Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
Um laço êxtimo: solidão com laço – Sobre o ato analítico e a garantia
Não há sujeito sem Outro, ou seja, não há ser falante que não se encontre ligado aos traços, às marcas, de uma história singular. Como falar de solidão? De que solidão falamos no que diz respeito ao ato analítico? É possível pensar em uma articulação entre essa solidão que acompanha o ato e a garantia?
Sob o título “Um laço êxtimo”, tentarei desenvolver essa relação paradoxal. O “êxtimo” supõe mais que uma articulação, supõe a inclusão do “sozinho” no laço. Proponho partir daí para pensarmos a garantia como uma solidão “com”.
Começarei pela resenha do Seminário do Ato analítico”[1] e avançaremos, com o último ensino de Jacques Lacan, a fim de nos aproximarmos da ideia da solidão do ato analítico. Tenho uma hipótese para responder à pergunta sobre o que permite operar no lugar de analista e ter alguma garantia sobre esta função: para além de nos instalarmos como tal e dos diferentes modos de identificação, imaginários e/ou simbólicos – que não são nada mais que relações e que se inscrevem no que Lacan chama (no mencionado Seminário) de “falso ser” –, é necessário realizar a experiência que chamarei, desde já, “de solidão”.
Segundo Lacan, “o ato psicanalítico […] eis que nós o supomos a partir do momento eletivo em que o psicanalisante passa a psicanalista. […] O ato tem lugar por um dizer, e pelo qual modifica o sujeito”[2].
1. Momento eletivo, uma decisão;
2. Um passo, passa-se de uma posição a outra: de psicanalisante a psicanalista;
3. O ato vem no lugar do dizer.
Falemos do ato analítico. Ato analítico não é o ato do analista, nem o ato do analisante; refere-se a “um momento seletivo”, à produção de um analista. E Lacan segue: “o ato analítico é o que nunca foi visto nem ouvido por nos ninguém sabe, ninguém viu além de nós”[3]; ou seja, ele fala do Ato como algo nunca referido e, menos ainda, questionado por nós, para introduzir uma nova perspectiva, uma que difere da maneira como Freud o havia feito[4].
Sabemos que Freud o concebeu, primeiro, como um ato fracassado, ato sintomático; isto é, em termos de formação do inconsciente e/ou significação – algo a ser interpretado. Em um segundo momento, tratou-o como algo que se opõe ao inconsciente, à rememoração[5]. Nessa perspectiva, mais que ser interpretável, o ato é resistência, é obstáculo. Em Lacan, além da diferença radical entre ato e ação, está a novidade de introduzir a dimensão do ato de fora do Outro, em suas diferentes variantes (Ⱥ). O ato não deve ser tomado como correlato à significação, mas como correlato à pulsão; ou seja, o circuito libidinal do paciente, onde o analista passa a ser objeto. É isso que permite à Lacan dizer que o ato analítico tem estrutura tal na qual o objeto é ativo e o sujeito, subvertido – fundamento do discurso analítico.
Lacan introduz dois conceitos, na resenha: ato analítico e passe. Dois conceitos que transformaram a psicanálise, tanto no que tange à problemática do fim de análise, com a introdução do ato analítico, quanto ao que se refere à concepção da transmissão da psicanálise, através do passe. São dois conceitos que devem ser diferenciados e que não acontecem, necessariamente, em um mesmo momento.
Se o ato analítico, como diz Brousse[6], pode ser entendido como o momento de produção do analista, podemos pensar o passe como o momento de verificação dessa produção do analista. Portanto, é possível dizer que, para nós, é “regra” – e é isso que nos diferencia de outras terapias da palavra – que o analista precisa estar analisado. Há uma continuidade entre o tratamento analítico e o tornar-se analista.
O ato analítico (também podemos dizer isso do passe) é um momento de ruptura, de corte, no qual o tornar-se analista está implicado como consequência de uma modificação do sujeito pela psicanálise; modificação essa que não tem a ver com a pura ação do saber, mas com o ser do analista. O que sustenta a ideia desse corte é a definição do ato analítico a partir da opção lógica de Lacan[7], que produz uma apreensão do desejo. Encontro de dois vazios: a destituição subjetiva e o des-ser do analista, que conhecemos como travessia da fantasia.
Mais que os significantes mestres – que, sem dúvida, não são os mais favoráveis para dar conta desta ausência – quero enfatizar o que Brousse nomeia como um desprender-se, “um sem”. Três modalidades de silêncio, três modalidades de soltar -se: soltar-se do olhar, soltar-se do contrato, soltar-se do nome – onde se produz um encontro com um gozo no corpo, como uma epifania, um laço direto, sem intermediários, entre o corpo, o evento de corpo, e a marca de um sem. É a solidão do “sem”, como ela menciona na entrevista conduzida por Lucila Darrigo[8].
