Kátia Ribeiro Nadeau - Associada da CLIPP “Minha alma tem o peso da luz. Tem o…
#Amor e Sexo – Para falar de amor e sexo, falo dA mulher
Para falar de amor e sexo, falo dȺ mulher
Por Cristiana Gallo
“Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”.[1]
Inicio pelo aforismo lançado por Lacan no Seminário 10, a angústia, que instiga a percorrer as condições de gozo e desejo no ser falante, para retornar ao amor e ao sexo ou, em melhor lugar, falar de amuro.
Neste Seminário nos deparamos com a indicação de que à mulher nada falta, revirando a verdade freudiana que aponta maiores embaraços na construção da própria sexualidade do lado da mulher; aqui encontramos uma nova perspectiva que, para além do edifício edípico, nos convoca a um novo olhar.
A mulher, segundo Freud[2], atravessaria um difícil caminho frente ao reconhecimento de sua própria castração, uma vez que haveria uma rebelião frente a isto, conduzindo a três diferentes caminhos: apartar-se de sua própria sexualidade; desenvolver um “complexo de masculinidade” ou aceder a uma “atitude feminina normal” na qual toma o pai como objeto.
Miller esclarece que “quando se regula sobre o falo como significante, e Lacan mostra que essa é a verdade de Freud, a castração tem como fundamento a apreensão no real da ausência de pênis da mulher”[3]; daí a fantasia fálica feminina de acreditar possuir um falo e que a mãe também o possui.
No Seminário 10 saímos da dimensão do significante para adentrar o campo do organismo: do falo significante ao falo órgão, a partir do qual se explicitam as consequências no campo do gozo e do desejo para o homem e para a mulher.
A partir dessa dimensão do organismo Miller assinala que no caminho do gozo “é o macho que fica embaraçado”[4] diante da detumescência do órgão, enquanto que as dificuldades do lado feminino surgem a partir da colocação do desejo do Outro em jogo: ela se embaraça diante da falta do Outro e citando Lacan aponta “que ‘um verdadeiro desejo de homem angustia o sujeito feminino’ (…) na medida em que esse desejo tem relação com a falta e convoca o sujeito feminino a ser o que faz suplência, portanto a força à interpretação.”[5]
Esta nova posição aqui apresentada se desdobrará na sequência do ensino de Lacan, até culminar com a apresentação das fórmulas da sexuação no seu Seminário 20, mais ainda, onde, do lado mulher das fórmulas, ela se situa no lugar de causa de desejo para um homem e, para si mesma, como o enigma de sua própria falta.
“Esse Ⱥ não se pode dizer. Nada se pode dizer da mulher. A mulher tem relação com S(Ⱥ), e já é nisso que ela se duplica, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com Φ.”[6]
Prosseguindo, Lacan nos diz que só lhe restará falar de amor e referindo-se à mulher diz que ela “só pode amar no homem, (…) a maneira com que ele enfrenta o saber com que ele alma”[7] – alma podendo ser entendida como efeito do próprio amor e não referida ao sexo: “com efeito, a alma alma a alma, não há sexo na transação”[8].
Fernanda Otoni apresenta o verbo almar como a invenção lacaniana que articula reciprocidade e “um nada que ressona”; ela esclarece este ponto ao retomar em Lacan que
“o hábito ama o monge” mas o que há sob o hábito, e que chamamos de corpo, não é o monge. Aí, voltamos ao início, por (a)para–esser esse resto, que dá vida ao oco do ser. Uma contingência que se encarna e, por um triz, cessa de não se escrever – toma o corpo, o excita, deixa rastro, se escreve como ‘contingência corporal’ lá onde se verifica uma efêmera conexão, no instante de um lapso, entre o falo e o que quer que seja. Por essas e outras…”[9]
Considerando as mudanças sócio-culturais e tecnológicas que impactam as nossas vidas, podemos falar em alterações nas condições de amor para os seres falantes situados do lado mulher das fórmulas da sexuação de Lacan? Ou, como nos diz Serge Cottet, “sob a roupagem ilusória da liberdade sexual, reencontrar-se-iam as invariantes do sentimental”[10].
