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Paola Salinas (EBP/AMP)

O tabu da virgindade é abordado e justificado devido à hostilidade e ao desejo de vingança que o defloramento provocaria. Ao desenvolver correlações sobre o tema, Freud destaca a frigidez como aspecto importante na vida sexual da mulher, articulando ao Édipo e ao complexo de castração. Associa tal hostilidade, na base do tabu, à inveja do pênis e ao protesto de masculinidade.

A valorização da virgindade seria a extensão do direito de propriedade à mulher, incluindo seu passado, o que é natural e indiscutível para o homem da época; daí a incompreensibilidade do tabu presente nos povos primitivos, os quais, para evitar a hostilidade do defloramento, o fariam em rituais antes do casamento.

Tal valorização se associa à servidão sexual, dependência de uma pessoa com quem há envolvimento sexual, base do matrimônio, explicada em função da repressão sexual feminina, chegando ao sacrifício dos interesses pessoais.

Contudo, tal valorização também ocorre nos povos primitivos, ao ponto do defloramento ter se tornado tabu, proibição de cunho religioso frente à presença de um perigo, ainda que psicológico, segundo a definição freudiana.

Freud toma o horror à efusão de sangue e a angústia frente a todo ato primeiro, como possíveis motivos para o tabu. Contudo, destaca a importância do defloramento em relação à resistência sexual vencida e o fato de ocorrer apenas uma vez. Estamos diante de um acontecimento intenso e único, que tem o peso de um ato.

Este ato traz uma nova significação pelo furo no saber que engendra, presença de algo incompreensível e inquietante, por vezes tratado em rituais de passagem.

Crawley fala da abrangência do tabu em quase toda a vida sexual: “quase poderia se dizer que a mulher é um tabu em sua totalidade. Não somente em situações derivadas da sua vida sexual, menstruação, gravidez, parto e puerpério”2, exemplificando pela necessidade de afastamento das mulheres, em alguns povos, na época de caça, guerra ou colheita.

Verificamos nesse afastamento um temor fundamental à mulher. Esta ocupa o lugar de enigma, e algo disso persiste. A mulher encarna tal diferença em seu corpo.

Neste ponto, Freud fala do narcisismo das pequenas diferenças: “cada indivíduo se diferencia dos demais por um tabu de isolamento pessoal que constitui as pequenas diferenças entre as pessoas, que quanto ao restante são semelhantes, e constituem a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles”3. Poderíamos hipotetizar a repulsa narcisista à mulher.

Embora Freud diga que o tabu com a mulher em geral não esclarece o tabu da virgindade, abre uma questão sobre o lugar do feminino.

Os motivos levantados não explicam o tabu, a intenção de negar ou evitar ao marido algo que seria inseparável do primeiro ato sexual, mesmo que dali surja uma ligação intensa da mulher com o marido.

A gênese do tabu tem uma ambivalência original, que podemos articular à alteridade que a mulher representa. A relação entre o primeiro coito e a frigidez, estaria de pleno acordo com o perigo psíquico que o defloramento traz à tona. O gozo, pelo avesso, a frigidez, marca um funcionamento pulsional outro, articulado à proibição frente à sexualidade feminina.

Freud destaca a ofensa narcísica que o coito pode assumir pela destruição do órgão (hímen) e pela perda do valor sexual da mulher dele decorrente. Com maior importância fala do poder da distribuição inicial da libido, a fixação intensa da libido em desejos sexuais infantis. Nas mulheres, a libido estaria ligada ao pai ou ao irmão, sendo o marido sempre um substituto.

Destaca a inveja do pênis anterior à fase da escolha do objeto amoroso, mais próxima do narcisismo primitivo do que do objeto de amor. Haveria, portanto, algo do narcisismo feminino em jogo nesta hostilidade, hipótese que podemos aprofundar.

__________________________ 1 FREUD, S. “O tabu da virgindade (Contribuições à psicologia do amor III) (1918 [1917]). In: Edição Standard. Vol. XI, Imago: Rio de Janeiro. 1970. 2 _______. Op. Cit. P. 183. N.A.: Freud refere-se à Crawley (1902), Ploss and Bartels (1891), Frazer (1911) e Havelock Ellis [1913]. 3 _______. Op. Cit. P. 184.

