Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
#Orientação – Desencanto da sexualidade
Será que podemos dizer que Freud formula propriamente a impossibilidade da relação sexual? Ele não a formula como tal. Se eu o faço, é simplesmente porque isso é muito simples de dizer. Está escrito de todas as maneiras. Basta lê-lo (J. Lacan)
Mais do que uma leitura de Freud, o ensino de Lacan é sua resposta singular ao que foi o acontecimento Freud na cultura, ou, como diz Miller[1], ao “traumatismo Freud”, já que Lacan a ele reage sintomaticamente, em traumatismo, procurando com seu ensino transmitir a radicalidade da descoberta freudiana que esburaca o discurso universal desvelando o furo da estrutura.
Mal compreendido, foi um escândalo Freud afirmar que o inconsciente só reconhece a inscrição do falo para diferenciar os dois sexos em termos de castração. A pulsão genital – aquela que conduziria à relação com o objeto total, A mulher – revela-se problemática. Contrariamente ao sonho dos pós-freudianos, Freud insiste na pulsão que permanece parcial quanto à finalidade de reprodução e cujo objeto repousa sobre a Coisa perdida.
Mas, a arte precede o psicanalista. Segundo indica Lacan, o dramaturgo de O despertar da primavera “antecipa Freud e muito” [2]. Em 1891, enquanto Freud ainda cogitava sobre o inconsciente, o jovem Moritz, às voltas com o despertar da sexualidade e do gozo enigmático, se lança “entre os mortos excluídos do real”, revelando tragicamente que nessa delicada transição nem sempre o jovem alcança uma idade para o desejo.
Para Lacan, o essencial naquilo que Freud chama de sexualidade é que esta faz furo no real e, enquanto Freud levava-a para todos os campos, Lacan a restringe ao encontro com o Outro sexual, que não existe. A pulsão finalmente não representa a sexualidade, uma vez que o parceiro em jogo é o objeto a que vem substituir o Outro sexual na forma de causa de desejo, ou o S(A) barrado, outra versão do furo da estrutura de onde parte o gozo dito feminino. Persegue-se uma satisfação ignorada, aberrante, sintomática, marcas e afetos do exílio do que “não há”.
O ponto de vista estrutural na psicanálise inaugurado por Lacan[3] implica anular as questões da gênese, separando-a de uma teoria do desenvolvimento da libido baseada na genética e no indivíduo. Em contrapartida, o sujeito do significante supõe a estrutura da linguagem que recorta o circuito da pulsão a partir da demanda do Outro. Oral, anal, sejam quais forem os revestimentos para o objeto da pulsão, este não repousa no desenvolvimento do organismo mas se inscreve com as operações lógicas de causação do sujeito: alienação e separação. O olhar, a voz e o nada, objetos que Lacan fez surgir na psicanálise, não se situam em estágio algum, generalizando o estatuto de objeto a como consistência lógica e topológica, causa ausente, o objeto perdido que é o suporte do desejo.
Nesse sentido, a fase fálica é, para Lacan, central, pois a função do objeto a é representada por uma falta, ou seja, a falta do falo como constitutiva da disjunção do desejo e do gozo”[4]. Com a elaboração dos anos 70, Lacan esclarece que o falo como significante, que funda a identificação fálica diferenciando meninas e meninos, o famoso binário criticado pelas teorias do gênero, não se confunde com o gozo fálico, que é a encarnação da não-relação. Uma leitura equivocada das fórmulas criticadas da sexuação supõe que o gozo fálico e não-todo fálico reeditam o binário homem/mulher impondo a “heterossexualidade obrigatória”, como denuncia J. Butler, quando se trata, ao contrário, de modos de fazer fracassar a relação sexual que não há e da impossível simbolização do real do sexo que nenhuma identificação de gênero, nem mesmo as mais estranhas, poderá eliminar. “Não-há” senão o “nada” que se desvela para o jovem Moritz e presentifica a fugacidade do sentido sexual, que nem o significante fálico nem o saber sexual podem estancar.
Nesse ponto, Lacan articula o que em Freud permanece desarticulado[5]: o circuito da palavra e o circuito da libido. Enquanto Freud mantém um paralelismo entre o recalque (que impede que o dizer se esgote), e a regressão (que obstaculiza a plena realização do sexual), Lacan demonstra sua articulação. O caráter parcial das pulsões decorre da estrutura da linguagem que já nasce recortada pela linguagem. “O sexo é um dizer”[6] que surge do significante do qual padece em torno de um real, ele mesmo dessexualizado.
Despertar para a idade do desejo?
Posto isso, cabe indagar a natureza dessa escansão e do “despertar” que opera na puberdade instaurando uma ruptura em relação ao período infantil, tal como postula Freud.
