44-66.

“Quando Lacan afirma que a ‘verdade tem estrutura de ficção’, é para dizer que ela só sustenta o seu ser pelo discurso – sem discurso não há verdade”, p. 57.

 FREUD, Sigmund

 “Os chistes e sua relação com o inconsciente” [1905]. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. VIII, p.21 -265.

“[…] Atribuímos sentido a um comentário e sabemos que logicamente ele não pode ter nenhum. Descobrimos nele uma verdade, fato impossível de acordo com as leis da experiência ou com nossos hábitos gerais de pensamento. […] Em todos os casos, o processo psicológico que o comentário chistoso nos provoca, e sobre o qual repousa o processo cômico, consiste na imediata transição dessa atribuição de sentido, dessa descoberta da verdade, dessa concessão de consequências, à consciência ou impressão da relativa nulidade”, p.24-25.

“História de dois judeus que se encontram num vagão de trem em uma estação da Galícia. […] Essa excelente estória, que impressiona pelo extremo refinamento, opera evidentemente pela técnica do absurdo. O segundo judeu é censurado por mentir porque diz estar indo à Cracóvia que é seu verdadeiro destino! Mas o poderoso método técnico do absurdo conecta-se aqui à outra técnica, a representação pelo oposto, pois de acordo com a asserção não contradita do primeiro judeu, o segundo está mentindo quando fala a verdade e fala a verdade por meio da mentira. Mas a mais séria substância do chiste é o problema do que determina a verdade. […]”, p.136.

 DUPONT, Laurent

 “… a cultura do cancelamento crê no Um, na Verdade enquanto Um sozinho. Calar o outro não é censura, seria proteger A verdade. É a subida ao zénite do sujeito da certeza”. (Tradução livre)

HARARI, Angelina

  • “Verdade/Mentira”. Scilicet. A ordem simbólica no século XXI não é mais o que era. Quais as consequências para o tratamento?, 2011, p. 404.

“[…] o mentir verdadeiro não se confunde com a verdade mentirosa de Lacan, pois, nesta, segundo Jaques-Alain Miller, “a ênfase a ser posta no adjetivo mentirosa não está na oposição verdade verídica e verdade mentirosa, mas sim na aliança da verdade com a mentira”, ao passo que, “[…] O mentir-verdadeiro é uma mentira que vai ao encontro da verdade, que a revela. A verdade mentirosa diz outra coisa mais radical: a própria verdade é uma mentira”. (citando Jacques-Alain Miller em Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan, p.125). […], o sintagma lacaniano de verdade-mentirosa é outra coisa, razão pela qual escolhi abordar o tema Verdade/Mentira, seguindo a orientação lacaniana que o faz pelo viés de uma aliança da verdade com a mentira, conforme citado anteriormente”, p. 404-405.


[1] LACAN, J. “Televisão”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 508.

[2] DA COSTA, N. C. A. Teorias da Verdade. Capítulos de Psicanálise. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, n. 10, 2ª edição, novembro 1991. Conferência pronunciada no âmbito do seminário de Jorge Forbes na Sociedade Psicanalítica de São Paulo, em 10 de novembro de 1988.

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