O laço entre o amor e a coragem – Fernanda Otoni-Brisset

(Foto: Gian Lucca Amoroso)
09 de maio de 2018 (EBP-SP)

O que do encontro se escreve, livro de Pierre Naveau, nos adverte que “a mola do encontro – o real do inconsciente – não deve ser esquecido.”[1] Isso nos ensina a ler a lógica do gozo nos encontros entre seres falantes. O livro conversa de perto com a Jornada deste ano, na EBP São Paulo: “Amor e sexo em tempo de (des)conexões.”

A lógica do encontro se articula, indiscutivelmente, com as conexões e desconexões, com o que não existe e o que insiste, com os fios que tecem um laço e o furo que desse laço participa. O binário Amor e Sexo interroga essa costura. Nem sempre amor e sexo andam juntos, aliás reunir esses dois em um instante é raro! O que verificamos, não raro, é a experiência de amar desconectada do sexo e a experiência do sexo sem amor. Mesmo quando se ama e se faz sexo com o parceiro, a disjunção está lá. É possível o encontro entre amor e sexo? Uma pergunta! Mas, seja como for, o que nos adianta Pierre Naveau é que para um encontro acontecer “é preciso, diz Lacan, coragem, e até mesmo, J.-A. Miller não hesita em dizê-lo, heroísmo.”[2]

Como ler essa provocação lacaniana?

Para início de conversa, é preciso falar de amor…

Em psicanálise, fala-se! Fala-se dos outros, fala-se sobre o que se pensa ser, sobre o que não sabe de seu ser, sobre a falta a ser, sobre o ser que sofre. “‘O que se faz no discurso analítico é falar de amor’. Tenho em meu ouvido esta afirmação de Lacan: ‘Falar de amor é, em si mesmo, um gozo’”[3]. Um gozo que, dirá Lacan no Seminário 20, “só se interpela, só se evoca, só se suprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência”[4]. O que se faz no discurso analítico é falar do amor que trabalha sem cessar para reunir Um gozo impossível de dizer a uma aparência de ser. Um para-esser (par-être)! A substância que vive no ser é incansavelmente incabível e fugidia, não cessa de tentar para-esser e fracassar; o amor é esse esforço do ser falante de conjugar o que não se conjuga: amor conjugal! Lacan conjuga assim o inconjugável: “eu para-sou, tu para-és, nós para-somos, e assim por diante”[5].

Bem fazemos de mergulhar no seminário “O ser e o Um” de Jacques-Alain Miller. Lacan nos leva a considerar que do ser jamais temos nada. “O ser se apresenta sempre por para-esser.

Do lado do ser estão as formas desse para-esser, que não é. E, do outro lado, o impossível de dizer, mas que existe, insiste e itera: o UM que é. Il y a de l’Un! Esse Um que só se apresenta por esse para-esser, ou seja, “o ser na lateral”[6]. O equívoco participa desse ajuntamento entre o Ser e o Um, entre a forma do ser que não é e o Um que é.

Um conto: dois antigos colegas, amigos de faculdade e nada mais, se encontram por acaso e descobrem que vão ao mesmo baile de máscaras. Ele vai de Pierrô, ela de Colombina. Lá se encontram e, inexplicavelmente, se encantam por aquele ser ao lado… sabe-se lá por qual mistério. O baile acabou, mas eles foram mais longe. Amaram-se como se não houvesse o amanhã. Ao acordar, perceberam-se ainda mascarados. Ao cair das máscaras, descobriram que ele não era ele e ela não era ela.

Não há relação entre as formas fractais do ser e o que é. Esse real localiza e atualiza, em um instante qualquer, que é enquanto hiância que a causa do desejo participa da estrutura do ser falante. Lacan, em as rodinhas de barbante, ensina que, “para todo ser falante, a causa do desejo é estritamente (…) equivalente (…) à sua dobradura, ao que chamei de divisão do sujeito”[7]. Essa dobradura abre, em sua divisão, a hiância que dá vida à máscara e nos dirige à clínica do parlêtre!

