ATIVIDADE DO CONSELHO DA EBP-SP – ORIENTAÇÃO LACANIANA
RESPONSABILIDADE E FORMAÇÃO DO ANALISTA NOS TEMPOS QUE CORREM
Uma leitura do curso “Todo mundo é louco”, de Jacques-Alain Miller
APRESENTAÇÃO DO PROGRAMA DE TRABALHO PARA 2023
Eliane Costa Dias
A atividade da “Orientação Lacaniana” tem por objetivo o trabalho de estudo e pesquisa em torno dos cursos de psicanálise ministrados por Jacques Alain Miller voltados ao ensino de J. Lacan. Esta atividade é desenvolvida em todas as Seções da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), a cargo de seus respectivos Conselhos Deliberativos.
Neste ano, na EBP-Seção SP, escolhemos nos debruçar sobre Todo mundo é louco, curso desenvolvido por Jacques-Alain Miller nos anos de 2007-2008.[1] Uma escolha causada não apenas pela diretriz do próximo Congresso Mundial da AMP, que ocorrerá em fevereiro de 2024, mas por encontrarmos neste curso de Miller uma orientação epistêmica, clínica e política, precisa e corajosa, que nos ajuda, como praticantes da psicanálise, a situarmo-nos na complexidade da época que vivemos, para além da perplexidade e da indignação.
Nesse curso, um passo a mais em sua tarefa de elucidação da “arquitetura” do ensino de Lacan, Miller propõe tomar essa enigmática frase “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”[2], como uma bússola; uma bússola que pode nos guiar no ultimíssimo ensino de Lacan e, consequentemente, em nossa “ultimíssima prática”.[3]
No argumento do próximo Congresso Mundial[4], Miller nos diz:
Pelo fato de eu tê-lo pinçado, comentado, repetido, esse aforismo entrou na nossa língua comum, a da AMP, e naquilo que poderíamos chamar de nossa doxa. Tornou-se até mesmo uma espécie de slogan. (p. 9)
Ao longo do curso, Miller desdobra e interroga cada passagem do curto texto onde essa frase de Lacan, pronunciada uma única vez, está inserida: “Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes!”[5], intervenção de Lacan em 22/10/1978, a propósito do destino do Departamento de Psicanálise de Paris VIII após maio/68. Uma fala pronunciada após o Seminário 25 e que, segundo Miller, aponta para um momento de concluir de Lacan.
Para além do trabalho de precisão de conceitos e da experiência clínica da psicanálise, esse curso de Miller é um chamado à defesa da política da psicanálise, ao desafio de sabermos nos servir do ultimíssimo ensino de Lacan para uma interpretação – da época e da própria psicanálise.
De partida, com a expressão “os tempos que correm” Miller interpreta a atualidade da época: “Algo se acelerou na civilização, em nosso modo de estar e de gozar na civilização”[6].
Se a partir da Modernidade, a lógica da produção tomou as rédeas da civilização, na atualidade, com a poderosa aliança do discurso capitalista com o discurso das tecnociências, já prevista por Lacan[7], a produção não está mais conectada com o desejo. Trata-se de uma produção baseada no gozo, caracterizada pela indiferenciação do objeto, por sua quantificação e sua produção em série e por um modo de gozo que toma a forma do consumo e da adição.
Miller chama a atenção para o fato de que, nesse cenário contemporâneo em que “o deserto está crescendo” na civilização, a tecnologia se desgarrou da ciência e representa, hoje, uma dimensão própria da atividade e do pensamento. E nos lança a pergunta: Diferentemente da tecnologia que a ciência propõe, qual é a “técnica” da psicanálise? Quais são nossas ferramentas, nossa maquinária? E responde: nossa ferramenta é o discurso; e o motor de nossa prática, hoje, é a relação com o gozo.
Na primeira lição, Miller conclui sua leitura de nossa época afirmando que “há uma guerra civil na civilização ocidental. Uma guerra civil entre modos de gozo”[8]. E nos diz que, como analistas, tomamos, sim, posição nesse confronto, não por razões acidentais, circunstanciais ou ideológicas, mas por razões inerentes à estrutura e à história do discurso analítico.
Causados por estas inquietantes reflexões, no Conselho, optamos, mais uma vez, por extrair da leitura desse curso de Miller uma ORIENTAÇÃO. Uma orientação que nos guie na tarefa de localizar no último ensino de Lacan, as ferramentas conceituais que possibilitem enfrentar as questões impostas pelo discurso do mestre contemporâneo, assim como as consequências clínicas decorrentes. Como método de trabalho, definimos como eixo de nossa investigação o tema: responsabilidade e formação do analista nos tempos que correm.
Como estratégia, a cada reunião, destacaremos uma passagem do texto de Miller, a partir da qual, um dos membros do Conselho articulará uma questão sustentada, a ser brevemente comentada por dois membros da Seção, com o objetivo de abrir e provocar a conversação.
Eis a proposta e o convite. Que bons ventos nos conduzam em um trabalho produtivo!