Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
A subversão na feminização do gozo (Encontrar-se com Outra leitura e satisfação)
Eduardo Benedicto (EBP/AMP)
Ao aceitar o convite para contribuir, colocar meu grão de sal, no trabalho empreendido para as próximas Jornadas da EBP-SP, fora da série – “Subversões”, diante do ato da EBP-SP de fazer esta jornada, ela mesma, uma subversão diante do momento de isolamento dos corpos, sem a presença deles, mas com muito trabalho produzido por cada um em seu canto, me perguntei, de imediato, qual o lugar da subversão nos últimos desenvolvimentos do ensino de Lacan e como pode o retorno a este campo de estudo, bastante característico do primeiro momento do ensino lacaniano com o clássico “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”[1] estar em consonância com a noção de clínica do real? Por consequência, poderíamos nos servir deste conceito no último ensino de Lacan, onde há uma extensão e radicalização do conceito de gozo que temos experimentado e discutido no âmbito da formação do psicanalista na Escola e que, principalmente, tem nos servido para operar com os sujeitos que nos procuram em nossa prática clínica cotidiana, notadamente nestes tempos que correm?
Não seria a subversão um conceito eminentemente simbólico e, portanto, não mais a altura dos desenvolvimentos do real do gozo do corpo falante, característica da segunda clínica lacaniana? Nesta perspectiva, os conceitos clássicos de sujeito do inconsciente, a pulsão, o próprio gozo, o ato, a interpretação, o desejo do analista, que estão presentes nas versões 1 e 2 da orientação epistêmica para os trabalhos desta Jornada, não estariam também referidos a uma orientação ‘simbólica’ da teoria e da clínica psicanalítica lacaniana?
Pois bem, poderíamos ficar fixados neste sentido se fizéssemos uma leitura binária, característica da interpretação significante, pois a palavra pede sempre algum complemento, algo do saber, da significação, que venha preencher o sem sentido em si do significante, quando este não está mais encadeado, associado. É nesta perspectiva que poderíamos dividir duas ou mais clínicas/ensinos lacanianos, através de pontos de corte que delimitam conceitos teóricos e práticos. Em outra perspectiva, porém, dentro de uma outra leitura, que denominamos de orientação lacaniana, o binarismo já não se sustenta mais como única referência, sendo necessário nos deixar tocar e nos servirmos de uma outra leitura do sintoma na clínica psicanalítica.
Ao partimos da tese da relação sexual que não existe apresentada no seminário XX[2] de Lacan, poderíamos pensar o feminino, o suplementar, como uma outra chave de leitura e interpretação para o praticante da psicanálise, ao mesmo tempo em que é uma maneira específica do ser falante gozar, obter uma outra satisfação?
Dominique Laurent, no texto publicado no boletim do XXIII Encontro da EBP[3] vai nos dizer que o mundo feminino é como uma anamorfose em um quadro. Enquanto a representação fálica obedece a uma ordem de satisfação, uma Outra satisfação a atravessa, provocando uma inquietante estranheza diante de um Outro gozo sem sentido/ (sur) real.
O que temos a falar deste gozo? Um gozo Outro que no seminário XX é denominado de feminino, mas que está atravessado em todos os seres falantes, em seus corpos, seus poros. Um gozo feminino, fendido, como diz Dominique, que abre espaço em buracos extremos no corpo, onde Lacan já localizou o pequeno objeto “a” que a pulsão/gozo circunda. Este corpo continente, que instrumentaliza os objetos mais de gozar, em referência a lógica fálica e mais além dela, é também a sede das bordas dos limites litorais do corpo, ele mesmo um furo, um vazio, onde o gozo feminino se aloja paradoxalmente na contingência, num espaço de lapso, experimentado no encontro com esta estrutura infinita, que caracteriza as experiências femininas, desembocando em existências mescladas de êxtase e ruína.
Tratar-se-ia, no percurso de uma análise de um ser falante, de abrir a via de um consentimento em relação a este gozo, para saber fazer algo aí, posto que este seria o gozo propriamente dito, sendo o fálico apenas um dialeto ou o que faz barreira ao encontro contingente com este feminino: “O sintoma é irrupção dessa anomalia na qual consiste o gozo fálico, na medida em que aí se desdobra, se expande essa falta fundamental que qualifico de não-relação sexual” [4] dirá Lacan em A Terceira.
Miller[5] vai dizer que aquilo que Lacan chama de relação sexual é o que constitui a referência freudiana da libido e das pulsões, com seus regimes de satisfação e substituições de gozo: uma teoria edipiana das pulsões. Já a teoria lacaniana do gozo vai responder ao regime do nãotodo, onde não há o primado do falo e nem o Todo das pulsões. Daí que teríamos, com Lacan, que desedipianizar o gozo, pois este não convém à relação sexual e por isso faz sinthoma.
Da significação à satisfação, abrindo para uma outra dimensão do dizer sobre o lugar onde isso goza, pois o significante é também causa de gozo, lalíngua. Miller falando ainda sobre o gozo no último ensino de Lacan, pari passo com a orientação lacaniana, sustenta a passagem necessária do regime da primazia da fantasia em análise, do gozo da interpretação do sujeito pela fantasia, mais além do Édipo, mas referida a ele, para o regime do sinthoma, onde a relação fundamental com o gozo não está mais somente na fantasia. Daí que o gozo não é mais apenas aprisionado pelo objeto “a”, mas alastra-se por toda a extensão significante, sendo a sustentação do falasser – sujeito do significante mais o corpo Outro – justamente a própria obtenção de gozo: Penso, logo go(z)sou[6]!
Restaria, então, ao falasser, ao final de sua análise, encontrar-se com o radical de sua singularidade de gozo, identificar-se ao go(z)sou, de forma contingente e não toda, lançando-se ao encontro com o feminino, com o que do gozo é feminino.
Conclui Miller: “O passe do sinthoma é também querer o eterno retorno de sua singularidade no gozo. Tal como o guerreiro aplicado, trata-se de um falasser que não mais seria atormentado pela verdade. Quanto a esse final, deve-se dizer que ele próprio é contingente. Pode ser que o final da análise tenha a estrutura do encontro.[7]”
Então, subverter e identificar-se ao sinthoma/gozo, mais além do sujeito, num encontro com o feminino, que é a satisfação própria do falasser, poderia traduzir-se num paradigma para a leitura e intervenção do analista lacaniano, enquanto signo do desejo do analista, nos tempos do real do gozo?