Isso equivale ao que acontece quando a mulher se descobre como Outra para si mesma no espaço do gozo marcado pela infinitude – esse gozo Outro, feminino. Neste sentido, podemos dizer que, do ponto de vista analítico propriamente dito, é necessário pensar a solidão a partir da lógica feminina, a lógica do não-todo. Nessa solidão, não há garantia alguma entendida como garantia que vem do Outro, ou do eu; há apenas um “si mesmo”.
Esse “si mesmo” evoca a autorização do analista enunciada por Lacan, no Ato de Fundação[9], como a autorização de si mesmo – e que Jacques-Alain Miller propõe escrever com a sigla S(Ⱥ), significante do Outro que não existe[10].
Essa sigla comporta dupla leitura: escreve o furo que se cava no processo analítico e, ao mesmo tempo, o significante que ex-siste a este furo; um significante novo, inventado a partir do conjunto de significantes do Outro. Esse S que ex-siste – e que por ser impossível de negativizar, adquire valor de real – é o que, nesta fórmula, dá lugar ao autorizar-se de si mesmo[11].
Assim, “a autorização analítica – como diz Miller – vem da anulação de qualquer garantia que viria do Outro e, portanto, habita radicalmente fora do Outro”; isto é, vem do “si mesmo”[12].
Qual é o estofo desse “si mesmo”? Ele é sem Outro. Lacan o nomeou de Um; é o mais autêntico de cada um. Está do lado do real, ou seja, enraizado no material, no que está fora de sentido. É índice do feminino, do continente negro, ou enigma indecifrado, correspondente ao que Miquel Bassols chamou de “lugar de exílio interior do ser falante”[13], lugar do real irrepresentável.
Trata-se, então, de uma lógica que não é a do significante, mas da letra; lógica que tenta cifrar algo desse espaço, dessa alteridade sem Outro, desse a-sexuado. Autorizar-se de si mesmo é autorizar-se no mais Outro de si mesmo – o que permite a Lacan dizer, na Nota Italiana, “que é do não-todo que depende o analista”[14].
No Seminário “Mais ainda”, Lacan enuncia que frente ao não cessa de não se escrever da relação sexual, a única coisa que se escreve naquele que fala é a solidão, “essa solidão, ela, de ruptura do saber, não somente ela se pode escrever, mas ela é mesmo o que se escreve por excelência, pois ela é o que, de uma ruptura do ser, deixa traço”[15].
Há uma solidão irredutível aí, a solidão do gozo do Um, impossível de ser representada. Esse Um absoluto, que demonstra não haver dois – mas que há corpo –, é um gozo opaco ao sentido, diante do qual cada ser falante inventa uma solução singular, um modo de nomear e de se arranjar com o Um sozinho. Esse “si mesmo” é chamado, por Miller, de identidade sinthomal, a identidade com Um mesmo. Esta é a “identificação que cristaliza em uma identidade”[16], segundo Lacan, salientando que ela surge das marcas que o encontro com o corpo instilou, ali onde substância gozante e substância significante se conjugam em Um dizer. Troumatisme.
Lacan adverte que a identidade sinthomal envolve uma espécie de distância, um saber manobrar com seu ser de sinthome como o avesso da mortificação do sintoma – ponto nodal da satisfação do fim de análise, que Lacan elabora como inconsciente real.
A “definição do inconsciente como real surge sobre o fundo de uma solidão do sujeito”[17], o que significa o término do inconsciente transferencial, um momento em que a relação com o psicanalista é radicalmente transformada, um momento que envolve a liquidação do analista (no sentido de que não há demanda para o analista, já que sabemos que não há liquidação total). Ali se inscreve a função do esp de um laps. “Quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso – já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consigo”[18]. O que significa esse lapsus ou esse sonho? Há a produção de um saber sem Outro. A solidão do sinthome é da ordem do furo, o que não impede, como demonstrou Lacan – e vamos ver –, o fazer laço.
Recapitulando, o ato analítico vem no lugar de um dizer. O ato analítico faz ressoar Um dizer, esse que é eco do dizer no corpo[19], que é a ressonância corporal da palavra.
Se tivéssemos que dar conta de como é o ato analítico na prática, ou seja, como, por meio de sua escuta, o analista se encarrega de colocar essa política em ato, diríamos que – ao menos no último ensino – o modelo seria o corte. O corte é um ato, diz Miller, “que não seria débil mental, que não passaria pelo pensamento. É o que permite elevar a psicanálise à dignidade da cirurgia, elevar a debilidade psicanalítica à segurança soberana do gesto cirúrgico: cortar”[20].
