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INTERVENÇÃO SOBRE O VETOR: “O AMOR À VERDADE EM FREUD[1]”

Velária Ferranti
Membro da EBP e da AMP 
Imagem – Instagram: @rosettedestefano
Imagem – Instagram: @rosettedestefano

Em 1896, em uma carta endereçada a Fliess[2] , encontramos o primeiro modelo do Aparelho Psíquico. Pareceu-me interessante tomá-lo tanto no tempo – já que escrito há mais de um século-, como por aquilo que escapa ao próprio aparelho: os fueros. Já de saída, algo falha no maquinário da representação. Ao inventar um método e orientar seus pacientes a falar livremente, Freud busca, naquilo que falha, os indícios da verdade recalcada (lembrando que aqui se trata do recalque primário).

Em outra carta endereçada a Fliess, datada de 1897, Freud escreve: “não existe no inconsciente nenhum índice de realidade, de tal modo que não é possível distinguir uma da outra, a verdade e a ficção investida de afeto”[3]. A realidade, apreendida pelo aparelho psíquico, é uma construção, uma construção “da verdade” que inclui aí aquele que fala.  Assim, o nascimento da psicanálise promove uma reviravolta epistemológica em um dos aspectos da verdade, um deslocamento no sentido do vetor: não se trata de representar a realidade, mas sim de tomar a realidade a partir das representações.

Localizar na história daquele que fala, atribuir sentido e esclarecer o que manca não se mostrou suficiente para que a verdade dos pensamentos inconscientes se revelasse e se mantivesse perene. Entra em cena a Pulsão. Força constante que atravessa o aparelho, desorganiza e promove a possibilidade do novo. Creio que este foi um dos pontos considerados por Lacan ao afirmar que a pulsão é sempre Pulsão de Morte pois, a tal Pulsão de Vida alimenta o sentido e a repetição. Assim, a verdade veiculada nos sintomas, chistes, atos falhos e sonhos não pode ser totalmente apreendida, pois a pulsão, que “força” passagem no aparelho psíquico, não ganha representação estando sempre por fora do próprio inconsciente, fora do aparelho psíquico e encontra sua satisfação na morte, no silêncio do aparelho.

Vale lembrar que As cinco psicanálises foram escritas e publicadas até 1920. Quando a dimensão mais radical da pulsão ganha o centro, não temos mais os relatos clínicos do mestre vienense.

Também vale lembrar que, para Freud, a pulsão é inata e, desde o primeiro grito, perturba o “corpo vivo” que se apazigua com os pensamentos inconscientes, que por sua vez produzem cadeias associativas, dramas, histórias e lembranças. Uma verdade associada ao sentido produzida simbolicamente. Verdades associadas aos pensamentos inconscientes que produzem uma “interpretação” sobre a quebra na homeostase do aparelho psíquico.

Uma brevíssima situação clínica para produzir uma torção: durante a sessão, uma criança pequena bate a cabeça na quina de um móvel. Evidentemente, ela sente dor e diz: “machucou, tá sangrando”. Repete muitas vezes esta afirmação e se mostra bastante desorganizada, andando pela sala e repetindo a mesma “frase” sem parar.  Embora eu tenha dito coisas como: ”você bateu sua cabeça; está doendo” na tentativa de doar alguma significação, não teve efeito. Em frente ao espelho segue afirmando: “machucou, tá sangrando.” O que dizer então da verdade, do amor à verdade, quando o simbólico ocorre, mas não socorre?

Com a capacidade para nomear comprometida pela via da representação aquilo que afetou seu “corpo”, esta criança se vale de um signo – machucou/sangrou – para poder dizer daquilo que foi desorganizador. Ver sua imagem no espelho sem sangue não alterou seu recurso, e como nos diz Lacan: “só há fato pelo artifício”[4]. Para esta criança, instituir um fato não foi suficiente para apaziguá-la, uma vez que o signo não representa o sujeito, portanto não adquire valor de verdade.        Parece-me que a torção que se apresenta aqui é que a verdade não é universal, o amor a verdade não é para todos e o autismo nos mostra isto.

No argumento das XI Jornadas, encontramos uma referência à aula de Lacan[5] de 10 maio de 1977, intitulada Rumo a um significante novo, em que há uma consideração acerca da Verneinung:

(…) onde Freud promoveu o essencial. Ele diz que a negação supõe uma Bejahung, que é a partir de alguma coisa que se enuncia como positiva que se escreve a negação. Em outros termos, o signo deve ser procurado – é justamente o que na “Instância da Letra” coloquei como congruência do signo ao real.

O que é o signo que não poderia se escrever? – pois esse signo se escreve realmente. Já coloquei em evidência a pertinência do que a língua francesa toca como advérbio. Pode-se dizer que o real mente?  Na análise pode-se certamente dizer que o verdadeiro mente (LACAN, 1988, p. 11).

A experiência com o Real sem o auxílio, sem o socorro da verdade coloca estas crianças, como nos diz Lacan, em um inferno. Se o simbólico diz somente mentiras, o que real atesta?

Em O Seminário, livro 23: o sinthoma, Lacan[6] dirá:

(…) não há necessidade de dizer mais, a sentimentalidade própria do falasser -, a mentalidade, uma vez que ele a sente, sente seu fardo – a ment-alidade enquanto mente é um fato.

O que é um fato? É justamente ele quem faz. Só há fato pelo fato de o falasser o dizer. Não há outros fatos senão aqueles que o falasser reconhece como tais dizendo-os. Só há fato pelo artificio. É um fato que ele mente, isto é, que ele instaura falsos fatos e o reconhece, porque tem mentalidade isto é, amor-próprio (LACAN, 2007, P. 63-64).


[1] I Atividade Preparatória para as XI Jornadas da EBP-SP, realizada no dia 17/08/2022. Intervenção sobre o Vetor: “O amor à verdade em Freud”, escrito por Fabrício Donizete, que compõe o argumento das XI Jornadas da EBP – SP.
[2] FREUD, Sigmund. Extrato dos documentos dirigidos à Fliess (1887/1904). Rio de Janeiro: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, 1986, carta 52, p. 254.
[3] Freud, Sigmund 1986, p. 191
[4] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23, o sinthoma. A pista de Joyce. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2007, p. 63.
[5] LACAN, J. Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 22, 1988, p. 11.
[6] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23, o sinthoma. A pista de Joyce. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2007, p.  63-64
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