Não se trata aqui do encontro entre um sujeito e o Outro, mas comecemos por dizer que o encontro que nós estamos tentando ler, nas (des)conexões entre o amor e o sexo, resulta dos arranjos e desarranjos do parlêtre com seu Outro.

De que Outro se fala?

Éric Laurent, em Barcelona, cita Lacan de 1977 – sobre a noção de Outro marcado “com uma barra que o rompe: (A/)”[8]. Ao fazer incidir sobre ele a barra, o Outro é posto em questão. Não há uma relação necessária entre o Um e o Outro. Como mostra o conto, o Outro, de verdade, tem estrutura de ficção. A relação com o Outro não há de todo. Entre dois, há o Um e o a, é sempre “Um mais a[9]. Uma análise, dirá Lacan, “enuncia que o Outro nada mais é que esta duplicidade. ‘Há Um, mas não há aí nada de Outro’”[10]. Sigamos essa pista, “radical e sutil”[11].

Miller, em 1998, indica essa mudança de vertente e nos propõe irmos além. O Outro do significante é esvaziado de gozo, portanto, mortificado. Ele nos apresenta outra concepção de Outro, nos convida a alçar o Outro como corpo vivo. Nessa perspectiva, o corpo do Outro é um meio de gozo; o Outro “é tanto o corpo próprio como o corpo de outrem”[12]. Este é um novo modo de conceber o Outro. O Outro do parlêtre é, então, um parceiro do gozo – um parceiro-sintoma. Um parceiro cujo agalma é efeito da miragem que o objeto causa evoca.

Agora, sim, podemos ler outra vez em Lacan: “Há Um, mas não há aí nada de Outro”. Não há nada de Outro como lugar do significante puro, o que há é apenas e tão somente um parceiro do gozo. E não é pouca coisa esse nadica de nada aí. Miller, no osso, mostra que “o parlêtre, como ser sexuado, faz parceria não no nível do significante puro, mas no nível do gozo, e essa ligação é sempre sintomática”[13].

Quando pessoas de qualquer sexo se encontram, como o parlêtre aí concernido se serve do Outro no circuito de seu gozo? Como se conecta a um parceiro-sintoma? Isso não se ensina. Experimenta-se. Esse Outro, dirá Lacan, “só se atinge agarrando-se ao a, causa do desejo, é também do mesmo modo à aparência de ser que ele se dirige. Esse ser aí não é um nada. Ele é suposto a esse objeto que é o a[14].

É o que mostro nesta pequena vinheta publicada na revista Curinga, n. 31 ( 2010). A cena tem início por “um convite para ela jantar com um casal de amigos e um amigo deles. Rapidamente, estaria frente a uma enorme bandeja de ‘frutos do mar’. Como comer aquilo?” Com nojo, ela parece indagar como se tem coragem de comer isso. “E escuta o amigo do casal sugerir-lhe que seria mais fácil com as mãos. ‘Mas que porcaria’, pensa alto. O estranho, de soslaio, a alcança ao dizer: ‘francês adora uma porcaria’”[15]. Uma palavra que fere e desassossega no corpo a experiência do encontro com o Outro com aparência de ser. Um dizer que fura a cena e alcança a outra coisa. Naquela noite, ela faz um sonho: “passava mal, intoxicada com a porcaria borbulhando na barriga”. Ao elevar a coisa até a altura da goela, uma amiga íntima olha e diz: “não vejo bem se é resto de frutos do mar ou se é carne da sua garganta mesmo” – é preciso ver um especialista. “O analista deu uma olhadinha de soslaio no fundo da boca aberta. Sorriu e disse: Nada a fazer, siga”.

O parlêtre passa a suspeitar aí, por essa janela (greta do Outro, de soslaio), as cores do objeto que perscruta. O que aí se descortina dá a ver a lógica por onde a insistência de Um gozo, que não cessa de não se escrever, se localiza e passa. O que aí se experimenta é um real que faz par com o suposto a, cuja aparência de ser se ama. Aliás, “o que vem em suplência à relação sexual que não existe é o amor”[16]. E por essas veredas, no encontro com o Outro, faz a-paresser o que experimentamos e nos interessa.