Se o conceito de adolescência é uma construção é porque este não repousa na realidade orgânica que anunciaria sua chegada que talvez nem sempre tenha existido. Seria a adolescência uma construção da nossa sociedade adolescente que a valoriza eternizando-a, postergando o ato da vida adulta no culto ao aperfeiçoamento interminável de si mesmo?[7]
De todo modo, é necessário um segundo tempo para situar a puberdade como uma ruptura, localizável somente a partir dos seus efeitos de subjetivação sintomática. Nessa direção, Stevens situa a adolescência como um “sintoma da puberdade”, uma resposta diante de um real que irrompe, o que requer do jovem sustentar-se como desejante diante do despertar pulsional e não mais como desejado (ou não desejado) pelo Outro parental do qual terá de se separar.
Para Lacan, o que separa a criança do adulto não é nem a idade nem a puberdade, mas a posição ética de responsabilizar-se por seu gozo. Trata-se, como comenta Laurent[8], daquele que foi até o fundo de um desejo e encontrou seus restos, a causa que o anima. Por isso, o adulto, como diz Lacan, é aquele que não desconhece a causa de seu desejo, aquele que soube extrair do furo da estrutura a sustentação do desejar e a certeza de seu ato. Mas, onde estão os adultos? A questão já se colocava para Lacan em 67, quando se referia à “criança generalizada”[9] na sociedade na qual “não existe gente grande” que possa responsabilizar-se pelo irredutível do gozo que não convém à relação sexual.
Cabe sublinhar que o despertar pulsional da puberdade não equivale ao despertar para o desejo que poderá dar marcha à iniciação sexual do adolescente. Não sem efeitos, a sexualidade da era vitoriana aos dias atuais sofreu uma grande transformação. Já em 74, Lacan[10] assinalava “a dimensão pública da retirada do véu” em uma época em que a permissividade sexual nas ruas – longe de eliminar os embaraços frente à sexualidade que perdia sua áurea clandestina – afetava o apetite sexual. Ao que parece, como dizia Serge Cottet[11], Don Juan, anda cansado”, e cada vez mais desencantado frente ao empuxo-ao-gozo da hipermodernidade – o que lhe dá pouca oportunidade de confrontar-se com “aquilo que da sexualidade faz furo”.
Em “Televisão”, Lacan indaga: “como desconhecer que esses dois afetos – o tédio e a morosidade – se denunciem nos jovens que se entregam a relações sem repressão?”[12] A indiferença e apatia do desejo, distante do mito romântico do jovem em crise estruturante, levam Domenico Cosenza[13] a indagar os efeitos da ausência de um véu em torno do enigma da sexualidade no adolescente contemporâneo, uma vez que, para “fazer amor com as mocinhas”, como diz ironicamente Lacan, é preciso antes “o despertar de seus sonhos”.
Se há um despertar que agita o corpo do púber em ebulição, não é certo que haja necessária e paradoxalmente um despertar da sexualidade na época em que a fúria copulatória da pornografia disponível na prateleira mostra antes um véu que não há, um saber inconsciente indisponível para mobilizavar o sonho da Outra cena, mas um puro sem-sentido que cada vez menos encoraja o jovem à iniciação da vida sexual.
Como sair do tédio do gozo autista masturbatório, da indiferença apática ao ato sexual? A promessa fálica encanta cada vez menos e o gozo, disjunto do desejo, desarticulado do dizer, deságua frequentemente no afeto central da contemporaneidade, a tristeza, dita depressão, como sinaliza Lacan, ali onde o saber inconsciente permanece indisponível – quando não termina na passagem, cada vez mais frequentada pelos adolescentes, ao ato suicida.
Muitas vezes encerrado na bolha entediante do Um, o jovem de hoje, contudo, se agarra aos seus aparelhos que o mantém hiperconectado nas redes ditas sociais. Novas respostas dos adolescentes diante do furo da estrutura, da inquietante fugacidade do sentido vital que se esvai continuamente nos tempos do Outro que não existe?
Para que o gozo possa condescender com o desejo e o jovem possa por fim despertar para a idade do desejo, não seria hoje antes preciso velar a nudez da pulsão para introduzir um mistério diante do inominável do objeto, uma versão do objeto a que cause o desejo? A propósito, servir-se de “um entre tantos nomes-do-pai”, de uma père-version diante do impossível, é a orientação com a qual Lacan conclui O despertar da primavera.
Caso a função de suplência do amor ainda zele por esta função, o psicanalista poderá ser um parceiro fundamental que sustente, com sua presença e seu dizer, o laço transferencial a partir do qual o analisante decidido poderá extrair um objeto privilegiado não disponível no mercado: o objeto separador causa do desejo.
Maria Josefina Sota Fuentes