Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
A Subversão do Um
Bernardino Horne (EBP/AMP)
Em um instante, como sempre aconteceu com as grandes subversões, teve lugar esta que desejo comentar, quando Lacan, em 15 de março de 1972 no seu Seminário 19, proferiu: Trata-se do Um![1]
Se é verdade que essas palavras se proferem em um instante, tal como foi com “Eureka!” ou a maçã de Newton, também é verdade que resultaram de uma longa reflexão na qual todos eles estiveram submersos. Lacan inicia, de forma programada e sistemática, a sua pergunta sobre o Real, no seminário A Ética da Psicanálise. Deixa explícito que inicia um programa que terá como objetivo “um aprofundamento na noção do real”. O trabalho que aqui se inicia — estamos falando do ano de 1960 — tem momentos notáveis até finalmente alcançar um ponto fixo no Seminário 23, quando estabelece o Sinthoma como a via clínica privilegiada na direção do tratamento, e afirma: “O analista é o Sinthoma” e “O real é sem lei”. Mas, nesse interessante e riquíssimo caminho, o seu ponto culminante, o verdadeiro instante de corte epistemológico que produz um movimento de 180 graus, a rigor, encontra-se no Seminário 19. É nele que se produz o novo: “essa coisa incrível que é haver o Um”, o que implica que o Outro não existe.
Esse projeto ético que abre Lacan não procura o caminho do Ideal, o que seria continuar com a clássica procura do Bem, em especial na tradição aristotélica. Aponta ao lado escuro da Lua. “Acheronta movebo”. Se interessa por Sade, quem dá seu nome à perversão “sadismo” e que teve uma vida pessoal profundamente masoquista.
Aproximar-se do Real com a intenção de aprofundar nele, implica, segundo Lacan, alcançar o núcleo do masoquismo erógeno primário freudiano[2].
Partir do Um não é a mesma coisa que partir do Outro. A direção da cura não mais se orienta no sentido, mas no sem sentido. A leitura e o escrito tomam o lugar da interpretação e da escuta do sentido. Mas de onde surge esse Um original? Pergunta-se Lacan.
No final do capítulo IX Lacan define esse Um fundador — já que é ele que funda o Campo Uniano — dizendo que ele toma existência do próprio fato de deixar de ser significante. Lembro a frase de Lacan: “O que só existe ao não ser: é exatamente disso que se trata, e foi o que eu quis inaugurar hoje no capítulo geral do Uniano”[3]. Miller escreve o que resulta da existência do gozo um da seguinte forma:
J – J Ste.
Há gozo sem Significante e há gozo com Significante[4]. Há um Significante Uniano que deixa de ser significante e existe como gozo, como puro existir, sem significante e, é claro, há gozo com significante. Este gozo de simbólico no real é causado pelos significantes de alíngua, que produzem gozo no corpo. São significantes sozinhos que não chamam o significante 2, apenas como ressonâncias produzem gozo no encontro com o corpo.
A frase de Lacan também quer dizer que há um significante que, para poder existir, desiste de ser significante. Inaugura-se o campo de existência humana, que é de gozo. Lacan diz que “Há algo do Um em cada Um”. E nos dá um conselho, “o primeiro passo da experiência analítica é introduzir nela o Um, como analista que se é”[5].
Da mesma forma em que o fio que escapa da cicatriz do umbigo do sonho traz gozos sobre os quais se construirá a cena do sonho, sobre esses fios de gozo que chegam desde o Um se montará também toda a estrutura de linguagem que nos faz humanos.
A Grande Subversão de Freud foi criar um dispositivo que parte do discurso do Outro. A Subversão de Lacan foi dizer que o discurso do Outro é fundamental, mas não é constitutivo. O constitutivo vem do Um.
[1]Lacan, J. O seminário, Livro 19: …Ou pior, Zahar, Rio de Janeiro, 2012, p.131.
[2] Texto anteriormente publicado em Lacan XXI: Revista electrónica da FAPOL vol. 5, de maio de 2018, sobre o Seminário da Ética – Um aprofundamento na noção do real.
[3] Lacan, J. O seminário, Livro 19: …Ou pior, Zahar, Rio de Janeiro, 2012, p.131.
[4] Miller, J A. Piezas Sueltas, Paidós, Buenos Aires, 2013, p.113.
[5] Lacan, J. O seminário, Livro 19: …Ou pior, Zahar, Rio de Janeiro, 2012, p.123.