Uns separados

Miller, em março de 2017, esclarece: “A perspectiva do sinthoma como Um produz Uns separados, não articulados, há aqui um radical ‘a cada um seu sintoma’… que convida a apreender cada um como um Um absoluto, isto é, separado.”[17] Esse Um trabalha sozinho e, o que do encontro se escreve, entre Uns, parlêtres, homens e mulheres, acontece por onda de ressonância, ao modo de uma revelia forçada.

Parada necessária aqui para sublinhar que, para nós analistas, “homem” e “mulher” são significantes e, como tal, não têm sentido algum. A forma insensata com a qual o real do gozo se resolve é única para cada um, na variedade colorida dos encontros com seus matizes opacos. “Lacan irá dizer que não há nenhuma maneira de repartir homens e mulheres através de seus atributos.” Há algo que “é puro real que se engancha diretamente com o corpo e não com a imagem. Engancha-se com o corpo nas experiências de gozo que são dissimétricas”[18], seja do lado homem ou do outro lado.

Como pensar esse enganche por esses dois lados? Pierre Naveau, a partir do ensino de Lacan, quando ele fala que é o estrupício do falo[19] que impede o homem de gozar do corpo de uma mulher, nos esclarece que não é a biologia que o orienta. Não se trata de um homem que tem o pênis ou do corpo de uma mulher, que não o tem. Agarrar-se a este estrupício que mexe sozinho, penduricalho do corpo, agarrar-se aí não é um gozo exclusivo do portador do pênis. Nada mais democrático do que o idiota casamento com o estrupício! O exemplo do enganche do lado homem segue, então, para Lacan, a lógica do gozo masturbatório. “O corpo próprio se revela, ele mesmo, o corpo do Outro, no momento do gozo.”[20] Ou seja, “um gozo se produz no corpo do Um através do corpo do Outro”, por um enganche a esse pedaço do qual se faz posseiro, pelo usufruto do objeto. Ou seja, para “todo x”, o gozo fálico.

Miller esclarece que para Lacan, a estrutura desse ““Todo x” determina, necessariamente, que o parceiro-sintoma – do lado homem – é o pequeno a”[21]. Se o estrupício do falo o impede de gozar do corpo de uma mulher é porque, agarrado a esse pedacinho de gozo, ele se defende de se abandonar a esse outro gozo… no infinito de um furo sem fundo.

Nesse caminho, vimos que, mais além do gozo fálico, há um Outro gozo. Um gozo que se solta do objeto e se jubila no furo de sua ausência. Do lado do homem, há um outro lado, não-todo inscrito do lado homem. Este é o mistério da mulher, seu segredo, e sobre isso ela não solta uma palavra[22], sublinha Naveau, em Lacan. Como ler esse mistério da mulher? De que mulher Lacan está falando. Trago-lhes uma citação dele:

O que quer uma mulher? Freud adianta que só há libido masculina. O que quer dizer isto? – senão que um campo, que nem por isto é alguma coisa, se acha assim ignorado. Esse campo é o de todos os seres que assumem o estatuto da mulher – se é que esse ser assume o que quer que seja por sua conta. Além disso, é impropriamente que o chamamos a mulher, pois (…), a partir do momento em que ele se enuncia pelo não-todo, não pode se escrever. Aqui, o artigo a só existe barrado. Esse A barrado tem relação com o significante A barrado. O Outro (…) é aquilo com que fundamentalmente a mulher tem relação. (…) a mulher é aquilo que tem relação com esse Outro. (…) O Outro como barrado.[23]

Eu leio essa frase assim: o outro lado do lado homem, o lado mulher, é, em Lacan, o que tem relação com o furo, com a indeterminação. O lado mulher, o não todo fálico, tem relação com o furo e com o gozo que por aí se passa infinitamente. Esse outro lado implica num saber-fazer com o furo. A mulher não existe, A mulher é rompida. A mulher é furada. O lado mulher do parlêtre, de qual gênero for esse ser, tem uma relação com a barra, ou seja, tem como parceiro-sintoma o Outro atravessado pelo furo.

