Niraldo Santos (Associado da CLIPP) Como o mais-um um pode ser um agente provocador e,…
É possível ser herético da boa maneira?
Paola Salinas
(EBP/AMP)
A proposta de Miller denominada Ano Zero toca o fundamento do discurso analítico, no campo “social”, e no que concerne à posição do analista, enfatizando o compromisso com o campo aberto por Freud.
Interessou-se por apontar que tal relação com o social perpassa a posição do analista e sua relação com o narcisismo. Assim, tratar-se-ia de abandonar o narcisismo das pequenas diferenças e colocar em jogo, na aposta da psicanálise na polis e na Escola, um outro uso do narcisismo a serviço de um estilo, satisfação incluída na escolha, que implica um ato e uma posição.
Na aula de 24 de junho de 2017, Miller retoma a afirmação de Lacan: “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época“[1]. Miller nos diz da escolha articulada ao gozo e à satisfação, uma escolha pelo gosto, a heresis, que marca a posição do psicanalista, seu ato, e como enfrenta sua época. Miller enfatiza que “a heresia, da qual fazemos uma bandeira encontra ali o lugar onde se ancora profundamente na língua, e vemos que aquilo que pertence ao registro da escolha também pertence ao registro do gosto.”[2]
A escolha afeta o corpo e tem relação com o sinthome. Diferenciar-se-ia do posicionamento sustentado no querer imaginário, que obstaculiza o simbólico como tratamento do real na comunidade analítica. A aposta, como nos lembra Bernardino Horne[3], dar-se-ia em insistir que, para avançar na direção de uma Escola Una, é necessário, antes de tudo, contar com “um trabalho pessoal de cada membro da AMP”, que leva cada um a firmar-se na lógica da Escola em seu antagonismo à lógica grupal.
É o próprio Miller que nos alerta em sua crítica à heresia, retomando que a ascensão do individualismo moderno está ligado à promoção da categoria escolha que está no coração da heresia. Se por um lado algo inventivo e singular pode surgir, por outro “hoje a escolha se tornou um valor em si mesma, o valor supremo do indivíduo consumidor, para além do ato do sujeito por excelência. A promoção da categoria da escolha faz-se em detrimento do seu contrário (…) a herança. (…) Lacan teve a ideia de uma sociedade analítica que estaria fundada sobre uma espécie de escolha de conversão efetuada ao fim da experiência analítica. Tinha a esperança que essa comunidade se mantivesse, se perpetuasse no nível da escolha. Contudo, uma comunidade fundada sobre a escolha, sobre a escolha subjetiva, está submetida àquilo que os sociólogos das religiões conhecem com o nome de dinâmica da conformidade, e acabo de notar sua existência entre nós, com o lançamento da categoria da heresia, em seguida adotada como um novo standard no Campo freudiano. É o que me leva hoje a fazer esta crítica.”[4]
É preciso ter em conta que a dialética entre a heresia e a ortodoxia não se extinguirá. Assim, no que nos concerne, ainda que nos nomeando heréticos a partir do próprio Lacan, “trabalhamos para construir um sentido comum do praticante lacaniano, não caindo no se”[5], descrito por Heidegger, como o eu fundido na massa.
A posição de herético não garante, bem como a ortodoxia; é preciso, nos diz Miller, “vigiar para permitir, favorecer a escolha no cotidiano, essa é nossa política, é dialética: não deixar dissolver-se o sentido comum do praticante, não deixar esse sentido comum enrijecer em dogmatismo, e para tanto, continuar deixando-se interrogar pela prática analítica.”
A boa maneira de ser herético, por ser reinventada, é poder sustentar a própria dialética.
[1] LACAN. J. “Função e Campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1998, pg. 321.
[2] MILLER, J.- A. Curso de Psicoanálisis, 24 de junio de 2017. Disponvel em: www.eol.ar
[3] HORNE, B. “A Escola e o grupo analítico”. Editorial. São Paulo, Ed. Eolia, Opção Lacaniana, n. 22.
[4] MILLER, J.-A. Seminário de Política Lacaniana: Segunda parte de la Conferencia de Jacques-Alain Miller en Turín: Los heréticos. Tradução Livre. www.eol.org.ar
[5] Idem.