O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
Os atos no caso da Jovem homossexual[*]
Atos
No Seminário da Angústia, Lacan propõe que no caso da Jovem homossexual houve um acting out e depois uma passagem ao ato. Gostaríamos de explorar essa construção em dois tempos para levantar a hipótese de que as passagens ao ato podem ser, em sua maioria, precedidas de um ou mais actings. Assim, poderemos temperar o caráter disruptivo da passagem ao ato e fazer uso dos actings, não só para pensá-los como solução para a angústia, mas também como um sinal e até mesmo como um mecanismo para evitar a passagem ao ato.
O modo de agieren do acting passa por um “colocar em cena” a relação do sujeito com o objeto, um descortinar da fantasia dirigida ao Outro. Por isso, entende-se o acting como um pedido de socorro, uma demanda atuada. Lacan valoriza esse aspecto ao fazer a distinção entre o acting e o sintoma. Sua indicação é clara: o sintoma é gozo, não pede por interpretação; o acting, ao contrário, demanda uma interpretação; ele é encenado para ser interpretado. Se entendermos assim, podemos identificar um acting no passeio próximo ao escritório do pai como sendo um “dar a ver” do comportamento da Jovem na sua relação com a dama.
É bem verdade dizer que a passagem ao ato, assim como em todo e qualquer sintoma, também se mostra como Outro; entretanto, não seria propriamente uma exigência de sua natureza clamar por interpretação. O acting out, por sua vez, clama por interpretação, uma vez que ele compreende um apelo ao Outro. Mas seria isto possível? De que maneira?
Acting out
Para Lacan, a relação profunda e necessária com o objeto a é a principal característica do acting out. Em essência, todo acting out diria respeito a alguma coisa que se mostra na conduta do sujeito. Para ele, a exibição dos passeios nos quais, se por um lado, a Jovem não faz esforços para esconder a relação, por outro, não economiza mentiras dirigidas ao pai, como se quisesse que ele soubesse que ela o enganava. Poderíamos interpretar que todo o seu comportamento de cortejo à dama de reputação duvidosa, exibido aos olhos de todos, configura um acting out.
O que podemos construir sobre o contexto no qual o acting out se dá? Lacan segue a vertente edípica de Freud e aponta que, nesse caso, há um desejo frustrado. Vejamos o caminho proposto por Freud. A Jovem, enredada na trama edípica, deseja um filho do pai, uma das formas possíveis a uma mulher, segundo Freud, de acesso à feminilidade – forma simbólica de ter o falo pela via do filho (uma frustração imaginária de um objeto real). Para Lacan essa fantasia não se sustentou. No caso da Jovem, quem teve o filho do pai foi a mãe. Freud justifica o comportamento da Jovem para com a dama como uma forma masculina de fazer a côrte a uma mulher. Para além de uma identificação masculina, o que vemos é uma identificação imaginária com o falo que é encenada pela via do amor. A posição do amante é aquela de quem não tem, mas, como o amor é dar o que não se tem, a Jovem se oferece à dama nessa posição do ter. “Em outras palavras, coloca-se naquilo que ela não tem, o falo, e, para mostrar que o tem, ela o dá”[1]. Portanto, ela contorna seu desejo deste modo demonstrativo.
O acting acontece quando a dama denuncia a farsa fálica da Jovem como podemos ler no diálogo abaixo:
A dama: Nesse caso, ma chère, é realmente melhor que você me poupe de suas manifestações de amor pela metade. Tudo isso só estraga o meu humor.
A Jovem: Leonie, por favor, gosto tanto de estar com você, sempre! Queria ficar a seu lado dia e noite e todos devem saber disso, mas…
A dama: É exatamente esse “mas” o motivo pelo qual é melhor que de agora em diante não sejamos mais vistas juntas. Corra e passe bem![2]
Ninguém tem o falo, alguns portam um órgão que, imaginariamente, se confunde com ele. Em relação ao falo, estamos todos e sempre no campo do engodo, da falácia do falo, pois como significante ele está no lugar daquilo que não há.
O fantasma fundamental é a última resposta do sujeito ao desejo do Outro que o solicita, que o provoca, em posição de causa de desejo e de gozo. Nesta situação, em que a angústia domina o sujeito, ele responde com a causa de seu próprio desejo.
Essa fantasia pode estar integrada por significantes, mas se inscreve no imaginário: nesse roteiro o sujeito lida com seu objeto pulsional em uma posição que o elide (fading). Na sua fantasia fundamental, o sujeito consente ao seu ser de objeto.