E aqui vem uma citação de Lacan que ganha todo seu valor para o que nos interessa aqui: “Esse A/não se pode dizer. Nada se pode dizer da mulher. A mulher tem relação com S(A/), e já é nisso que ela se duplica, não é toda, pois por outro lado, ela pode ter relação com o falo.”[24]

Conexão sinthoma

Muito interessante onde Lacan nos leva… a isso que se duplica em cada ser falante. Eu leio aqui, nessa dobradura, dobradiça, nisso que se duplica, a experiência da conexão que suporta o sinthoma, onde os dois lados da tábua da sexuação, que palpitam em cada Um sozinho, se imbricam através desse conector que conhecemos por falo.

Entre o a e o furo, entre o gozo fálico e o outro gozo, entre o lado homem e o outro lado, essa dobradura participa do sinthoma em cada Um. De um lado, o que se infinitiza, “o que quer que seja”, e não se pode nada dizer, mas se experimenta. Mas a relação aí é não toda, pois pode ter relação com o outro lado que aí joga sua partida. O lado não todo do parlêtre não é sem relação com o falo.

Responsável por verificar o real do gozo e o fixar numa ficção que participa de diversas formas da nossa clínica, desde a identificação, fantasia, romance, semblante etc… – o falo é como um fiador de um gozo, um “gozo que não pode ser mortificado, não pode ser anulado”[25]. Em Lacan, esse mais de gozo, pedaço de corpo vivo, passa a contar como objeto a. “O pequeno a é uma unidade de gozo, é uma unidade discreta de gozo, separável, contabilizável.”[26] Por isso, o falo é um conector. Um significante que não quer dizer nada, mas funciona como um conector de Um gozo a um quadro, uma forma de ser, um enquadre significante por onde o objeto se suspeita por uma miragem e por aí se goza. Esse Um do gozo enquadrado é o que conhecemos como gozo fálico. “O que é isso? – pergunta Lacan – senão o que a importância da masturbação em nossa prática sublinha suficientemente, o gozo do idiota.”[27]

Já do outro lado, o lado mulher força o parceiro “a tomar a forma do não todo”[28] e lhe impõe experimentar um gozo ilimitado, por exemplo, sob a forma de uma demanda de amor infinita, uma queixa indeterminada e incurável que ao se servir do furo no Outro, ali mergulha e constata que o todo não está formatado, que o todo não faz Um. Para mim, foi esclarecedor dar-me conta que o gozo que se realiza na insatisfação eterna é efeito desse Outro gozo que transborda do lado da mulher. Sem bordas que o limite, tal gozo flui de forma infinita, seja pela via da demanda insaciável ou, com um pouco de sorte e às vezes, só às vezes, pelo abandono a um gozo no corpo, que não se sabe, não se diz uma palavra, mas que se experimenta e que se perfila sob um fundo do silêncio. O gozo místico é um exemplo que Lacan nos entrega, mas não precisamos ser tão religiosos para confirmar sua existência. A esse Outro gozo, Lacan deu o nome de gozo feminino.

Se o falo não está lá para verificar, localizar e fixar o gozo num quadro, o real do gozo se infinitiza, sem diques, como nas psicoses. Outras próteses serão exigidas. O gozo transborda quando o falo não está lá como referente, borda, litoral ao infinito. Sua potência o empuxa à mulher. Se nesta clínica o encontro sexual é adiado, é como defesa ao empuxo; e a clínica do louco infrator nos ensina que o ato se revela uma resposta radical que tenta colocar um ponto de basta a esse transbordamento infinito.

Fato é que, para o grampo se firmar como ponto de capiton, será preciso reunir a esse encontro do real do gozo com a miragem do objeto, um ponto de basta – o selo de um significante qualquer que o localize, o fixe, o ordene junto a um corpo que tende a escapar. O falo é esse conector privilegiado, mas qualquer gambiarra que venha em seu lugar tem função de amarração. É o que a clínica do parlêtre nos ensina!