Trata-se de obter um S1 sem esperar por um S2. Essa é a nossa política, diz Miller, retomando Lacan: “‘aguardo, mas não espero nada’. O S1, justamente por ter sentido de Um, implica, aguarda, pede um S2, mas sabendo, ao mesmo tempo, que ele não virá”[21].
No momento do ato se está sozinho; solidão que vem do desprendimento do S2, do corte na articulação. No ato, o sujeito está cortado da relação com o Outro. Ali, como diz Miller, não há amizade com o inconsciente, nem pretensão de comunicação. No ato não há laço entre o Um e o Outro; o desejo do analista é colocado em jogo, “como um desejo de se chegar ao real, de reduzir o Outro a seu real e liberá-lo do sentido”[22].
Sozinho com laço… A Escola, uma garantia de formação
Recentemente, em uma conferência sobre o ódio dada na NEL, Sergio Laia fez referência a um texto de Simone Souto, “Amar no outro o insuportável de si mesmo”, que eu, posteriormente, tive a oportunidade de ler (acredito que o conheçam, pois foi apresentado em um recente Congresso da EBP[23]). Nesse texto, Souto trata da natureza dos laços que sustentam a comunidade da Escola. Ela aponta, dentre outros, que quanto mais se é fiel à escolha solitária (ou seja, quanto mais herética essa escolha é), mais difícil é fazer laço com o coletivo. Então, que tipo de laço é possível a partir desse Um, dessa solidão? Que tipo de laço que não rejeite o gozo Um é possível; laço no qual, além de não excluir esse gozo, ainda se inclua a solução sinthomática singular? Como fazer laço com outros sem eliminar as diferenças, admitindo as discórdias?
A psicanálise permite construir uma solidão que não suponha a exclusão do Outro – o invés ao único e ao isolamento. É o que Lacan faz “em ato” na fundação de sua Escola: “Mas se de fato estive só, sozinho ao fundar a Escola […], ter-me-ei nisso acreditado o único? […] Não existe homossemia entre o ‘único’ [le seul] e ‘sozinho’ [seul]. Minha solidão foi justamente aquilo a que renunciei ao fundar a Escola, e que tem ela a ver com aquela em que se sustenta o ato psicanalítico senão poder dispor de sua relação com esse ato?”[24]. Ele propõe construir uma solidão que torne possível um laço com outros. Uma solidão, como diz Vicente Palomera, fértil[25].
Ao contrário dos porcos-espinhos que não podem estar uns com os outros, mas que se aproximam por não conseguirem ficar sozinhos com seus próprios espinhos[26], Lacan propõe a Escola como um lugar onde se elabora com outros – experiência singular que supõe tornar-se analista a sós.. Ou seja, a Escola como um lugar onde a autoridade analítica, o Um mesmo, essa solidão, pode se enlaçar à transmissão de uma experiência, seja experiência de análise (passe), experiência da prática (garantia) ou experiência de formação[27].
Lacan propõe a Escola como um lugar onde se põe em ato o nó entre o Um e o múltiplo, onde é possível articular o individual e o coletivo de uma maneira diferente daquela que Freud ensinou em “Psicologia das massas”[28]. Ao invés de ser fundada com base na identificação a um líder, na Escola trata-se de “por em primeiro plano a solidão subjetiva; porque se trata [a Escola] de uma formação coletiva que não pretende fazer desaparecer a solidão subjetiva, mas que pelo contrário se funda nela, a manifesta, a revela”[29] – ou como Souto recordou: trata-se de fazer laço a partir de uma primeira rejeição pulsional.
Assim, Lacan reenvia cada um à sua própria solidão de sujeito, à relação que cada um mantém com o S1 do Ideal sob o qual está, em oposição a nos juntarmos porque parecemos iguais. Embora a relação de cada um com o significante do Ideal não seja algo a ser compartilhado, Lacan propõe que se compartilhe, fundando um coletivo com base em uma identificação que é de outra ordem – uma identificação, como diz Miller, suplementar, que não faz Um com o Outro, nem implica o reconhecimento ou a complementaridade. É uma identificação que nos reúne em torno de uma causa, que é a mesma para todos e a mais singular para cada um.
