O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
Alea jacta est
Rodrigo Camargo (Associado a CLIPP)
O seminário do ato analítico ainda não foi publicado no Brasil dentro da série estabelecida por Jacques-Alain Miller. Encontramos nos Outros Escritos[1] um resumo deste seminário, de número 15, O ato psicanalítico[2], proferido nos anos de 1967 e 1968. Sabemos que além dele, os três seminários anteriores (12, 13 e 14) também ainda não foram publicados. Há neste hiato de uma série histórica algo que merece nossa atenção.
Do seminário 11[3] (1964) ao seminário 16[4] (1968-69) configurou-se assim uma espécie de “buraco negro” que, a meu ver, obedece a uma lógica própria articulada por J.-A. Miller; e isto não aparece assim tão aleatório.
Segundo a Wikipedia, “o buraco negro é uma região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nada – nenhuma partícula ou radiação eletromagnética como a luz – pode escapar dela”. Ainda conforme o verbete, “a teoria da relatividade geral prevê que uma massa suficientemente compacta pode deformar o espaço-tempo para formar um buraco negro”. Trata-se, assim, de assumir tamanha densidade em um período específico do ensino de Lacan. E vemos nisto uma profícua coerência interna em tal orientação estabelecida por Miller.
Talvez Lacan não tenha nada a ver com isso, mas a escolha de Miller – ao publicar em uma ordem não cronológica os seus seminários – tem uma lógica que justifica termos acesso a uns e não ainda a outros seminários. Mas, afinal, qual seria a razão disso?
A hipótese aqui levantada é que, apesar de alguns textos escritos de Lacan dessa época estarem ao nosso alcance em seus Outros Escritos, publicados postumamente, os seminários proferidos naquela mesma época indicam uma tremenda reviravolta na recepção de seu ensino e nas gerações vindouras.
Talvez apenas hoje tenhamos condições de recolher os estilhaços em forma de fragmentos e não nos perdermos de vez neste intenso campo gravitacional. Afinal, um buraco negro é dotado de tanta luz que acaba sugando tudo que está em volta, inclusive sua própria luz.
“Os seis paradigmas do gozo”[5], de J.-A. Miller, contam um pouco sobre este buraco, principalmente na aposta de Miller que salta do paradigma 4 para o paradigma 5, ou seja, algo de muito importante se passa entre o seminário 11 e o seminário 17 [6].
Desde o seminário inexistente sobre Os Nomes-do-Pai[7] (1963) até o início do seminário 16 – De um Outro ao outro (1968), Lacan não fez mais nenhuma menção ao Nome-do-Pai.
Quando isto reaparece, vem em relação com o nome de Deus. Não mais o Deus dos filósofos, mas o do Antigo Testamento. Um Deus que fala, cujo nome é impronunciável.
Não podemos deixar de levar em consideração, na medida em que é sempre muito importante cotejar a época dos seminários de Lacan com as datas de seus textos escritos, que a “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”[8] é concomitante com o seminário do Ato.
É sempre bom lembrar que a luz da noite é mais escura apenas em um instante antes do amanhecer. Só depois do seminário 15 que Lacan, interrompido, aliás, pelo “maio de 68” em Paris, retoma seu dizer sobre o Nome-do-Pai.
Se Lacan fala novamente disto é em razão de uma articulação interna com seu ensino. Trata-se de uma tensão imposta entre o sujeito do cogito em Descartes e o saber absoluto de Hegel.
Lacan compõe isto em termos de transferência na figura do Sujeito suposto Saber ou na problemática da divisão do sujeito entre saber e verdade a partir da qual vai operar o discurso analítico vindouro.
Ato e potência se articulam desde a metafísica de Aristóteles. No entanto, um antigo amigo de Lacan, de estilo espirituoso, chamado Raymond Queneau, poeta e matemático, fundou naquela mesma época, junto com mais alguns outros colegas, um grupo inspirando na ciência patafísica de Alfred Jarry.
Um parêntese: (A patafísica vem do grego e significa “além da física”. Trata-se de uma ciência de soluções imaginárias e de leis que regulam exceções. Jarry, que na verdade era um dramaturgo, ao explorar alguns campos negligenciados pela física e metafísica, expressou-se por meio de uma linguagem nonsense, um modo pessoal e anárquico de explicar o absurdo da existência, conforme podemos observar de novo com a Wikipedia. Fecha o parêntese).
Enfim, ao longo da década dos anos 1960, apareceu na cena intelectual francesa o OuLiPo… Levemente inspirado nessa aventura patafísica do pai Ubu, o grupo do OuLiPo (acrônimo de Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como um canteiro de obras de literatura potencial) inventava uma solução genial para os procedimentos da criação literária.
Tratava-se de recolher os efeitos do que seria uma contrainte. Estávamos num contexto de efervescência do estruturalismo francês e a contrainte era um procedimento em torno do qual poetas e matemáticos se juntaram para escrever textos impondo-se uma constrição, uma espécie de método ou simplesmente um regime criativo de lidar com um furo na linguagem.
O que Lacan fazia nesta época, a partir do seminário interrompido de 63 até o seminário interrompido de 68 (interrompidos, aliás, por razões bem diversas), era constituir não as condições de possibilidade da psicanálise, mas senão aquilo que Freud articulou como sendo sua impossibilidade mesma, ou nos termos lacanianos: as razões de um fracasso.
Estamos nessa altura no seminário do Ato Analítico e notamos que Lacan percebe que não se trata de fazer com a psicanálise uma revolução em potencial. Astronomicamente, inclusive, uma revolução seria uma volta de um corpo celeste que, ao voltar sempre para o mesmo lugar, atesta inclusive uma das acepções do real.
Podemos com isto propor que a experiência da análise não é senão a experiência do atravessamento de um rubicão. Não há nada de extraordinário em vista, a não ser uma transformação singularmente radical do infraordinário, isto é, a prática analítica enquanto uma práxis que aponta para um modo de vida mais satisfatório ou apenas menos confuso.
O potencial de uma análise só se converte em uma psicanálise em ato se sua cláusula de impossibilidade promove uma travessia do furo na linguagem pelo qual damos voltas e voltas infinitas, voltas em torno deste “não há relação sexual que possa ser escrita” até então lido como o buraco negro de um gozo pulsional mortificante.