O encontro entre Uns sozinhos e suas (des)conexões, como Naveau nos faz ler nosso tempo, por um lado, se agarra ao semblante de objeto segundo a lógica fálica ou a um enquadre qualquer que lhe sirva de suplência, e, d’outro lado, se precipita no furo no Outro por onde escoa o infinito do gozo. Isso leva Lacan a acrescentar ao que já vimos até agora, que, do lado homem, o parceiro sintoma é o objeto a e “tem a forma do fetiche”; do Outro lado, a parceria é com A/ na “forma erotomaníaca”[29] – o que me fez pensar que se nutrir com o que há no lugar do que não existe é a vocação antropofágica do parlêtre. Mas o que não muda, seja qual for o lado com o qual o parlêtre agarra seu parceiro ou nele se abisma, é que o encontro é sempre autoerótico, solitário, autístico.

O que se escreve é na desordem de uma contingência

Entre homens e mulheres, parlêtres, há relações contingentes, não necessárias, que deixam marcas. No instante do encontro alguma coisa se escreve: “uma ligação inédita ou sem precedentes se destaca sobre o fundo da indizível opacidade sexual[30], e o que aí se escreve decorre da desordem de uma contingência[31], dirá Naveau. Ali, a jaculação de uma palavra que fere, queima e marca, faz quiçá… um rubor, um desfalecimento, um arrebatamento, um acontecimento de corpo, ou mesmo um sonho, como no caso citado!

O acaso coloca o parlêtre diante de um Outro que não é, mas que a-paresse sê-lo, um encontro de corpos, miragens e palavras. A relação não existe entre os termos, mas é mesmo por essa equivocação que algo ressoa, cintila e enlaça. “É enquanto modo do contingente que ela para de não se escrever”[32], dirá Lacan. E a chave para ler esse enigma está no saber inconsciente, um saber que articula. Articula o quê? O saber inconsciente articula um saber-fazer “com lalíngua – ou convém acrescentar, diz Pierre Naveau – daquilo que não se consegue não fazer com ela”[33] que insiste, que itera, e que resta inassimilável, mas que no instante do encontro é o que cintila e força o clic. Quando uma palavra fere e deixa rastro no corpo, é alíngua que ressoa jubilante. Um acidente que faz aí um corte epistemológico, dirá Naveau, um saber novo advém desse corte, uma irrupção de gozo faz saber do que aí vibra.

Quando o lado homem toma a dianteira, ele parece saber abordar o objeto a – causa de seu desejo – no corpo do Outro. Ele visa a – a porcaria! Tal abordagem é, por estrutura, perversa polimorfa. Se o outro lado, o da mulher, nisso se desperta, o que se sabe do gozo que aí se experimenta? Há um furo no saber, dirá Naveau. Sabe-se quase nada, “a não ser que quando isso lhe acontece(contingência) ela o experimenta. É um acontecimento de corpo”[34] que testemunha o furo com o qual o saber está às voltas.

Pierre Naveau vai nos mostrar que, no real, algo se encontra, algo sobre o qual há um saber; um saber que não se fala, mas que se experimenta e por ali algo se articula, se liga, se conecta e se escreve no destino de cada um. A relação sexual não existe, mas no instante do encontro a inexistência não obsta que se localize esse Um que passa pelos poros da equivocação. Algo vibra no ser que fala, marca de um saber que encarna seu traço e sua via de miragem. E quando isso acontece, não há nada a dizer. Falar disso que não há, é falar de amor… “cartas de almor”.

O verbo almar, invenção lacaniana, toma o outro como sua alma. “A alma alma a alma” – por um lado a reciprocidade e, do outro, um nada que ressona. O amor não está no corpo ou pensamento, é coisa da alma. O amor é disjunto do gozo, “o amor é separado do sexo por meio de um corte”[35]. Para Lacan, “quando a gente ama, não se trata de sexo”[36]. O amor é, então, “uma ética fora do sexo. Se o amor é fazer signo, o gozo não é signo do amor”[37].

