#06 - OUTURBRO 2023
A literatura rosiana ensina à psicanálise sobre o riso?
Flávia M. S. Leibovitz
Associada ao Clin-a
Participante da Comissão de Boletim das XII Jornadas da EBP-SP
O riso é uma afecção proveniente da súbita
transformação de uma expectativa tensa em nada.
Kant[1], 1984, p.266
“O nada é uma faca sem lâmina da qual se tirou o cabo”[2]. Passemos ao nada na intenção de encontrar aí uma sorte de demonstração da ligação do riso ao fora do sentido, por vezes ao nada, nas “anedotas de abstração” contadas e comentadas: narrativas simples, algumas colhidas da sabedoria popular, da literatura internacional, ou de sua lavra, que Guimarães Rosa faz desfilar quase que topologicamente ao esburacar o primeiro dos quatro prefácios de Tutaméia, “Aletria e hermenêutica”, com anedotas algo absurdas; “anedotas que mais colidem com o não-senso (…) estas visariam o nada (…) com alguma coisa excepta – as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja o leite que a vaca não prometeu”[3].
“Os dedos, são anéis ausentes?”[4]
“O avestruz é uma girafa; só o que tem é que é um passarinho”[5].
Para os entendidos da obra rosiana, nenhuma letra, nenhuma ordem de palavra em seu texto é fortuita. Segundo Rónai, isso teria chegado ao ápice neste livro; sua descrição, consoante à psicanálise, vale citar: “(…) as palavras todas medidas e pesadas, postas no seu exato lugar”[6]. Desde o título dá lugar ao non-sense, com um nome enigmático colocado na frente da ciência da interpretação – “Hermenêutica”: Aletria, um tipo de macarrão, termo sem relação com o conteúdo do texto. A literatura de Rosa pede decifração. Seria a-letria, algo que nos convida a ir além da literalidade, do sentido? Condensação e deslocamento de aletra e alegria? A quase homofonia com Alegria remete ao riso, portanto; assim, Aletria apontaria para o não sentido, com o prefixo a negando a literalidade? Hipóteses, interpretações possíveis, mas fato é que essa combinação enigmática dos dois termos nomeia a série de estórias engraçadas (para rir) entremeadas com alguma teorização e análise. O texto, apesar de em prosa, remete a algo da poesia, e neste caso, poesia visual, no lugar de cada parte, nas fontes de diversos tamanhos, nas citações em várias línguas, termina com a frase em latim “Quod erat demonstrandum”[7] após uma série de anedotas curtas e começa com a definição de estórias. “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, dever ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota”[8]. Algo podemos depreender aí sobre o anedótico em oposição à “H”istória – o que fura o compromisso com a realidade factual, a estória é sem compromisso com “a verdade”: ao aproximar a anedota da estória, uma das formas de produzir o riso, a define em sua relação com a dimensão da “verdade mentirosa”[9]. Outra passagem é fértil em demonstrar que o que faz rir fura o sentido: “denunciando ao mesmo tempo a goma arábica da língua quotidiana ou círculo-de-gis-de-prender-peru”[10]; causa graça como diz da cola do sentido e sua inutilidade; convergente com a orientação pelo real, ele aponta para o supra-senso?
Imagine um cachorro basset, tão comprido, que a cabeça está no Rio e a ponta do rabo em Minas. Se se belisca a ponta do rabo, em Minas, a cabeça, no Rio, pega a latir… – E isso é o telégrafo-sem-fio? – Não. Isso é o telégrafo com fio. O sem fio é a mesma coisa… mas sem o corpo do cachorro.
Joãozinho, dê um exemplo de substantivo concreto. – Minhas calças, Professora. E de abstrato? – As suas, Professora.
(o menino choroso): Seo guarda, o sr. não viu um homem e uma mulher sem um meninozinho assim como eu?!
Diante de uma casa em demolição, o menino observa: – Olha pai! Estão fazendo um terreno!
Tem o senhor pano para remendos? E de que cor são os buracos, minha senhora?
(…)representação de cano- “É um buraco, com um pouquinho de chumbo em volta…
(…)rede – Uma porção de buracos, amarrados com barbante…
(…) o capiau que, tentando dar a outro ideia de uma electrola, em fim de esforço se desatolou com esta intocável equação: – Você sabe o que é uma máquina de costura? Pois a victrola é muito diferente[11].
Podemos afirmar que Rosa faz por “silenciar a paixão pela verdade”[12] na tessitura linguageira de seu texto, primando por isso, ao furar o sentido com o que em algumas anedotas chama de nada, nos silogismos inconclusos, assim fazendo rir? “Nesse texto podemos cingir algo do nada que extrai o sentido na direção de silenciar a paixão pela verdade? Transmite algo na direção de repercutir o traumatismo – Freud, fazer ressoar a disjunção entre o inconsciente e a interpretação?”[13].
Trata-se de um convite à leitura e aos efeitos que pode produzir. O que a literatura de Rosa pode ensinar sobre o inconsciente real? – questão de cartel sobre literatura, escrita, poesia e Lacan, agora, articulada ao riso, segue como investigação. O riso como afetação ao corpo, toca o real, mas com Lacan, sabemos que o afeto engana, põe distância do Real, norte da bússola do analista. E de que nada se trata no que o autor tenta cingir nas anedotas de abstração? Há uma pista em breve referência à filosofia de Bergson. Mas que relação poderá haver entre este “nada residual (…) de operações subtrativas”[14] das anedotas, que faz rir – à primeira vista operação consonante com a orientação lacaniana – e “a emergência do que faz furo como traumatismo”[15]? O non-sense das anedotas de abstração por mais que pareçam apontar ao esp de um ris… pertencem à zona do sentido, estão dentro da articulação simbólica (inconsciente transferencial, Outro da decifração), talvez aquém da lacuna do fora do sentido[16], questão que segue em aberto e merece aprofundamento. Afinal, “O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”[17].