O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
O Ato em Freud
Entrevista com Luis Francisco Espíndola Camargo (EBP/AMP)
Por Mirmila Musse (EBP/AMP)
Mirmila Musse: Retiro do Argumento das X Jornadas da EBP-SP, Psicanálise em Ato, uma frase para apoiar nossa conversa: “a ‘falha no saber’ e, mais especificamente, no saber da ciência é a força motriz que sustenta o ‘ato’ de criação da psicanálise”. Destaco duas dimensões do ato quando tratamos da descoberta do inconsciente: uma clínica e uma política. Da perspectiva clínica, sublinho “o ato falho” e, no contexto político, a “subversão da razão” – termo que também pode ser encontrado no Argumento. Nos dois casos, me parece que a consequência do ato de Freud vem como uma resposta para aquilo que o saber da ciência não conseguia produzir. Nessa perspectiva proponho duas perguntas:
Dimensão Política do Ato: O ato de fundação da Psicanálise por Freud coloca em questão um saber da ciência daquela época que se deparava com a ineficiência em explicar a histeria apenas a partir de uma disfunção orgânica. Além disso, e ao mesmo tempo, ele interpreta a civilização e a compreensão política do sofrimento, quando, por exemplo, escreve Além do Princípio do Prazer a partir da escuta clínica dos soldados que retornavam da Primeira Guerra Mundial, ou mesmo da troca de cartas entre ele e Einstein que resultou no texto Por que a guerra?, além do texto Mal-Estar na Civilização, entre outros. Esse ato político surge de uma “falha no saber”, o da ciência. Você poderia falar um pouco sobre o ato de fundação da psicanálise por Freud a partir dessa dimensão política?
Luis Francisco E. Camargo: A proposta de duas leituras sobre o ato analítico – Clínica e Política – é bastante interessante.
Na minha opinião, a questão inicial para Freud era clínica, precisamente, médica. Ele partiu da descoberta da Escola de Charcot, de que os sintomas histéricos não tinham uma etiologia orgânica. Não é Freud quem descobriu isso, mas a Escola de Charcot. Ele que aponta para um “trauma psíquico”. O que Freud nomeou, descreveu e explicou foi o fundo patogênico de base nas formações dos sintomas, responsável pela resposta ao trauma, que nomeou de inconsciente, por meio dos seus derivados: sintomas, sonhos, atos psíquicos inconscientes e chistes. Seria interessante diferenciar o ato falho do ato analítico.
A dimensão política do ato de Freud pode, na minha opinião, ser abordada pelo descentramento do Eu. Quando se fala de ciência, é importante lembrar, que se trata da ciência moderna, a de Descartes. Freud apresenta uma nova ciência – a psicanálise – na qual o seu objeto não segue os princípios da ciência moderna, da lógica Aristotélica e do método cartesiano. Freud sempre tratou a psicanálise como uma ciência. Lacan o interpreta, ao dizer que o cienticismo de Freud é um antídoto ao obscurantismo de Jung. É preciso diferenciar de qual ciência se trata, pois hoje há ciências e lógicas que pretendem se debruçar sobre teorias inconsistentes, assim como a psicanálise, por exemplo, as que trabalham com inteligências artificiais.
Sobre a primeira pergunta, não acho que é Freud que coloca em xeque o saber da ciência médica, mas a histeria. Por outro lado, você tem razão ao afirmar que ao interpretar a histeria, Freud interpreta a civilização. Isso é uma consequência lógica. Se o sintoma histérico contém em parte, o sentido, que é formado pela injeção do discurso do Outro, logo há uma dimensão da política no sintoma neurótico. Essa dimensão política culminará na formalização do Supereu, a instância psíquica decorrente da introjeção da política do Outro no inconsciente. Isso já não aborda a primeira questão sobre o ato de fundação da psicanálise a partir dessa dimensão política? O que Freud demonstra é que a política do Outro sempre fracassa na tentativa de dominar as pulsões sexuais. Os efeitos podem ser destrutivos para os indivíduos e a civilização.
Mirmila Musse: Dimensão Clínica do Ato: Destaco o ato falho como formação do inconsciente. O ato de dizer outra coisa que emerge na fala e que transmite algo do desejo. Novamente aqui, Freud subverte a “falha do saber” assim como daquela da dimensão política. Mas agora o ato pensado a partir daquilo que rateia do que é dito, elevando um não saber, um erro ou um engano, à verdade do inconsciente. Você acha possível dizer que, já naquele momento, o ato falho pode ser entendido como aquilo que evidencia que há uma hiância, um furo no saber?
Luis Francisco E. Camargo: Teria que definir o que é essa “falha do saber da ciência”. Eu tenho uma posição sobre isso: não existe A Ciência, assim como não existe A Mulher. Freud e Lacan, na minha opinião, tinham consciência disso. Freud não fez da psicanálise um ramo da psiquiatria e da neurologia, pois sabia que o que ele descobriu foi um objeto heterogêneo aos objetos da medicina, por isso inventou outra coisa. No seu sonho sobre a Injeção de Irma, trata-se de suas falhas, enquanto médico e psicanalista. Ele achava que os objetos da psicanálise eram homólogos aos da física e da biologia evolucionista, por isso pensava a psicanálise como uma Ciência Natural, aos moldes do darwinismo. Por outro lado, Lacan também pensou que a psicanálise tinha objetos homólogos aos da lógica e da topologia. Lacan do mesmo modo não acreditava na A Ciência, ele sabia disso, apesar de ter aceitado parcialmente a proposta popperiana de que a psicanálise seria uma pré-ciência e ficaria nas conjecturas e não demonstraria as suas refutações.
Newton da Costa tem uma posição diferente. Ele acha essa proposta de Popper uma bobagem. Nenhum cientista ou nenhuma ciência é construída para ser refutada. Não se escreve uma tese para ser refutada. Não entendi ainda o porquê de Lacan ter consentido com essa crítica inconsistente de Popper, que já foi desconstruída por Grünbaum nos anos 80 e 90. A crítica de Popper à psicanálise não se sustenta.
Por isso eu lhe pergunto, de qual modelo de ciência se trata quando você fala de “falha de saber”? Na verdade, todas as ciências falham e são incompletas. A psicanálise inicia no terreno onde a medicina falhou e trabalha com os fracassos e as falhas do sistema de defesa do Ego. O ato analítico é realizado sobre a falha, as hiâncias por onde o inconsciente se manifesta, e por isso se trata na clínica de corte e sutura, ou de acordo com a clínica borromeana de desamarrações e amarrações. O ato a meu ver é isso: cortar, desamarrar e esperar como o sujeito vai tentar suturar e amarrar novamente. Isso faz sentido? Será que é por aí que poderia comentar as questões colocada por você?