O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
A poética de Mar Becker: escrita, arrebentação e naufrágio
Janaina de Paula Costa Veríssimo (Associada ao CLIN-a)
“O fazer corpo com a língua é o poema”[1]
(Pascal Quignard)
Em 2020, o primeiro livro de Mar Becker – A mulher submersa, foi lançado pela editora Urutau, promovendo, para muitos de seus leitores, um encontro inaugural e arrebatador com a sua escrita. No entanto, Mar, a gaúcha de nome de batismo Marceli Andressa Becker, já conduzia com mãos de artesã seu “projeto estético”, como ela assim o nomeia, desde os quatorze, quinze anos de idade. Em seu percurso, o livro anuncia-se mais como consequência e menos como fim:
mesmo antes de se materializar como livro, o livro estava vivo”[2]
em alguma praia qualquer do mundo
em algum verão. o livro estava vivo, escrito a dedo na areia
as palavras, durando então não mais que cinco, seis segundos
o tempo de o mar refluir e apagá-las”[3]
Se a poesia, como nos ensina Pascal Quignard, é “a palavra reencontrada (…) que faz reaparecer a imagem intransmissível dissimulada atrás de toda imagem, que faz reaparecer a palavra em seu branco, que reanima o lamento do abrigo sempre demasiadamente ausente na linguagem que o cega, que reproduz o curto-circuito em ato (grifo nosso)”[4], Mar Becker nos revela que a palavra, no poema reencontrada, não é menos fugidia – é a palavra que escapa e ressurge a cada vez. Por isso, para além do livro, ela escreve e reescreve, em suas redes sociais, fragmentos e poemas inéditos, sobreposições de textos já publicados, onde as trocas cotidianas com seus leitores testemunham um uso ético-estético de instrumentos como o Facebook e o Instagram, além das lives e podcasts dos quais participa fazendo, a cada encontro, ressoar algo do seu ofício naquele que a lê ou escuta.
A poética de Mar demarca, paradoxalmente, aquilo que faz contorno, não sem a arrebentação, o que choca e transborda. A palavra “becker” designa, curiosamente na química, os copos destinados às soluções e, não menos, às precipitações. A escrita de Mar Becker parece revelar seu dique, ancoradouro forjado no encontro com letra, que permite à poeta menos deriva e mais litoral – seu deck, o chão-abismo, no qual se lança para sulcar um corpo e sua travessia. Uma escrita que contorna, mas também transborda e tem atravessado corpos-leitores e oceanos:
primeiro vem a água como sangue. antes do corpo, a correnteza
puro ato (grifo nosso). e é só a partir desse movimento, desse fluxo, que se
forma um projeto de câmara. a víscera, o altar. que coisa bruta
de amor – a vida, fazendo a carne vingar nesse sentimento
de jornada, nesse pendor para o canto. para a rebentação[5]
Rebentação: 1. ato ou efeito de arrebentar; 2. choque das ondas sobre a praia, banco, recife ou obstáculo qualquer. O poema é um estado da língua que não comunica, o puro estilhaço do sentido, é o vestígio da pólvora do poema-projétil que passou. O poema rutila, ao passo que não teme a queda. Trata-se de uma bordadura artesanal que circunscreve o indizível, alinhavo em torno do furo, cicatriz a partir da qual não mais se lê – é o puro ressoar. O poema, assim como a interpretação analítica, “não é feito para ser compreendido[a], é feito[a] para produzir ondas”[6].
Em sua escrita, Mar Becker leva às últimas consequências o choque da língua com o corpo, testemunhando o fio da correnteza que porta, não sem astúcia e coragem, a ruína, o fracasso e o indizível.
Se acompanharmos Clarice Lispector, quando ela nos escreve: “o indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem”[7], não há dúvidas de que Mar fracassa à boa maneira, fundando uma língua própria, um nome – sua poesia tem o ímpeto das rajadas, demonstrando a forma ora turva, ora de um clarão. Há na sua palavra aquilo que se escreve do silêncio – a dureza, o erótico, o selvagem, que ainda guardam o fulgor.
Como poeta, Mar Becker opera com o fio cortante da navalha, reduzindo a linguagem ao seu limite, sua prática leva o sentido ao naufrágio, arruína com destreza a linguagem para fundar fendas que abarquem o poema. Ao citar a escritora argentina Alejandra Pizarnik, Mar nos arremessa em uma leitura-escrita-litoral na qual “(…) o barco não cessa de partir”[8]:
explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco levando-me”[9]
Partir: 1. ato de dividir em partes; 2. danificar, destruir; 3. pôr-se a caminho de algum lugar; 4. lançar-se. Aquilo que não cessa de partir também é matéria de trabalho da portuguesa Maria Gabriela Llansol, em seu precioso Onde vais, drama-poesia?:
Na tempestade que surgiu,
Só o leme do barco destroçado veio dar ao poema.[10]
Como recolher os destroços e dar a eles um destino? O caminho voraz de algumas escritas poéticas desemboca no não temor pelas ruínas, abre caminho a uma tecitura com os escombros daquilo que não cessa de partir, de não se escrever… o barco, a linguagem, o sentido, a voz. Como nos esclarece Laurent, “a função poética revela que a linguagem não é informação, mas ressonância.”[11]
Mar testemunha, com seu saber fazer com a palavra, aquilo que Lacan nos ensina: “a nuvem da linguagem – exprimi-me metaforicamente – faz escrita. Quem sabe se o fato de podermos ler esses riachos que eu olhava sobre a Sibéria, como traço metafórico da escrita, não está ligado – e notem que o ligado inclui o lido – a algo que vai além do efeito da chuva, o qual não há nenhuma chance de que o animal o leia como tal?[12] Além do que choveu do significante, a letra – “a escritura (…) é ravinamento”[13].
O trabalho de Mar Becker nos demonstra: o poema é a decantação dos resíduos, é a acomodação do que fez marca e porta, em seu grão de ilegibilidade, um traço. Sua escrita é filha da voragem – é o redemoinho que sorve embarcações –, subverte a sintaxe, fragmenta o sentido e precipita o poema em seu ponto abissal e indizível.
Em A mulher submersa, o tema das águas imiscui-se entre as transparências, cortes, costuras e o feminino. Não ao acaso, a poeta dedica o livro à sua irmã gêmea, à mãe e também à avó – “as três mulheres do mar onde submergi[u]”[14], como escreve.
A transparência do tecido descortina a ternura, não sem o fio maligno que se dá a alinhavar. No último mês, em uma conversa pelo Facebook, escrevo a Mar: a cena da mãe pela janela da organza é uma das minhas preferidas, os cortes, as suturas. Precisamente, ela me responde: “eu acho que tudo começa pelo armarinho e pelo retalho – e pela sutura/pela malignidade do remendar/e pelo terno disso.” Desse poema, segue o seguinte recorte:
musseline. chiffon. tafetá. gazar. renda
ver o mundo através da transparência própria de certos tecidos
eu tinha este costume, de sempre juntar algum retalho de
organza do chão e colocá-lo diante dos olhos
olhava minha mãe por essa janela; olhava-a costurando
fulgurosa
pálida como uma estrela que aos poucos se extingue, mãe viva
vinda de dentro de mãe morta
mulher vinda da ausência de outra, da ausência da história de
outra, mulher vinda de uma não-mulher”[15]
Sua poética é um convite a submergir, não sem ganhar fôlego, para retornar à superfície – lugar de encontro com o poema. A prática da letra de Mar Becker é também um ensino, seu poema é o rastro do cometa que passa e nos deixa atônitos, com as mãos ora vazias, ora cheias de espanto e assombro.