#06 - OUTURBRO 2023
Rir de tudo é desespero
Cassandra Dias Farias
Membro da EBP/AMP
“Quando você ficar triste, que seja por um dia
E não o ano inteiro
E que você descubra que rir é bom
Mas que rir de tudo é desespero”.[1]
Os versos desse poema sempre me impressionaram por se referirem ao riso como desespero.
De fato, me ocorre pensar que a relação do falante com o riso, tão explorada nas comédias, programas de humor e mais recentemente, nos stand ups, baseia-se em extrair graça e riso de situações em que, muitas vezes, prevalecem o sofrimento e a dificuldade na vida ou até mesmo, aquilo que é grotesco. Rir de tudo é levado ao pé da letra, como na expressão “tudo para não perder a piada”.
Tal era a figura do bufão, esse artista do humor e do disforme, forjado na Idade Média e que tinha o seu lugar garantido nas cortes, com a função de entreter e divertir o rei e a rainha, fazendo-os rir. Transgressor das normas sociais utilizava-se do desprezo, da ironia e caricatura, inclusive com fins de denúncia.
Também fazia parte da corte a figura do anão que ocupava com sua deformidade o lugar daquele que provocava o riso, associando o caráter de abjeto a essa relação.
Do bufão para o palhaço, se manteve a mesma dinâmica em ressaltar no outro os traços que destoavam e que poderiam ser utilizados para a zombaria, a humilhação e o constrangimento.
O humor parece que se constituiu tendo a segregação na cultura como base. Tal dinâmica contribuiu, decisivamente, para a disseminação da homofobia, do machismo, do racismo e de todo tipo de segregação tendo por prerrogativa, rir daquilo que, no Outro, ressoava como insuportável e passível de rechaço. Gozar do outro o ridicularizando a um limite extremo, lá onde não há graça alguma.
Esse cenário vem mudando, à medida que se avança a discussão em torno das minorias que se organizam enquanto discurso social. O que antes era tido como motivo de piada, hoje em dia encontra seus limites e o campo do humor está tendo que se reinventar em outras bases que não as do racismo estrutural.
Esforço civilizatório para regular aquilo que, no humano, insiste em se revelar através do riso – a segregação. Esse real insensato que se imiscui a partir da aniquilação no outro daquilo que lhe é mais particular.
Portanto, o lugar do riso na cultura nos permite interrogar a relação entre essa manifestação e suas razões para os falantes. Aquilo que os faz rir.
A psicose nos ensina, através do riso estereotipado, sobre esse real não recoberto pela significação fálica, puro nonsense, como no personagem do filme Curinga, que sofre de um tipo de transtorno em que o riso é disparado freneticamente, sem, no entanto, expressar alegria.
Muito pelo contrário, é no riso descontrolado, desproporcional e inadequado que o desespero do personagem se apresenta em toda sua dimensão. A marca da insensatez do gozo do Outro incidindo sobre sua posição melancólica, a boca que se abre em um sorriso ao mesmo tempo em que se contorce num esgar que se transforma em pranto, como no símbolo do teatro. As duas máscaras que surgiram na Grécia por volta do século V a.c.: a Comédia e a Tragédia, retrata o caráter moebiano dessas duas dimensões da existência: o pranto e o riso. Uma não vai sem a outra.
O riso como índice do real, gozo opaco do Outro diante do qual o sujeito situa-se na condição de objeto se distingue radicalmente do riso enquanto witz – formação do inconsciente em que o riso se produz a partir daquilo que o Outro atesta. O enigma do desejo do Outro está colocado para o neurótico, que tenta acercar-se dessa opacidade. Pela evanescência, como no sorriso do Gato de Alice, que aparece e desaparece de forma fulgurante, o riso na neurose permite a alternância dialética entre a alegria e a tristeza.
Se por um lado, “rir de tudo é desespero”, como nos ensina a face segregativa do humor e o nosso Curinga, por outro, passar do drama ao humor pode ser efeito de uma experiência analítica, tal como encontramos em alguns testemunhos de AEs.
Tomo aqui o testemunho de Fabián Naparstek, [2] AE 2002 a 2005, onde ele relata sua experiência analítica tomando como partida um chiste paterno que articulava humor e morte. Em sua travessia, no momento em que a ilusão do Outro completo cai por terra, o sujeito adotou uma posição cínica, desenganchada do Outro, na medida em que pôde rir da crença no Outro. “Neste ponto vale assinalar que a relação entre o cinismo e o humor, é algo que historicamente se encontra ligado”.[3]
A saída pelo cinismo consiste na crença de que o inferno é o outro, como pensava Sartre e que para além desse outro, se encontraria a liberdade. “Lacan discute sobre esse inferno com Sartre e exemplifica com seu apólogo que não existe saída sem o Outro”. [4]
Ao final de sua análise e mais uma vez diante do mesmo chiste paterno, ocorre uma passagem no estatuto da crença que sustenta o sujeito e que o permite passar a crer no sintoma. É o que permite Fabián dizer que “o humor tem permanecido enlaçado aos tropeços como sintoma no dizer. É o que me leva a crer no chiste como um modo de “ir ao pé da letra” e como um modo de crer no limite da palavra”.[5]
Uma nova aliança com o Outro para além do saldo cínico no final da análise como efeito da destituição do Outro e da crença no Pai, que o enlaçou à comunidade analítica e à causa da psicanálise, levando-o ao dispositivo do passe. “Sem dúvida, hoje me encontro embarcado em dar voltas sobre o mesmo com um chiste novo a cada vez.”[6]
Não há saída sem o Outro e poder servir-se do humor diante da estrutura dramática que tem a vida para o neurótico diz de uma captura da comédia que “havia tido o drama de sua vida”.[7]
Ensinamento precioso do Analista da Escola que articula o humor como um tratamento ao real, prescindindo tanto do cinismo quanto da segregação ao Outro. Que possamos fazer bom uso desse recurso e do enlaçamento da dimensão trágica, mas, também cômica do viver.