Mas, “o hábito ama o monge”, ele o alma, anota Lacan. Mas, “o que há sob o hábito, e que chamamos de corpo”[38], não é o monge. Aí, voltamos ao início, por (a)para-esser esse resto, que dá vida ao oco do ser. Uma contingência que se encarna e, por um triz, cessa de não se escrever – toma o corpo, o excita, deixa rastro, se escreve como “contingência corporal[39] lá onde se verifica uma efêmera conexão, no instante de um lapso, entre o falo e o que quer que seja. Por essas e outras…

“Carece de ter coragem, carece de ter muita coragem…”

“É que diz o Menino em meio à travessia do Rio São Francisco para o pequeno e medroso Riobaldo.” Esse menino é Diadorim e, com Naveau, sabemos que ali é o lado mulher que coloca “a prova, do lado do homem, a coragem que lhe é necessária para enfrentar o saber com que ele alma (âme)” “A mulher só pode amar no homem – seu parceiro-sinthoma – a maneira como ele enfrenta o saber com que ele alma (…) o saber com que ele é”[41], ensina Lacan. Eu o leria assim: ela ama como ele enfrenta o que ele é. Como enfrenta o Um. Um gozo que não sabe se dizer. Trata-se de enfrentar o furo no saber com que ele é. O que quer que seja o que ele é, não se sabe de todo, é não todo. E o que é esse Um que faz furo no saber senão um gozo do qual não se sabe e não se diz uma palavra?

Naveau, com Lacan, sublinha que uma mulher ama em seu parceiro a coragem! E eu acrescentaria a coragem com que enfrenta A mulher furada, que enfrenta esse furo por onde escorre um gozo real. A coragem com que enfrenta o infinito. A coragem do parceiro “está de fato, situada por Lacan, na junção do saber e do não saber”[42], nesta hiância; a coragem está em enfrentar a desordem dessa junção mais íntima, esse salto no abismo. E carece de coragem… muita coragem, diria Diadorim!

Naveau conclui dizendo que do lado mulher há de se ter coragem para enfrentar a perversão do homem, e, do lado do homem, coragem para enfrentar o enigma da mulher. Já que o laço entre amor e sexo não há, o laço do amor com a coragem se faz quando se consente em dar ao parceiro-sintoma, alguém que não é, o que não se tem, esse oco, com a condição/aposta de num instante qualquer poder ali se abandonar, se abismar. Ama-se a coragem para enfrentar isso que em si acontece, que nada sabe ou tem a dizer, mas que se experimenta, como parlêtre, seja homem ou mulher. Coragem de se entregar a esta experiência que ultrapassa as bordas do sabido, que transborda, sendo infinito posto que é chama. E dura pouco… o instante de um lapso, quando na a-travessura das noites eternas, se encontram e se enfrentam perversão e enigma.

Logo depois, invariavelmente, em um canto qualquer do teatro da vida cotidiana, encontrar-se-ão dependurados, em amareladas cartas de almor, os traços inevitáveis da sua inexistência. Mas amanhã é outro dia para quem tem coragem, dirá Scarlett O’Hara. E se o amor é separado do sexo por um corte, não é impossível que, na desordem de uma contingência, surja a coragem de abismar-se nessa greta.

A condição do encontro, dirá Naveau, é portanto, que o sujeito aceite que sua defesa contra o infinito seja perturbada pelo que, justamente, o divide, ou seja, pelo que o surpreende.

No encontro entre esses Uns – é o que gostaria de lhes propor enquanto questão, para concluir – o que está em jogo nas (des)conexões entre os parlêtres, no nosso tempo, não é mais a castração, mas a relação de cada Um com esse Outro gozo, “aquele sobre o qual a mulher não solta uma palavra”[44]. O gozo do Um infinitamente só. Com isto Lacan nos desperta: “há um gozo do corpo que é (…) para além do falo”[45] e que, mais do que nunca, marca a subjetividade de nossa época, marcada por esse mais além.

É onde nos leva Oswald de Andrade, neste poema sobre o seu casamento com a escritora comunista Patricia Galvão, quando se separou de Tarsila do Amaral.

1930, 5 de janeiro. Nesta data contrataram casamento a jovem amorosa Patrícia Galvão e o crápula forte Oswald de Andrade. Foi diante do túmulo do Cemitério da Consolação, à rua 17, n. 17, que assumiram o compromisso. Na luta imensa que sustentam pela vitória da poesia e do estômago, foi o grande passo prenunciador, foi o desafio máximo. Depois de se retratarem diante de uma igreja. Cumpriu-se o milagre. Agora sim, o mundo pode desabar.

