BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
A VERDADE COMO CONTRADIÇÃO ENTRE O VERDADEIRO E O FALSO
Jésus Santiago
AME, Membro da EBP e da AMP
O início do ensino de Lacan toma as formações do inconsciente – o sonho, o lapso e os chistes – como dependentes da verdade do desejo a respeito da letra e, no contexto desta elaboração, trata-se da letra alojada no inconsciente. No início dos anos cinquenta, em seu célebre comentário sobre a “A carta roubada”, de Edgar Alan Poe, confirma-se a importância concedida à carta/letra, pois esta se apresenta reduzida ao significante da verdade do desejo inconsciente. Segundo Lacan, a verdade do desejo, para os distintos personagens do conto, é a carta/letra, tendo em vista que ela se confunde com o falo. Ou seja, o falo é concebido como significante do desejo e também se apresenta como resposta à presença da verdade recalcada da castração. Em suma, a carta/letra assume um valor fálico e por ela se veicula a verdade recalcada da castração.
A narrativa do conto demonstra a “determinação fundamental que o sujeito recebe do percurso de um significante”[1], visto que toda a trama se desenrola em torno de uma carta/letra enigmática e ameaçadora, furtada dos bens da rainha e posta em circulação no âmbito da corte. Por meio da leitura analítica da lógica envolvida nesta peça ficcional, percebe-se o quanto o analista se serve da autonomia relativa do significante para se conduzir sobre a via da verdade que se veicula na letra. Em função da estrutura significante em posição de causa com relação aos efeitos de significado, postula-se que a letra sempre chega à sua destinação. A partir da determinação maior que o sujeito recebe da letra, Lacan conclui que se a carta roubada dos aposentos da rainha é signo de uma verdade do desejo, cedo ou tarde, ela chegará ao seu destino que se supõe ser o próprio rei.
A tese que se sustenta nesse escrito, e que jamais será abandonada, é que mesmo depois dos desvios que a carta sofre, ela sempre atinge o seu destino, pois ela é portadora de uma verdade que mantém sua afinidade com a castração. A cada vez que Lacan retorna ao seu “O Seminário sobre a ‘Carta Roubada’”, como é o caso de seu escrito “Lituraterra”[2], ele faz questão de reafirmar sua tese de que a carta sempre chega ao seu destino.
A meu ver, é a questão da verdade tratada de modo inédito por Lacan em seu Seminário – “Les non-dupes errent” – que melhor esclarece as razões que embasam a manutenção desta tese que como se sabe, foi alvo de inúmeras críticas por parte do filósofo Jacques Derrida[3]. Nesse Seminário – “Les non-dupes errent” – que aconteceu em 1974, a verdade não se funda na suposição de que ela está do lado oposto ao falso, o que não impede que em seu enunciado ela não possa contradizer o falso[4]. Se a verdade contém a contradição entre o verdadeiro e o falso, ela apenas se expressa por meio de um semi-dizer.
Enquanto semi-dizer, ela jamais poderá constituir-se numa espécie de metalinguagem que permitiria dizer o “verdadeiro sobre o verdadeiro” pois “ela é contradição, e se enraíza sempre sobre o “não”, e o seu desígnio consiste na “denúncia da não-verdade”[5]. Se de um lado, a verdade padece desta limitação, de outro, “ela é sem limite, ela é abertura” em condições de vir à tona sob o modo de denúncia do falso. A firmeza com a qual Lacan abraça essa leitura diz respeito ao fato de que se a carta/letra encarna o falo como portador da verdade da castração, mais dia, menos dia, ela chegará ao seu destinatário.
Como se sabe, a questão da verdade sofre mudanças ao longo do ensino de Lacan e certamente, no final de seu ensino, ela é efetivamente objeto de um declínio quando no Seminário “O avesso da psicanálise”, ela é concebida como “irmã do gozo”[6]. No entanto, é preciso manter a pergunta: com qual concepção da verdade Lacan opera em sua leitura do conto de Edgar Allan Poe? Um dos aspectos mais importantes da crítica do referido filósofo à leitura lacaniana do conto é que esta permanece prisioneira de uma concepção da verdade como alethéia. Sob esse ponto de vista, a verdade se mostra subordinada ao movimento de véu que, ao mesmo tempo, vela e desvela a castração.
O ensino de Lacan dá provas de operar com distintas concepções da verdade, porém nos interessa destacar aquela que carrega nela própria o verdadeiro e o falso. Trata-se de uma concepção que faz parte desse momento em que a verdade se mostra em franco processo de declínio, pois, ao se localizar do lado do semblante, ela se apresenta causada pelo real.
Se a verdade migra para o lado do semblante, se a partir daí ela se torna irmã do gozo, ainda assim, não se abandona a tese de que a carta/letra sempre chega ao seu destino. A crítica de Derrida é que a carta/letra não deve ser reduzida a uma espécie de “localidade indivisível” própria do “significante que não se arrisca se perder, se destruir, se dividir, se despedaçar[7]”, enfim, sem atingir ao seu destinatário. É certo que o ensino de Lacan trilha por caminhos que fazem com que a sua doutrina da letra se edifique separada da lógica do significante. Contudo, se Lacan jamais abandona a tese clínica de que a carta sempre chega ao seu destino é, antes de tudo, porque a questão da verdade se formula como sintoma.
Há uma dimensão do sintoma que “se articula por representar o retorno da verdade como tal na falha de um saber”[8]. A verdade não apenas se distingue do saber, mas é retorno do real visto que não pode ser representada pelo significante. Quando se afirma que o sintoma e o retorno do recalcado são a mesma coisa é porque “ele (o sintoma) é talhado da mesma madeira que a verdade”[9]. A verdade, portanto, não está condicionada pelo jogo dos efeitos do significante (significação), mas ao contrário, resulta de seu retorno nas falhas do saber, o que implica considerar que mais dia menos dia ela chegará ao seu destino.