O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
Uma disputa do ato: contribuições para uma clínica psicanalítica do suicídio
Nieves Soria (EOL/AMP)
A recusa do inconsciente
O suicídio nos deixa sem palavras, não sabemos nada sobre ele. Ele nos confronta com a ignorância mais absoluta. Deslumbramo-nos até que o esquecemos. Ele se produz em um abismo do qual, só às vezes, nos aproximamos em nossa prática. O abismo no qual o suicida se lança consiste em uma recusa de saber, uma recusa que se eleva como um não radical e absoluto diante dos emaranhados do verdadeiro, com suas voltas e reviravoltas, seus meio-dizeres, seus equívocos. Ele recusa a dimensão falha do ato no que diz respeito ao verdadeiro. É uma negação definitiva do inconsciente.
A releitura lacaniana de Freud nos leva a uma aproximação estreita entre a recusa do saber e a pulsão de morte, em que o gozo da vida permanece ligado ao prazer que pode produzir o dizer sobre o verdadeiro. É assim que em 1971, Lacan dizia em seu seminário: “[…] Só que, em vez de falarmos ninharias acerca do instinto de morte primitivo, proveniente do exterior ou do interior, ou nos voltando do exterior para o interior e, no fim da vida, nos relançando sobre a agressividade e o tumulto, talvez pudéssemos ler o instinto de morte freudiano o que levaria a dizer, quem sabe, que o único ato, se houvesse um que fosse um ato consumado, seria, se ele fosse possível, o suicídio”[1].
Sem esperança
Em seu texto “Televisão”, ante a terceira pergunta kantiana – o que devo esperar? – que lhe foi dirigida por J.-A. Miller, Lacan adverte contra a possibilidade de alimentar uma esperança na análise: “Saiba apenas que, por várias vezes, vi a esperança – aquilo a que se chama os róseos amanhãs – levar ao suicídio, pura e simplesmente”[2]. De fato, o discurso analítico pode trazer à luz o inconsciente do sujeito, mas isto é contingente, não há garantias: “[…] com o que pretendo dizer que a esperança não adiantará nada, o que basta para torná-la inútil, isto é, para não permiti-la”[3].
A esperança é uma promessa que supõe um Outro ali onde ele não existe, onde só existe o acaso. Nessas manhãs que cantam, o futuro sorri ao sujeito, faz-lhe um sinal de um futuro afortunado, como se estivesse assegurado, desconhecendo tanto sua própria responsabilidade com relação ao seu desejo, no que o destino lhe reserva, quanto às contingências da vida. Lacan indica que o esperançoso é um possível suicida, pronto para fazer Um com esse Outro sorridente, empurrado pelo retorno mortal da exaltação maníaca, ou para passar ao ato ao deixar de perceber aquele sorriso do Outro em sua vida. Daí esta surpresa, que não é raro perceber nas pessoas próximas do suicida, que é costumeiramente repetida, de que o percebiam bem, feliz, etc.
Orientação pelo sintoma
É o sintoma que cumpre a função de impedir que tudo corra bem, como uma espécie de remédio – claro que não infalível – contra o suicídio, como recorda Lacan em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”: “Pena que haja os que pulam da balaustrada logo no primeiro andar, e justamente aqueles cujas necessidades foram todas reconduzidas à sua exata medida. Reação terapêutica negativa, dirão […] graças a Deus, a recusa não vai tão longe em todos! O sintoma simplesmente torna a brotar qual erva daninha, compulsão de repetição”[4].
Trata-se aqui de um ponto fundamental na direção do tratamento: a importância de manter aberta a dimensão do sintoma. Este ponto torna-se crucial no tratamento das melancolias. O melancólico vê o futuro como obscuro, nada de bom lhe está reservado e, geralmente, como consequência da recusa do simbólico em jogo na sua posição, é nesta perspectiva sombria e, somente nela, que consiste a sua dimensão sintomática. Isto põe à prova o desejo do analista que, muitas vezes, só está presente para que o sujeito volte, a cada vez, para depositar nele, para transferi-lo uma dose desta pulsão de morte desligada que o habita.
A função sintomática do analista, ao encarnar na transferência a caveira mesma, sem enterrar, e que com sua presença embaraça o melancólico, muitas vezes, isto pelo menos o alivia parcialmente de seu peso, abrindo-lhe, em alguns momentos, de forma excepcional e contingente, um espaço para outro destino deste gozo que pode então tomar o caminho da sublimação. Trata-se, no entanto, de uma prática sem garantias.
Uma política do ato falho
Nas suas observações sobre o conceito da passagem ao ato, Miller argumenta que a clínica da passagem ao ato evoca a antinomia entre o pensamento e a ação[5]. É nesta hiância que terá lugar o ato analítico, o qual se propõe como política do ato falho, tratando da proximidade da passagem ao ato suicida por meio da hiância.
A indicação freudiana – em desuso nesta época em que as análises duram muitos anos – de não tomar decisões como viajar, casar, etc., enquanto durasse a análise, não apontava precisamente para certa suspensão do empuxo ao ato que poderia insinuar-se como um curto-circuito que, ao retirar o sujeito do circuito da palavra, lhe pouparia da confrontação com algum saber que o horroriza?
Esta suspensão pode se realizar de outras formas. Nem sempre é possível. É o ato analítico, aquilo que provém do desejo do analista, um desejo que está consciente da disjunção entre saber e ação. Trata-se de devolver o “não penso” ao lugar do analista, dividindo o sujeito e o causando para que tome o tempo de compreender. Afinal de contas, não se trata de disputar o ato do sujeito?