OS EMBUSTES DO DESEJO E A CONSTÂNCIA POSITIVA DO GOZO Maria Bernadette Soares de Sant´Ana…
ARTE EM SÃO PAULO – CSPonline#14
AS SUTILEZAS DO VINHO
Rejane Tito
Para além do oportuno e necessário debate sobre a triste e grave cena política brasileira e de tantas outras questões de nosso tempo problematizadas em Aquarius, o mais novo filme de Kleber Mendonça nos convoca pelo vinho! O vinho está em muitas cenas; parece também protagonizá-las. O vinho está na festa de aniversário de 70 anos da tia Lúcia, no almoço com os filhos, em casa ouvindo música, na volta da praia, no encontro com amigas, no dia de sol, na noite solitária, no sexo… O vinho na taça de algum personagem… Aparição colorida, sinestésica, sensorial, corpórea… Uma presença. O vinho convida, celebra, faz laço…
Neste mundo de Clara, pulsante e intensamente vivo, mesmo em meio à experiência da invasão agressiva do mercado, o vinho tonifica espírito e corpo, este marcado igualmente por uma invasão contida de um câncer. Falar de vinho neste filme é falar de corpos vivos, sexualizados, de uma erótica da vida, de sujeitos que experimentam o próprio corpo, não sem a presença viva dos outros, do enlace, do encontro, da palavra compartilhada… O vinho atesta a existência legítima e ética de corpos presos à vida, entregues e responsáveis por uma vida viva. Aqui o vinho marca uma contraposição de mundos, de possibilidades de fazer existirem os sujeitos e seus próprios corpos.
Assistindo Aquarius pensei num contraponto: A festa de Babette, produção dinamarquesa de 1987, dirigido por Gabriel Axel. Neste filme, a presença do vinho também contracena com uma importante cena política: a personagem, mulher que sai de Paris, onde vivia como chefe de um sofisticado restaurante francês, fugindo da França durante a repressão à Comuna de Paris. Babette chega a um vilarejo na Dinamarca, onde se emprega como faxineira e cozinheira na casa das filhas de um rigoroso pastor. Recebe, muitos anos depois, um prêmio em dinheiro e resolve oferecer um jantar à família e aos paroquianos em comemoração ao centésimo aniversário do pastor, já falecido. Todos se fartam do vinho e do banquete, generosa e prazerosamente preparado por Babette, com o dinheiro recebido pelo prêmio. O jantar, fartamente servido com vinho e pratos especiais, vivifica os corpos rigidamente disciplinados por uma cultura religiosa de negação do corpo. As cenas do jantar são de grande beleza, em que os personagens degustam o vinho e a comida, com seus aromas, sabores, cores, tornando-se, eles mesmos, belos, alegres e próximos.
Em Aquarius, o vinho também vivifica os corpos, os sujeitos, os encontros, em oposição também a outro mecanismo, não de controle e sacrifício do corpo, ditados pelo Outro severo e punidor do discurso religioso, como na comunidade onde se encontra Babette. Temos aparentemente um mecanismo oposto, o do imperativo de gozo – Goze! – apontando para uma (também?) mortificação dos corpos, só que agora em nome do gozo a qualquer custo e sem o Outro. Se lá o gozo advinha de um Pai que severamente regulava o corpo de seus filhos, controlando suas demandas de satisfação e direcionando-as ao sacrifício e à acedia, à prostração da vontade e dos prazeres, na cidade do século XXI, na vigência tirânica do mercado, imobiliário e outros, bem como de um discurso religioso que se alastra numa onda conservadora e fundamentalista, o que particulariza o gozo igualmente disponibilizado, não no altar, mas em prateleiras? Aqui parece que o imperativo é “Goze!!”, e o Outro se apresenta como obstáculo a esse gozo ilimitado, irrestrito, implacável, sem metaforizar-se a partir do corpo do outro.
Há um discurso que impele e sustenta essa forma de gozo dos sujeitos? Aquarius parece ser exemplar nisso. As leis do mercado, do capital, do business, dos negócios sem alma, já prenunciado por Faustos. No filme, religiosos ocupam a entrada do condomínio e parecem manter parcerias não muito claras com os homens de negócio, que fazem orgia no andar de cima de Clara e defecam na escada. Na antípoda do vinho, também o horror do cupim… insidiosamente infiltrado em Aquarius.
Em nome do pai tirano, não se dá lugar a alteridade. O outro precisa ser aniquilado, entrave para o gozo autisticamente centrado no próprio corpo. Submetido ao imperativo do gozo – presente tanto em “Não goze!” quanto em “Goze!” –, o sujeito é liquidado. Na companhia de Clara e Babette, no entanto, vemos que é pela via do desejo próprio que o sujeito pode brindar à vida e dizer não à morte. Evoé!!!