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Ano Zero – Desejo do analista X
Cynthia N. de Freitas Farias
(EBP/AMP)
“Um novo começo, uma mudança, uma transfiguração, uma aufhebung segundo o termo de Hegel” […] “tudo começa sem ser destruído para ser levado a um nível superior”. Este ponto de capiton do qual parte Miller para interpretar os acontecimentos políticos de março de 2017 que balançaram o Campo Freudiano recai, a meu ver, sobre cada termo e conceito que ele recupera tanto em Freud quanto em Lacan para dar consequências ao movimento iniciado pelos analistas lacanianos: “irromper em praça pública, tomar partido”[1].
Destaco a referência ao desejo do analista, que Miller recupera em Lacan, como aquele que vem subverter a noção mais comum da posição analítica no sentido de neutralidade benevolente, ou mais precisamente, indiferença, na acepção dos escritos técnicos de Freud. Inicia sua reflexão, partindo da indiferença que definiria a posição do analista, para situa-la em seu devido lugar. O analista só é indiferente no nível da escuta. No exercício da escuta o analista não deve ser seletivo, assim como o analisante também não deve escolher o que dizer[2]. Porém, na condução do tratamento, no que diz respeito às intervenções, ele não é, em nada, indiferente.
Ao longo de seu ensino, Lacan referiu-se ao Desejo do Analista de várias maneiras, sem nunca esgotá-lo em uma definição única[3], mantendo sempre um ponto de tensão. Nos tratamentos, “o desejo do analista é sua enunciação”[4] e somente pode operar em posição de x, cujo valor o analisante deverá encontrar. Em seu Seminário 11, Lacan o define como desejo de obter a “diferença absoluta”[5], de permitir que o analisante avance além dos limites da lei. Trata-se de um desejo articulado ao real, ao insuportável de cada um, o que lhe confere seu valor operatório.
Miller[6] retoma essa definição de Lacan, visando ao inconsciente real: o desejo do analista “não é um desejo puro […] não é uma pura metonímia infinita [como uma defesa contra o real] mas nos aparece como um desejo de alcançar o real, de reduzir o Outro a seu real e libertá-lo do sentido”.
Os acontecimentos de março de 2017 tornam-se o marco definitivo da mudança de posição dos analistas lacanianos que vinha já ocorrendo nas últimas décadas. Os analistas são convocados a ir a público e tomar a palavra.
Convém ao analista tomar partido[7] mas não lhe convém ser partidário. Ser partidário implica escolher um dos lados, polarizar a questão e consequentemente alienar-se a uma posição[8]. O analista toma partido do real em jogo seja na clínica, seja na política. Como afirma Miller, o analista não demanda o reconhecimento no discurso do mestre mas, ao se relacionar com ele, visa a subvertê-lo[9]. Cabe ao analista na cena política, interpretar o discurso do mestre a partir do que lhe faz furo e “devolver ao sujeito a escolha, a escolha decidida […]”[10] dessa relação com o significante que o discurso do mestre institui.
Retomar, neste momento, a referência ao desejo do analista, me parece a oportunidade de “levá-lo a um nível superior”, orientando a tomada de partido do analista na cena pública.
[1] MILLER, J.-A. Curso de Psicanálise, aula de 24 de junho de 2017. https://youtu.be/S66vAiQPIsg (tradução livre da autora)
[2] Principio da atenção flutuante do lado do analista e da associação livre do lado do paciente. FREUD, S. “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”. Obras completas, vol. XII, Rio de Janeiro: Zahar.
[3] Lacan formula o desejo do analista pela primeira vez em “A direção da cura e os princípios de seu poder” (1958, In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998), depois em 1964, em O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Rio de Janeiro, Zahar). Também em 1974, em seu Seminário 21 (inédito) ele o define como o desejo que surge ao final de uma análise como desejo de saber.
[4]LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[5] LACAN, J. O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, p.260.
[6]MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 63, 2012, p. 17.
[7]MILLER, J.-A. Curso de Psicanálise, aula de 24 de junho de 2017.
[8] AROMI, A. “Razões de um fracasso”. Lacan cotidiano, 763, 9 de fevereiro de 2017.
[9] MILLER, J. A. “Questão de Escola: Proposta sobre a Garantia”. Opção Lacaniana online nova série, ano 8, n. 23, julho 2017, p. 2 e 3.
[10] BROUSSE, M. H. O inconsciente é a política. São Paulo: EBP – SP, 2003.