Agora todas as horas de Pagu são minhas. Eu sou o relógio de Pagu. Ela gosta e vive do meu ponteiro. Um ponteiro só. Desde o dia que ela entrou na casa em que eu morava, eu saí com ela, vivi com ela. Fui primeiro o minuto, depois as 5 horas, depois a meia-noite. Quando morrer, serei a noite de Pagu. Hoje sou o dia de Pagu. Se Pagu soubesse o que tem sido a minha vida desde maio! Só vê-la, só merecê-la, só alcançá-la. Até o último maio da minha vida, procurarei tê-la, alcançá-la, merecê-la. Quantas noites passei pensando nela. Quantas manhãs acordei os olhos nela. Renovei toda história da terra e a história do homem na terra! Que digo? Do homem no céu. Que amor dá céu!

Pagu quer que eu escreva mais. Escrever o quê? Que esta noite tenho o coração menstruado. Sinto uma ternura nervosa, materna, feminina. Que se desprega de mim como um jorro lento de sangue. Só um poeta é capaz de ser mulher assim. [46]

Um esclarecimento, que devolve a cada um o seu exílio, neste mundo no qual nos abandonamos.


 

[1] NAVEAU, P. O que do encontro se escreve. Belo Horizonte: Editora EBP, 2017. p. 39.
[2] Idem, p. 35.
[3] Idem, p. 273.
[4] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 99.
[5] Idem, p. 51.
[6] Idem, p. 50.
[7] Idem, p. 135.
[8] LACAN, J. “L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre”. 10 de maio de 1977. Ornicar?, Paris, Navarin, n. 17-18, 1979, p. 18.
[9] LACAN, O seminário, livro 20, op. cit., p. 55.
[10] LACAN, J. “L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre”. 10 de maio de 1977. Ornicar?, Paris, Navarin, n. 17-18, 1979, p. 18.
[11] LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Barcelona, 02 de abril. Inédito (trad. Sérgio Laia).
[12] MILLER, J.-A. O osso de uma análise. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. p. 90.
[13] Idem, p. 91.
[14] Idem, p. 99.
[15] OTONI-BRISSET, F. Três sonhos e uma porcaria só. Curinga, Belo Horizonte, EBP, n. 31, 2010, pp. 67-71.
[16] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 51.
[17] MILLER, J.-A. La orientation lacanienne – Le tout dernier Lacan. Aula pronunciada no departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII. 14 de março de 2017. Inédito.
[18] LAURENT, É. Por que o Um? In: FUENTES, M. J. S.; GORSKI, G. (Orgs.). Leituras do Seminário …ou pior, de Jacques Lacan. Salvador: EBP, 2015. p. 37.
[19] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit., p.220
[20] MILLER. O osso de uma análise, op. cit., p. 92.
[21] Idem, p.93.
[22] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit., p. 208
[23] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 86-87.
[24] Idem, p. 87.
[25] MILLER, O osso de uma análise, op. cit., p. 82.
[26] Idem, p. 93.
[27] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 87.
[28] MILLER, O osso de uma análise, op. cit., p. 94.
[29] Idem, p. 94.
[30] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit., p. 277
[31] Idem, p. 223.
[32] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 101.
[33] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit., p. 252
[34] Idem, p. 209.
[35] Idem, p. 201.
[36] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 31.
[37] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit., p. 201.
[38] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 13.
[39] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit.,p.102
[40] Idem, p. 211.
[41] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 95.
[42] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit., p. 212.
[43] NAVEAU, O que do encontro se escreve, op. cit., p.124.
[44] Idem, p. 208.
[45] LACAN, O Seminário, livro 20, op. cit., p. 80.
[46] ANDRADE, O. de, Romance da época anarquista ou “Livro das horas de Pagu que são minhas”. In: CAMPOS, A. Pagu – Vida é Obra. São Oaulo: Cia das Letras,2014, p.113.
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