A Jovem homossexual, por exemplo, se comporta como um legítimo cavalheiro diante de sua amada dama, apesar de não exatamente sê-lo. Ela banca ter o que não tem. O seu desejo passa a ser mostrar-se como um outro para assim se designar. É uma “mostração velada”, mas não velada em si. “O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra nessa história”[3].
Podemos propor que o lugar de complemento da dama condensava alguma coisa do ser da Jovem, uma sustentação imaginária que, ao ser retirada, a faz cair como objeto e a desliga do Outro. Nesse momento, já estaríamos no segundo tempo do ato apontado por Lacan e que irá levar a Jovem ao encontro com Freud.
Antes, podemos retomar uma das teses apresentadas no início do texto sobre a possiblidade do acting out servir como uma tentativa de evitar a passagem ao ato. Lacan levanta essa possibilidade ao dizer que “(…) na maioria dos casos, a passagem ao ato é cuidadosamente evitada. Só acontece por acaso”[4]. A questão que colocamos em discussão é se no caso da Jovem homossexual, o acting out que antecedeu à passagem ao ato poderia ter servido para evitá-la, ou, se ao contrário, a teria precipitado?
Passagem
“Tudo que é acting out é o oposto da passagem ao ato”[5]. O acting dá a ver, enquanto a passagem ao ato faz o sujeito desaparecer, restando apenas como objeto dejeto. Ela não seria apenas uma reação frente à angústia, mas também uma evasão provocada por ela, isso porque diante da emergência do objeto a, que não pode ser imaginarizado, nem significantizado, passa-se ao ato: “na passagem ao ato, como verificamos na clínica, não se trata somente de um ato que exclui o sujeito, mas também se trata de uma realização que dissolve a formação narcisista do eu (i (a))”[6]. Ela é uma espécie de dissolução narcísica em um contexto no qual não resta mais ao sujeito nenhuma sustentação no Outro ou nas suas identificações. Na passagem ao ato, o sujeito se coloca no limite do discurso ao deixar-se cair como um objeto.
No instante da passagem ao ato, a Jovem homossexual olha para o pai[7] e não encontra o signo de amor, mas de fúria. A antiga decepção, experimentada quando do nascimento do irmão, encontra agora a castração do pai, ou seja, o vazio do olhar do pai. Busca no olhar do Outro uma significação para si e não vê nada. Como consequência, temos um episódio de dessubjetivação: a Jovem anda desnorteada pela avenida que a levará ao terminal de trem[8].
Depara-se, nesse momento, com a impossibilidade de fazer parceria amorosa com o pai – a barreira do incesto. E a fantasia que, até então, sustentava essa parceria imaginária como defesa do vazio, transborda. Além disso, a parceria com a dama, que veio substituir àquela com o pai, se rompe. A dama a rechaça. À Jovem, resta nada, ela resta como nada.
A passagem ao ato assinala, então, um rechaço a qualquer identificação fabricada pela operação subjetiva. Lacan aponta que é um salto no real, no real pulsional, na medida em que “o sujeito realiza o limite do discurso, que é o objeto a, e o realiza na identificação, se faz objeto a”[9]. É por isso que Lacan vai entender a passagem ao ato como um atravessamento selvagem da fantasia. Nessa situação, o sujeito, ao invés de se fazer representar entre dois significantes, se identifica ao objeto. Assim, a passagem ao ato se estabelece como um limite da relação do sujeito com o que ele é como a, indicando o rompimento do limite entre a cena e o mundo.
O ato chamado verdadeiro, aquele que tem como modelo o atravessamento do Rubicão por Júlio César, resulta em uma mudança subjetiva. O mesmo não é observado na passagem ao ato. Entretanto, mesmo que nela não se observe uma mudança subjetiva, podemos, por outro lado, entendê-la como uma repetição, não se trata de uma repetição do mesmo, porque a passagem ao ato pode se deslocar. As compulsões nos ensinam que a passagem ao ato pode ser serial, podendo se deslocar para outro objeto enquanto a estrutura se mantém. No caso, a Jovem homossexual não recolheu nenhum efeito subjetivo como consequência da passagem ao ato. Podemos supor que sua recusa à análise tenha contribuído para isso. A mudança, no entanto, parece que ocorreu no Outro, pois, a tentativa de suicídio produziu alguma mudança na relação da Jovem com o pai[10].
A evasão da cena é algo que Lacan marca ser o que é essencialmente reconhecido na passagem ao ato e o que a diferencia do acting-out. Enquanto no acting out a ênfase está no Outro, na passagem ao ato a ênfase está no objeto. O acting out encena a fantasia; na passagem, o sujeito pula para fora da cena. A alienação que caracteriza a passagem ao ato é o “não penso”, onde se manifesta a presença oculta e acéfala da pulsão. No acting out, a alienação se manifesta pelo “não sou”, apontando para um entrelaçamento com o Outro e um Inconsciente posto em ato.
