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A arte como terceiro
A Fonte (1919), Marcel Duchamp.
Flavia Corpas
Coordenadora da Comissão de Arte e Cultura das XII Jornadas da EBP Seção São Paulo
Patrícia Ferranti Bichara
Coordenadora da Comissão de Arte e Cultura das XII Jornadas da EBP Seção São Paulo – Membro da EBP/AMP
Neste último Boletim Gaio, gostaríamos de depositar, compartilhar e, quem sabe, transmitir algo que extraímos do trabalho na Coordenação da Comissão de Arte e Cultura das XII Jornadas R.I.S.o. Comissão nova e desafiadora, que relançou questões sobre a articulação entre arte e psicanálise, tendo como mote o riso e sua pluralidade no que interessa à psicanálise de orientação lacaniana.
Arte para quê?
O filósofo e dramaturgo francês Alain Badiou nos diz que a “relação entre psicanálise e arte é sempre um serviço oferecido apenas à psicanálise. Um serviço gratuito da arte”[1]. Nos atreveremos a deslocar essa afirmação da crítica maior proposta por ele, para ficar apenas com a ideia de que a psicanálise se serve da arte, e não o oposto, o que descambaria, como demarca o próprio filósofo, para uma psicanálise aplicada à arte, nada mais distante do que propõem Freud e Lacan.
Interpretar a arte é o que Freud sempre descartou, sempre repudiou; o que chamam psicanálise da arte é ainda mais descartável que a famosa psicologia da arte, que é uma noção delirante. A arte temos que tomá-la como modelo, como modelo para uma outra coisa, quer dizer, para fazer dela esse terceiro que ainda não está classificado, esse algo que se apoia na ciência de um lado e por outro toma arte como modelo.[2]
Portanto, atravessar o campo de tensão entre arte e psicanálise, ainda que possa abrir caminhos para a arte, como atestam pensadores deste campo – Didi-Huberman, Hal Foster, Hubert Dasmich, Rosalind Krauss, para citar alguns – para nós psicanalistas é da experiência analítica e do discurso analítico que se trata.
Interpretação, ready made e Witz
Em “A terceira”[3], Lacan afirma que a interpretação sempre deve ser o ready made[4], invenção do artista francês Marcel Duchamp, cujo percurso segue pela via do humor e ironia. “Nossa interpretação deve visar o essencial no jogo de palavras, para não ser aquela que nutre de sentido o sintoma”[5].
No Seminário 24[6], Lacan aproxima a interpretação da escrita poética e do Witz. Se a poesia pode servir de inspiração ao analista, ele nos adverte de que não se trataria daquilo que, da poesia, se articularia à noção de belo, tão comumente associada à arte – a despeito de todas as torções já operadas pela arte contemporânea, como é o caso do ready made. “Não temos nada a dizer de belo. É de uma outra ressonância que se trata, a ser fundada no chiste. Um chiste não é belo. Ele se ocupa de um equívoco”[7]. Neste sentido, poderíamos dizer que haveria algum parentesco entre o Witz e o ready made, em termos de acontecimento, o riso testemunhado no corpo, e no modo singular do uso da linguagem, num roçar, num sussurro de lalingua?
O Witz e suas relações com o inconsciente real
Na cena psicanalítica inaugurada por Freud, o riso estreia pela via do Witz[8]. Interrogando os saberes da psicologia e da estética, fazendo uma articulação entre linguagem e inconsciente, Freud busca o que há de específico no chiste, “cuja qualidade e sentimento de satisfação mostrado por aquele que ri – Freud insiste nisso – vem essencialmente do material linguístico”[9]. Um chiste produz riso e ganho de prazer. Do que se trata? Abre-se assim, a problemática do riso para Outra cena, o inconsciente freudiano.
Com Lacan, temos um segundo ato, cujo desfecho articula o Witz e a interpretação fora do sentido. Contudo, não se trata apenas de Outra cena, há algo a mais: não estamos mais na primeira tópica de Freud, e sim no último ensino de Lacan, que nos conduz ao inconsciente real.
