O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
Flashes da comissão de orientação
Ato analítico e um dizer que subverte o sujeito
Por Fabiola Ramon (EBP/AMP)
A suspensão radical do campo do Outro simbólico, furo radicalmente necessário para que uma passagem ao ato tenha de fato estatuto de ato. Lacan extraiu desse ponto preciso e lógico um princípio fundamental da psicanálise: o ato analítico.
A passagem ao ato se dá em um tempo de suspensão do Outro simbólico, na qual é o objeto que irrompe, operando um curto-circuito em que o sujeito cai da cena. Cai sujeito e também o Outro, para se recomporem em um segundo tempo. Esse gozo mortífero fora do laço, a depender do circuito pulsional em jogo e da série que posteriormente esse circuito reenlaçará ao Outro, pode-se tornar continuamente um mecanismo que tende à repetição.
“O ato analítico tem estrutura tal na qual o objeto é ativo e o sujeito, subvertido – fundamento do discurso analítico”[1]. Me parece que está aí, nessa subversão do sujeito, um dos pontos que diferencia o estatuto da passagem ao ato e o ato analítico. Este último se articula a um dizer. “O ato tem lugar por um dizer, e pelo qual modifica o sujeito”[2]. Um dizer que, a partir da operação do discurso analítico, consente com o s(Ⱥ), com o significante do Outro que não existe.
Em tempos de proliferação das passagens ao ato, o discurso analítico pode incidir aí, na medida em que intervém não no sentido de restituição do Outro no circuito da repetição, mas de apostar que a partir do dizer pode-se aceder ao furo no campo do Outro, tanto do Outro simbólico quanto o Outro do gozo, podendo romper com o empuxo ao gozo mortífero implicado na passagem ao ato.
[1] Holguin, C. M (2019). “Um laço êxtimo: solidão com laço – Sobre o ato analítico e a garantia”. In: https://ebp.org.br/sp/um-laco-extimo-solidao-com-laco-sobre-o-ato-analitico-e-a-garantia/
[2] Ibid.
A interpretação e o tempo
Por Maria Célia Reinaldo Kato (EBP/AMP)
Miller, em A erótica do tempo[1], faz a seguinte questão: “de que forma a interpretação se inscreve no tempo?” e, responde: “mesmo havendo um status atemporal do inconsciente, a interpretação, por sua vez, é essencialmente temporal. A interpretação não pode ser dita em qualquer momento ou em qualquer contexto, ou seja, ela se inscreve no tempo”. A partir dessa dimensão temporal da interpretação, Miller introduz a surpresa, em função de que a interpretação é um acontecimento imprevisto. É justamente ali onde o analisante espera algo que a interpretação não deve estar. Ela precisa se dar na contingência do tempo.
“O tempo tem uma linha infinita que jamais encontra o ponto no infinito”[2]. Esse ponto no infinito não cessa de se escrever, portanto é da ordem do impossível, é da ordem do real. E é nesse ponto que a interpretação enquanto acontecimento imprevisto deve incidir.
Miller propõe que o analista ocupe uma posição fora do tempo, fora do lugar onde ele é esperado. Assim, como podemos pensar uma interpretação em que o analista ocupe um lugar fora do tempo? Como introduzir a dimensão da surpresa? Como pensar uma interpretação que vise o real? Essas são algumas questões que gostaria de introduzir em nosso debate!
[1] MILLER, J. A. A erótica do tempo. Escola Brasileira de Psicanálise – Rio de Janeiro. 2000.
[2] Idem.
Psicanálise, civilização e política
Por Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri (EBP/AMP)
Com sua emergência, a psicanálise mudou o mundo; com seu ato, Freud mudou o mundo; com o “ato de fundação”, Lacan mudou os rumos da psicanálise. Lacan funda sua Escola para restaurar o “fio cortante” da verdade de Freud, e foi além, servindo-se do existente para um passo a mais. Em 1980, Lacan dissolve sua criação por desrespeitar os princípios para os quais havia sido criada. Miller, em 24/6/2017, surpreendeu ao propor o “Ano Zero”, um novo começo para o Campo Freudiano, aufhebung que implicaria a “Escola-Sujeito”[1].
A dialética hegeliana pressupõe conservar o que existe para superá-lo, em uma sempre ascendente espiral. No momento em que o “Espírito Universal” gera contradições, a dialética tenta absorvê-las e gerar o advento do novo. O espírito de nosso tempo, prenhe de contradições, leva Miller a provocar um movimento dialético na Escola de Lacan, conservando algo para alçar a um nível superior, aufhebung – “Ano Zero” da Psicanálise que traz em seu bojo a “Escola-Sujeito”.
Miller propõe também a dialética do compromisso que, originalmente, aparece no Heidegger de Ser e Tempo, bastante explorada pela filosofia existencialista. Compromisso supõe escolha, o que faz herético aquele que escolhe: no sentido das preferências do sujeito, a heresia[2] enraíza as escolhas no gozo do corpo, no sinthoma.
A posição herética e o compromisso contradizem a ideia de uma posição analítica neutra. O analista não escolhe no exercício da escuta, mas não é indiferente no tratamento; seu desejo “não é um desejo puro”, diz Lacan no seminário 11. O analista escolhe visando não uma moral, mas a ética, incluindo aí a política.
Se Lacan diz que “… antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”[3], é porque, para ele (como para Hegel), cada época tem sua subjetividade, implicando em um laço discursivo que abrange a vida social, intelectual e cultural em um mesmo espírito – a época é um limite, constrange o pensamento, e a coerência deste conjunto aponta para a subjetividade. Antecipações podem ocorrer, especialmente quando um sujeito interpreta a subjetividade de sua época, caso de Nietzsche, ao anunciar a “Morte de Deus”[4].
É da subjetividade e não de uma subjetividade que se trata, visto o sujeito não ser um indivíduo: o conceito lacaniano de sujeito, que supõe o “inconsciente estruturado como uma linguagem” remete à política, “o inconsciente é a política”. Ao falar da “realidade transindividual do sujeito”, Lacan mostra que a subjetividade de uma época tem sentido por ser transindividual, o que acarreta que o um e o outro sejam prisioneiros da mesma época, imersos que estão na mesma dialética temporal, o que impede a todos ausentar-se da política.
O ato de Miller, ao propor a “Escola-Sujeito”, ocorre no momento em que, no movimento dialético de nossa época, emergiu o totalitarismo, coibindo a liberdade de fala, o que inviabilizaria a experiência da psicanálise.
Esta experiência distancia o sujeito das identificações de massa, sem desconsiderar as múltiplas escolhas do desejo ou do gozo. A política importa para a psicanálise pois, na experiência analítica, chega-se ao ponto em que o Outro não existe, momento de empalidecimento do simbólico, o que exige um retorno ao laço social com o Outro, na invenção de um Outro. Pode-se apostar então nos recursos trazidos pelos discursos, “o laço entre os que falam” e Lacan sublinha que “só existe isso, o laço social”[5] a manter juntos os corpos, enquanto, ao contrário, o puro gozo, solitário, gera a segregação.
Uma análise não leva do pai (père) ao pior (pire), ao contrário do que presentifica um regime ditatorial; o desejo de saber que permite e provoca, na transmutação do amor ao saber, torna-se essencial para os tempos atuais, para a civilização que recebe novos sopros nunca antes aspirados.