#06 - OUTURBRO 2023
O chiste, o declínio da paróquia e as vicissitudes da ironia para a psicanálise
Laura Rubião
Membro da EBP / AMP
Freud situou o vasto domínio do riso e suas declinações: o humor, o cômico e a tirada espirituosa (Witz), não apenas como manifestações da cultura, mas como índices da presença do inconsciente em sua articulação com o discurso do Outro.
A plena realização de um chiste depende da paróquia, nos dirá Lacan1. Ele opera a partir do uso compartilhado do tesouro dos significantes, condição primordial da incidência do Outro do sentido como base de sustentação de um discurso estabelecido.
Embora dependa do Outro da paróquia, o chiste está a serviço do campo pulsional e se apresenta como intensa fonte de fruição (Lustgewin). Ele traz à tona tendências que convocam o domínio do gozo do um: a obscenidade, a hostilidade, o cinismo e o ceticismo [2]. Esta última tendência parece colocar à prova os próprios parâmetros lógicos da linguagem:
Acho que os chistes desse tipo [os chistes céticos] divergem suficientemente dos demais para que lhes seja conferida posição especial. O que eles atacam não é uma pessoa ou uma instituição, mas a própria certeza de nosso conhecimento, uma de nossas capacidades especulativas. O nome que lhes caberia mais apropriado seria, portanto, o de chistes céticos.3
Sobre o ceticismo no domínio do chiste, Freud nos fornece um exemplo retirado do círculo de piadas judias, ao qual Lacan retorna em mais de uma ocasião. Ele enfatiza o modo pelo qual os chistes podem operar por meio da suspensão das coordenadas lógicas convencionais:
Dois judeus encontram-se num vagão de trem em uma estação na Galícia. ‘Onde vai?’ perguntou um. ‘À Cracóvia’, foi a resposta. “Como você é mentiroso!’ não se conteve o outro. “Se você dissesse que ia à Cracóvia, você queria fazer-me acreditar que estava indo a Lemberg. Mas sei que, de fato, você vai à Cracóvia. Portanto, você está mentindo para mim.4
O ceticismo a que se refere Freud talvez coincida, exatamente, com a perda de um parâmetro fixo de determinação da verdade. Notemos que o segundo judeu mente quando diz a verdade e fala a verdade por meio da mentira. O que está em jogo aí é a destituição da instância reguladora do uso equilibrado da língua, aquela que supostamente garantiria os limites convencionais da comunicação. Haveria uma tendência no chiste e, por consequência, no riso, que dispensaria o Outro da paróquia, permitindo a irrupção do novo na junção do Simbólico com o Real?
Um chiste que coloca em destaque o domínio da fruição, passando por fora do campo do sentido, parece capturar o interesse lacaniano ao final de seu ensino, na medida em que se valoriza a dimensão do equívoco como terreno fértil para a disseminação da matéria gozante em detrimento das ressonâncias simbólicas que fazem apelo ao Outro.
A partir dos anos 70, Lacan propõe-nos uma nova leitura do Witz, distinta da que nos apresenta em seu seminário 5. Ele passa a enfatizá-lo a partir do que brota no equívoco, roçando o real por meio dos avatares de lalangue, ou seja, daquilo que se lê no ‘espaço de um lapso’ 5 como a certeza do que emerge no inconsciente real.
No posfácio escrito em 1973 para o seminário 11, Lacan retoma o chiste dos dois judeus na estação, reforçando o caráter de cifra de uma leitura pautada na premissa interrogativa do primeiro judeu: “porque mentes para mim dizendo a verdade”?.6 Quando o objeto a se instala no lugar do trilho que promove a via do mais-gozar, a questão não se resolve consultando-se o catálogo da rede ferroviária para se saber o destino correto.
Seria o pressuposto cético do Witz uma via de acesso a esse novo uso lacaniano da dimensão do equívoco, mais atrelado ao real do que às articulações entre o simbólico e o imaginário? No momento em que o gozo se extravia da rota principal do Outro – cuja crença, em nossos dias, encontra-se esgarçada – o que esperar dos efeitos do riso? Como ele se apresenta frente ao declínio da Paróquia?
A ironia, também devedora do pressuposto cético, é uma das vertentes do vasto campo concernente ao humor e ao riso que guarda importantes afinidades com a experiência analítica. Lacan chegou a comparar o analista à figura de Sócrates, o grande ironista da antiguidade, aquele que sabia fazer um bom uso do semblante discursivo, promovendo uma disjunção entre os campos do ser e do parecer.
Miller nos lembra que talvez fosse possível curar a neurose pela ironia que “é a forma cômica tomada pelo saber de que o Outro não existe” 7. Para que a ironia analítica se realize é preciso que, mesmo não dispondo do “catálogo da rede ferroviária” possamos seguir um mapa próprio, cuja direção e o destino são dados pelo sinthoma. Para que isso se produza no contexto de uma análise que dura e se dirige ao seu final, é preciso abster-se dos semblantes, podendo fazer deles um novo uso, ou seja, é preciso consentir com a existência de uma verdade que contenha o furo, para incluir seus efeitos em uma nova aliança com o gozo.
Resta, contudo, a pergunta: em tempos em que os sujeitos se creem transparentes a si mesmos, fiando-se pela autodeclaração e pela lógica do direito ao gozo como restaurar a torção irônica do ato analítico, que reintroduz a opacidade da não relação sexual?
Creio que a próxima Jornada da Seção São Paulo, ao nos propor como título essa escrita original – R.I.S.o, promete fomentar um vivo debate sobre o que se imiscui do real no domínio do riso, extraindo daí suas consequências para a psicanálise!