E aí, o que fazer?
O que um analista pode fazer diante de um acting ou de uma passagem ao ato? Antes de ensaiar alguma resposta, três pontos devem ser levados em consideração.
O primeiro diz respeito à contraposição entre ato, pensamento e saber, distinguindo-o, no entanto, da simples reação motora. Lacan vai usar o cogito cartesiano e invertê-lo. A máxima de Descartes era “penso, logo sou/existo”, na inversão de Lacan fica “onde penso não sou, onde sou não penso”. É o modo de Lacan excluir da psicanálise qualquer racionalismo, instituindo um saber próprio ao inconsciente que é um “saber não sabido”. Não se trata de uma intuição, também não é uma memória, tampouco um saber escondido. Trata-se de um saber que só se sabe no exato momento em que ele se constitui. Por isso, Lacan poderá dizer que no ato não há saber.
O segundo também é uma oposição entre o ato e, agora, a linguagem. Porém, aqui, há uma particularidade: ao mesmo tempo que o ato é mudo[11], ele vem no lugar de um dizer, exatamente no limite do discurso.
Se os dois pontos anteriores são mais reconhecíveis no Seminário 15, o terceiro tem seu auge no Seminário 10. É nele que Lacan situa duas das concepções de ato – passagem e acting – como respostas à angústia. O seminário tem por base a suposição de que certeza e angústia estão irremediavelmente ligadas – “agir é arrancar da angústia sua certeza”[12]. Não se age na dúvida; apenas imbuído de uma certeza inabalável é que o sujeito se precipita tanto no acting como na passagem. “A certeza é a essência do ato”, nos diz Miller[13].
Tendo esses três pontos, comecemos pela passagem ao ato.
Dificilmente uma passagem ao ato dá chance para se fazer alguma coisa antes, mas em alguns casos o contato posterior com um analista oferece a possibilidade de alguma abordagem. Pelo que vimos anteriormente sobre a oposição entre ato e saber, torna-se claro que não há interpretação possível para uma passagem ao ato porque ela não porta um saber. Pelo contrário, ela é a “expressão máxima do rechaço ao inconsciente”[14]. O ato falho é o modelo de ato que porta um saber e faz falar o inconsciente, enquanto a passagem ao ato pode até ser considerada um ato “bem-sucedido”, porém não veicula uma mensagem, nem porta um saber. No espaço entre a angústia, que leva à passagem ao ato e o ato em si, não há saber. Sem saber, sem a suposição de um saber suposto ao inconsciente, como interpretar?
Um dos manejos possíveis, indicado pelo Guy Trobas[15], é fazer o sujeito falar, associar a partir das pegadas que possam existir dos momentos que antecederam a angústia e com as quais o sujeito possa construir uma história ou um contexto que localize o ato em um aparato discursivo. Quando há chance de se fazer alguma coisa antes da passagem ao ato, a tentativa visa criar um espaço que anteceda a angústia ou faça um parêntese entre ela e o ato. O objetivo seria incluir um tempo de compreender e com ele desfazer a superposição do tempo de ver com o de concluir. Como fazer isso? Cada caso fornecerá na transferência, e só nela, as coordenadas possíveis a esse manejo.
No acting temos uma cena que pode ser lida, o que é um perigo. Mesmo sendo uma mensagem endereçada ao Outro, ela sofre do mesmo desconhecimento da passagem ao ato e pode ser tomada em um viés persecutório. Sua opacidade ainda assim deixa à mostra um resto. O acting out é uma cena à qual o sujeito assiste de fora, podendo assim identificar o que acontece com o protagonista. Isso às vezes aponta para uma interpretação que não poderá ser da intenção do ato, mas da posição na qual o sujeito sobra como dejeto.
Uma característica importante de todo e qualquer ato é que ele somente se define como tal por suas consequências. No texto “Discurso na Escola Freudiana de Paris”, Lacan comenta sobre o fato de seus colegas titulados como AE e AME terem considerado a “Proposição”, que tratou sobre o passe, um ato. Ele diz: “Será ela um ato? É o que depende de suas consequências, desde as primeiras a se produzir”[16]. E a repercussão delas o confirmou.
Assim, um ato nunca é, sempre foi, porque o que importa não é sua origem, mas aquilo que ele produziu. O ato pega suas coordenadas na estrutura da linguagem na qual o significado do S1 só se define a partir do S2, em retroação. Se por um lado o ato se conjuga no passado, por outro ele “está aberto ao futuro”[17], já que esse é o tempo da consequência. É nesse sentido que temos que guardar certa cautela até decidir se foi um ato.