Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
#ecos do trabalho no Cartel* – (Des)Conexão e desenlace: consideração sobre a prática clínica com adolescentes
O sonho é a Via Régia para o Inconsciente, como nos ensina Freud. Dessa forma, tomo a adolescência como a estrada que me permite abrir questões sobre o trabalho da psicanálise em nossa época. É ao lado das novidades que se apresentam nesta clínica que compartilho algumas questões que penso sobre o enigma que enlaça corpo e sintoma, na perspectiva de articular como participa a palavra na direção de um tratamento. O que faz marca na subjetividade dos jovens hoje?
Entro no tema da VIII Jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise da Seção São Paulo levada pela investigação teórica que esta fase de transição me permite encontrar na relação entre o sujeito e o Outro. “O Outro é o lugar em que se situa a cadeia significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. E eu disse é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão.” [1]
Recorto o significante (des)conexão: na adolescência estamos justamente no estágio do deselance do Romance Familiar. Uma “trans-formação” em que o sujeito pode se desligar do objeto primordial de amor para tomar posição frente a um objeto eleito como causa de seu desejo e construir uma pergunta sobre o que move a vida.
Para sustentar essa articulação sobre o desenlace, e o que dele me interessa até aqui, escolho o conceito de repetição desenvolvido por Lacan em seu seminário livro 11, Os quatro conceitos fundamentais, por dois aspectos: primeiro por ser por meio deste conceito que Lacan introduz o Real e por ser o sujeito, efeito dos significantes, reflexo do binômio operador ( S1 S2 ). Tomo como âncora o desenvolvimento dado por Lacan ao fragmento do sonho: “Pai, não vês que estou queimando?”, ponto precioso de demonstração onde o simbólico não recobre, por sua vez, todo o real. Escuto essa passagem interessada no modo como os significantes marcam um corpo e operam nas bordas da estrutura psíquica. “O lugar do Real, que vai do trauma à fantasia, na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primordial, de determinante na função da repetição. Aí está o que precisamos demarcar agora.” [2]
Neste aspecto, vale destacar que, mais ou menos, sabemos em que idade essa fase de transição da infância para a puberdade começa; contudo, em pleno século XXI, não podemos afirmar onde ela termina. Daí a importância para a psicanálise de tomarmos a investigação caso a caso.
A vida cotidiana sofre modificações: são novas as configurações familiares, as leis tornaram a escolarização obrigatória e o Estado judicializa o impasse. A incidência do discurso da ciência, que propõe um para todos, deixa de fora a singularidade de cada um e produz segregação. O capitalismo com o excesso e a velocidade contribui com os modos de gozo, os objetos não são feitos para durar e sim para consumir. Assim o tempo para a construção das tramas de ficção, presentes na novela familiar, também estão afetadas.
Sirvo-me dos efeitos de formação na clínica das psicoses, que foi por onde tudo começou na Orientação Lacaniana. Clínica essa cujo índice da foraclusão do significante do Nome do Pai revelou todo o trabalho possível, tomando o inconsciente estrutural de Lacan como bússola na localização do diagnóstico, portanto, a posição do sujeito e sua possibilidade ou não de ser representado na cadeia de significantes em um trabalho sob transferência.
Do ensino de Lacan, observar os índices do desencadeamento é o que me faz pensar o desenlace, conexões e (des)conexões na construção de cada caso clínico e seguir na disciplina de testemunhar a invenção de cada um, para empreender o tratamento do Outro. Como o analista está com seu desejo, frente às telas virtuais, novas paisagens do encontro com o sintoma e com os modo de gozo? Há no adolescente, uma dificuldade de fazer uso dos discursos estabelecidos e dos ideais, de modo a organizar o real da sexualidade que se manifesta.
Sabemos, com Freud, que tudo sobre o amor começa no Édipo. Trata-se, como afirma Damasia Amadeo de Freda [3], de um tempo de “rebeldia orientada”. Com os transbordamentos presentes na clínica, diz Damasia, estamos no tempo da “rebeldia desorientada”. Passamos de uma fase na clínica da metáfora paterna para o desenvolvimento epistêmico de Lacan a respeito da clínica do sintoma. Tempo no qual os três registros se apresentam análogos.
Entre Nome do Pai e sintoma, retorno para a compulsão à repetição, verifico a angústia que se manifesta na sessão, no gozo não falicizado, na agitação do corpo, na auto-mutilação, no ato infracional, no uso abusivo de substâncias, na zwang dos jogos e “WhatsApp”, na violência sexual ou na tentativa de suicídio. Nesta clínica com adolescências onde prevalece o imaginário e tão pouco podemos contar com o simbólico, é preciso apostar na aventura da transferência, para que cada um possa construir o seu laço com a palavra.
Como abordar o Real presente e em jogo na experiência? Como o analista entra em cena?
Cada adolescente comparece a seu tempo, fala pouco sobre suas tramas de amor, todavia, sustenta uma presença no tratamento. As “selfies” aparecem como um novo funcionamento do estádio do espelho: aos poucos mostra o trabalho que o corpo dá e oscila entre silêncio e falação, marcas de excesso.
Quando diante de uma urgência subjetiva, a voz de Lacan: “J’attends. Mais je n’espepère rien”[4]: “Espero e não tenho expectativas” me orienta no discurso. Essa frase opera em mim como uma chave que modula a instalação da transferência com cada adolescente e a mantenho sempre no bolso, assim posso abrir com eles, o meu desejo de saber sobre a cadeia borromeana.
Às vezes, me parece que a clínica mantém a estrutura de um trapézio fixo de balanço duplo, cuja a modalidade do número apresentado compõe o tempo aéreo e não apenas o tempo em solo. Imagem que empresto da linguagem artística do circo e que traduz, ao meu ver, o cenário onde o tratamento se desenrola.
Quando um adolescente chega “causando” é preciso apostar de modo a entrever a cena e poder introduzir algo da palavra no que se apresenta no registro do imaginário, restaurar com eles uma suposição de saber, com o apoio do simbólico. Ora estamos nos mastros e acompanhamos o seu corpo, ora como rede, acolhendo uma palavra que pode apontar para uma interpretação.
“Tudo que, na repetição, varia, modula, é apenas alienação de seu sentido. (…) Mas, este deslizamento vela aquilo que é o verdadeiro segredo do lúdico, isto é, a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma.(…) Esta exigência de uma consistência distinta dos detalhes de sua narrativa significa que a realização do significante não poderá jamais ser bastante cuidadosa em sua memorização para chegar a designar a primazia da significância como tal.”[5]
Apostamos estar ali para despertar e para acompanhar o trabalho dessa rede de significantes, enquanto trama e teia, a possibilidade de tecer algo simbólico frente ao real. É ali que esperamos sem expectativas que o sujeito compareça ao seu tempo com uma elaboração que talvez inclua seu sexo.
A cada sessão, uma chegada e uma saída, conexão e desconexão para um possível laço; um tempo sempre inédito e um minuto a mais para sustentar uma experiência pela palavra e o que ele escuta no que vem ali dizer, que pode afetar o sintoma. Se a transferência, por assim dizer,” inventiva”, se instala, cada pequeno encontro com o analista já é contabilização de gozo. Movimento do sujeito que opera em busca de uma nomeação capaz de produzir uma leitura sobre o que lhe é mais singular: construir uma nova aliança entre o seu corpo e sua palavra na cena da vida.
Emelice Prado Bagnola