Marcus André Vieira[10] demonstra com Lacan que o chiste produz uma nomeação que abre uma porta: é passagem a Outra cena. Mas por ser uma nomeação, ele também produz um a mais, uma via ao gozo. No Witz encontramos o que precisa ser dito, mas não se podia dizer e, ao mesmo tempo, o gozo. “É preciso examinar a Outra cena, face histórica, transferencial do inconsciente que a porta do chiste nos abre, assim como o “nada a mais a encontrar” do gozo […], o inconsciente real”[11].
Como passagem a Outra cena, o Witz nos dá, porém, a chance de pegar algo da experiência com o gozo e descarregá-lo no riso. Parece que é justamente por isso que, pela via da intepretação como Witz, uma análise tende a aumentar o número de risadas.
O ready made e a época do fim do belo
Durante muito tempo a arte funcionou como produtora de um objeto particular e idealizado no interior do que Lacan chamou de barreira do belo[12]. Sua função é encobrir o verdadeiro[13], que neste contexto pode ser entendido como a “verdade” sobre o gozo maciço, não simbolizável, atribuído ao real e à Coisa. Mas, ao mesmo tempo, a arte responde a uma exigência contraditória. Trata-se da função véu, “cobrindo e deixando adivinhar, ao mesmo tempo, o caos interno sob o qual se apresenta para o sujeito seu organismo e o horror do corte que nele efetua o sistema significante”[14].
Como demarca Marie-Hélène Brousse, hoje a barreira do belo acabou: é o objeto a, sem véu, que se adianta. Há um corte operado pela arte contemporânea, especificamente com Duchamp, considerado um dos seus precursores. Os objetos da arte contemporânea ultrapassaram a barreira do belo.
A idealização não governa mais a abordagem que a arte faz do objeto pulsional, este que “corre entre os objetos comuns e anima nosso mundo, nossos corpos, nossos hábitos, nossos estilos de vida e, portanto, nossos modos de gozo[15]. Na verdade, há um bom tempo, os artistas já nos ensinam quanto às modificações das modalidades de gozar de uma determinada época[16].
O objeto da arte não se apresenta mais como agalma, e sim a partir do objeto comum. Interpretando os objetos comuns, o artista os separa e os articula aos objetos a, interrogando os nossos modos de gozo[17].
Ressoam aqui as palavras de Lacan: “Não temos nada a dizer de belo”.
Produzir ondas: ressoar
De que outra ressonância se trata, a ser fundada no chiste, e que diz respeito à interpretação? Aqui o ready made nos ajuda, já que nos ensina que a interpretação psicanalítica deve se sustentar no jogo de palavras, para não ser aquela que nutre o sentido. A interpretação, nos diz Lacan, não se presta à compreensão, tal como o ready made, a poesia, enfim, a arte, ela “é feita para produzir ondas”[18].
Um chiste se ocupa de um equívoco, assim como um sonho e um ato falho. Contudo, diferente das outras formações do inconsciente, nos reconhecemos no chiste porque ele comporta lalíngua[19]. O Witz, aquilo que se diz a partir do inconsciente, participa do equívoco que é seu princípio, ou seja, a equivalência do som e do sentido[20]. O som aqui deve ser tomado não como registro sonoro, mas pelas vias da voz como objeto a, “tudo aquilo que do significante, não concorre para o efeito de significação”[21].
Ressoar, som e fora do sentido, estas parecem ser as vias pelas quais o Witz ecoa a surpresa, o inesperado, o absurdo que ele introduz ao manejar o material linguístico específico e singular do qual se ocupa a psicanálise, a palavra em sua dimensão de letra e lalingua.
Segundo Miller[22], o Witz [mot d’esprit], “é uma forma de espírito que não se eleva até o alto, mas se articula essencialmente na letra. Se há um espírito da psicanálise, ele está articulado, enraizado na letra”.
Concha Lechón[23] destaca a homofonia forçada por Lacan em “O aturdito” entre riso [rie] e nada [rien], colocação que vem na esteira do neologismo de Demócrito para descrever o átomo, den, o menos que nada. Assim, ela nos lembra que Lacan estaria jogando com o riso e o nada, esse nada do qual nos aproxima o percurso analítico, em suas voltas com o que causa o desejo, fazendo com que uma letra caia e, assim, se ri.
O som se propaga em ondas, perturbações periódicas, segundo a física. E o que nos testemunham Dalila Arpin e Esthela Solano[24], em situações que o riso irrompe em uma análise, é que rir pode dar a maior onda.