Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
A solidão e a adolescência
Fala-se sempre sozinho, diz Lacan, mas isso não quer dizer que falar da solidão seja algo simples. Sua forma e matéria variam para cada um. Talvez por isso a encontremos com mais desenvoltura na poesia, essa forma de escrita que sabe que toda fala está aquém ou além da comunicação. Maurice Blanchot dizia que a solidão é uma ferida do mundo a qual está condenada toda forma de escrita poética porque esta transforma a língua, porque o mundo é completamente transformado nesta experiência que se funda em uma “solidão essencial”[1]. Em Blanchot conseguimos cernir uma solidão que não é apenas da ordem do fenômeno, mas também um efeito da língua, de sua metamorfose. Isto talvez seja mais fácil de vislumbrar neste trecho de Alejandra Pizarnik em La palabra del deseo: “La soledad no es estar parada en el muelle, a la madrugada, mirando el agua con avidez. La soledad es no poder decirla por no poder circundarla por no poder darle un rostro por no poderla hacer sinónimo de un paisaje. La soledad sería esta melodía rota de mis frases”[2]. A solidão não é apenas estar sozinho, é uma ruptura, uma fratura na frase. E, poderíamos perguntar: uma fratura na língua?
Arrisco-me nessa hipótese para pensar a solidão como fratura na língua a partir da adolescência. Percorrendo alguns pontos do Seminário 20 de Lacan, encontramos a solidão e o exílio articulados à inexistência da relação sexual e à presença do gozo. São dois pontos, a solidão e o exílio, que podem ser lidos a partir da disjunção e não da conjunção, ou ainda, são lugares que indicam a inexistência da equivalência, do complemento. Se pensarmos a solidão como uma das figuras do exílio, poderíamos tomá-la em sua dimensão estrangeira, mais próxima de um gozo que se agita e que deixa um sujeito sem lugar no seu mundo. Abordando-a a partir da adolescência, então, teríamos um aparente paradoxo: a solidão e o exílio se produzem em um encontro. Como explica Laure Naveau: “não há relação sexual, por um lado; por outro, há uma relação possível ao corpo, ao falo, ao sintoma, ao gozo. Esse designador da existência revela, entretanto, ao mesmo tempo, um impasse lógico, aquele da solidão. É a tese lacaniana congruente com a primeira: a relação ao gozo isola, o gozo que há sublinha a não relação ao parceiro. A solidão está em jogo”.[3]
Dentre as muitas que teremos na vida, a adolescência aponta para uma profunda experiência de separação: do corpo e dos significantes da infância, da autoridade dos pais. Essa separação se produz, sobretudo, no encontro com o Outro sexo, com a diferença, com o Outro corpo. E uma das suas versões é o próprio corpo no atravessamento de uma metamorfose – que é, de acordo com Freud, a puberdade, uma mudança no corpo que produz efeitos no modo de gozo.
O despertar dos sonhos, como mostra Lacan, leva em conta o começo do trabalho da fantasia como preparação para esse encontro sempre faltoso[4]. Ora, se o encontro com o Outro sexo é também o encontro com o real da não relação, ele implica um ponto de solidão. Há, então, um paradoxo no encontro com o Outro sexo que é dado pelo despertar desse gozo que, na impossibilidade de encontrar equivalência no Outro, exila o adolescente em um intraduzível[5]. O exílio é uma forma de existir para poder dar lugar a essa novidade do gozo.
Clarice Lispector o diz lindamente em seu conto O primeiro beijo: “Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido. Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil”[6].
Esse equilíbrio frágil pode ser encontrado na formulação de Lacan que diz: não somos um corpo, mas temos um corpo[7]. É preciso, então, torna-lo habitável. O que não é simples, porque há algo do corpo que sempre resta como estranho, como fora da imagem que o unifica. Não se trata então de domesticar um corpo, mas de habitá-lo nesse lugar equívoco entre a língua e a imagem. A puberdade aprofunda essa relação de estranhamento colocando em crise o corpo, sua imagem, as identificações e os recursos simbólicos que se tinha para dar conta das hipóteses sobre a sexualidade. Não é por acaso que os adolescentes criam uma língua própria, uma língua estrangeira dentro da própria língua. Justamente porque falar, tomar a palavra, implica um risco: o risco de experimentar a língua de uma forma inédita.
A adolescência é uma construção[8] muito singular porque se trata, podemos dizer com Lacan[9], de uma nova montagem pulsional: quando ela deixa de ser predominantemente auto-erótica, como explica Freud nos Três ensaios, e encontra, ou melhor, reencontra o objeto sexual[10]. Seguindo a leitura do texto de Daniel Roy[11], podemos dizer que esse reencontro é com o furo que marca a impossibilidade de uma plenitude mítica que foi encoberto pelo amor dos pais na infância, em suma, o encontro com o real da não-relação, com a inconsistência do Outro, com o enigma do feminino. Ou seja, a sexualidade faz furo no real em torno do qual o ser falante terá que montar suas hipóteses, construir seu corpo e sua língua, uma vez que as construções da infância não contemplam essa nova posição. Como diz um poema de Joan Brossa: “Esta palavra, tantas vezes / aplicada sem pensar, preciso dela aqui / e já não me serve”.
Hoje poderíamos nos perguntar de que ordem são os encontros que podem prescindir da presença dos corpos? Seriam encontros? O mundo acontece também nas redes sociais e essa virtualização dos corpos, por exemplo, implicaria o curto-circuito dessa passagem que o adolescente pode fazer no corpo do Outro deixando-o mais a sós com seu corpo? Ainda estamos recolhendo as consequências dessas mudanças e as respostas não parecem nada simples. Mas ainda podemos afirmar que, sozinho no meio dos outros, a adolescência porta um corpo que não tem lugar na língua. Essa metamorfose, esse corpo estranho que solicita uma nova relação com a imagem, o gozo estrangeiro que se funda, inicia o turbulento debate dos corpos. O que o encontro com um analista pode criar é uma parceira que pode ouvir as experiências desses seres falantes, suas frases rompidas de solidão e, assim, ir construindo lugares, acompanhando-os na invenção de uma língua, para que não haja apenas a vertigem do que não cessa de não se escrever, mas o contorno de linhas tortas e tênues por onde poderá caminhar o desejo na complexa tessitura da vida.
Por Flávia Cêra – EBP/AMP