Nesta liberdade poderíamos situar o que nas mulheres se expressa na atualidade como um “eu também” em semelhança aos homens, estabelecendo uma disjunção entre amor e sexo.
Cottet em sua reflexão acerca do sexo e do amor dos adolescentes na contemporaneidade indica, entretanto, que a controvérsia recai sobre todos no que toca ao empuxo-a-gozar.
Os sites de relacionamento atestam o empuxo-ao-gozo no desfile das imagens: pedaços de corpos que se lançam ao jogo do olhar e ser olhado pelo outro. Neste registro reencontramos os termos tratados por Lacan e retomados por Cottet ao falar da sexualidade “ao ar livre” e seus efeitos: “o enfado e a morosidade (Lacan, 1974)”[11].
“De tudo isso resulta um ‘hedonismo temperado’, longe do modelo fusional da paixão, que de todo modo preserva o ideal amoroso. ‘Os próprios adolescentes não podem escapar a uma referência, ainda que ligeira, ao sentimento e ao amor, a fim de velar a nudez da pulsão, as moças expressando o desejo de que os rapazes reconheçam, por meio das palavras, o que sentem’ (:269). Nada de novo sob o sol. Exceto que o sentimento amoroso vem dar ‘uma navalhada no consumo-mundo’ (Lipovetsky, 2006:270).”[12]
Na clínica escuto de uma mulher o lamento “do casal”, formado a partir do Tinder, que o encontro não tenha se produzido a partir da contingência, mas a partir da certeza do encontro sexual produzido pelo aplicativo.
Contudo, como indica Christiane Alberti, tal encontro não elimina a dimensão do imprevisto, do não calculável do gozo, uma vez que a palavra se apresenta: “O encontro não pode ser definido sem uma palavra, e aí tudo se complica!”[13], mesmo por um mero SMS!
Amor e sexo disjuntos, entre conexões e desconexões, faz reverberar “a alma alma a alma” e questiona, para além do gozo fálico, o gozo “de que não é possível dizer se a mulher pode dizer alguma coisa – se ela pode dizer o que sabe dele”[14].
Pergunto, onde recaem as palavras de amor no ser falante que se localiza do lado mulher das fórmulas da sexuação?
Não sendo só questão de reciprocidade, podem tocar, enquanto letra de uma carta de almor, num ponto indizível da satisfação, a Outra satisfação, naquilo que se refere ao próprio enigma e que vem a animar o corpo, mesmo que às vezes.
Jésus Santiago nos traz uma maior precisão sobre tal questão ao falar sobre o feminino:
“Ser Outra para si mesma confunde-se, portanto, com a excepcionalidade de um gozo submetido aos intervalos abertos da satisfação pulsional, satisfação marcada pelos limites fugidios, pois se vê envolvido, como nos diz Lacan, pela sua própria contiguidade. Dizer que o gozo feminino é contíguo consigo próprio é admitir que sua ancoragem no falo não é uma necessidade imperiosa e que o destino desse gozo é fazer-se existir como contingência corporal.”[15]
E, em direção ao amor mais digno, aponta que
“Graças à lógica da sexuação, acaba por se estabelecer que a paixão entre os sexos se escreve sob a égide do real impossível do gozo. Com fundamento na escrita do impossível da relação entre os sexos, pode-se afirmar que a invenção da psicanálise é o ‘novo amor’, no sentido do amor que inscreve a indignidade pulsional, a Coisa, o gozo de cada um.”[16]
Seguindo com o “novo amor”, acrescento o que Maurizio Mazzotti nos fala sobre amuro, distinguindo-o do amor “con-fusão”: amuro fala de um amor “que não crê na ilusão dos dois que fazem um, porque não nega o irredutível de um gozo que, aninhando-se no falar, faz muro, como o faz o objeto a, causa do desejo, enquanto irredutível à demanda.”[17]
Para um ser falante que se deixe levar ‘por essas e outras’, o imprevisto pode ser admitido como um ponto de abertura a um jogo que não se conclui, mas é jogado a cada vez, na medida em que se admite o espaço vazio em que ele se apresenta – cedendo ao risco de preenchê-lo com o ideal romântico da completude, mas tomando-o como espaço em que um gozo não assimilável pelo significante pode ser vivido, às vezes.