A causa é comum, mas não o laço com a causa, uma vez que cada um entra na Escola a partir de seu próprio gozo sintomático – que não tem nada a ver com o do vizinho. A identificação sinthomática, como vimos, promove a solidão mais que o agrupamento; entretanto, é com essa solidão que se faz laço dentro da Escola. Inclusive, o sinthoma do final é posto à serviço do grupo analítico (por exemplo, um modo de trabalhar mais entusiasmado, mais ligado ao trabalho do que à queixa e àquilo de que se gozava).
Essa identificação fundada na língua do Um (língua cifrada e especial) – que não é a língua do Outro Social (nem político, nem histórico) – é o fundamento da criação da Escola de Lacan, refúgio que ele quis isolar do discurso universal do mestre, refúgio para os psicanalistas, onde se trata de articular essas solidões com o Outro.
Assim, Lacan redireciona a dimensão do Outro fundamental a partir da comunidade de analistas da Escola (Escola-sujeito), na medida em que eles estão em posição “analisante”. Ou seja, esses analistas fazem a experiência de si mesmo (da solidão) e contam com o “alguns outros” para acentuar a inexistência do Outro no tornar-se psicanalista.
Com essa inclusão do “alguns outros” cria-se a necessidade da Escola, à qual se atribui exigência maior na formação de psicanalistas. Assim, ali onde não há garantia possível no que diz respeito ao ato analítico, à produção do analista e à sua solidão, uma garantia de formação é oferecida. Uma aposta de formação que é uma aposta para que haja Um e Um e Um. Cada Um – porque os Um não se somam. Cada Um se sustenta no nó de seu sinthoma.
Perguntemo-nos, agora, como este Outro pode dar garantia. Como garantir o que é um analista e como garantir a prática quando, por um lado, não temos regulamentação, nem sequer diploma e/ou autorização, para o exercício da prática e, por outro, o discurso do mestre e o discurso universitário ganham mais força na tentativa de substituir as autoridades da Escola?
Não basta pôr em primeiro plano o Um, pois poderíamos correr o risco de cada um se fechar em sua solução sinthomática, em uma saída cínica ou em uma instalação de desconfiança. Que não haja garantia, não significa, como diz Miller, que a Escola pare por aí. Segue sendo necessário provar e demonstrar tudo[30].
Encontramos a resposta no Ato de Fundação, onde Lacan propõe uma Escola, um Outro, que dispense uma formação[31]. Porém, vejamos: como diz Miller, que a Escola ofereça uma formação não significa que ela garanta esse ou aquele membro. Inclusive, devemos lembrar que, em relação à formação na Escola, Lacan, de fato, a habilitou àqueles que haviam sido formados por ele, mas nunca disse que lhes havia permitido exercer a psicanálise.
A Escola garante que um analista surja de sua formação, garante a formação, mas não o analista que ela forma. Aqui, há a necessidade de enfatizar o que há de específico em uma formação analítica que leva em conta a dimensão primária do inconsciente como tal. Ou seja, o analista como um produto “formado tanto na retórica do inconsciente e de suas formações, de sua gramática, como na produção de seu inconsciente; isto é, enquanto ele se permite ser ensinado por seu inconsciente”[32]. E como diz Cristiane Alberti: “enquanto a Escola garante a relação entre o analista e a formação que dispensa, nenhum formato é obrigatório, como seria desejado por uma regulação administrativa e contábil das práticas”[33].
A Escola de Lacan é uma aposta por criar uma instituição que possa garantir a relação do analista com a formação que a dita Escola dispensa, “formação que não se faz por uma ascensão progressiva, seguindo uma carreira, mas que se faz por ‘imersão’, de acordo com a expressão que J-A-Miller propôs. São as condições desta imersão que devem ser continuamente reajustadas, renovadas, em função das demandas da época”[34].
O “alguns outros” desempenha um papel fundamental, pois é necessário que a experiência seja transmitida, que esse Um seja colocado à prova, que seja verificado repetidas vezes, consentindo que se faça da Escola, Outro. Que esse Outro que é a Escola, seja um assunto no qual se pense, uma ficção operativa, como Miller diz na “Doutrina Secreta”[35].
Para isso, contamos com os dispositivos inventados por Lacan, que enquanto experiências transindividuais, colocam em ato o nó entre o Um e o Múltiplo. São experiências coletivas onde o Um, que é nossa orientação, é aplicado ao dispositivo; o Um passa pelo Outro, que não é um Outro do Outro.
A Escola é um meio para garantir a eficácia, a operatividade do discurso analítico, uma vez que seu objetivo é “a produção de um analista”[36]. Ela assegura as condições da formação por meio dos dois pilares que são o passe e a garantia. Na medida em que o discurso analítico é o único discurso que tem em seu centro o fato de não saber o que é um analista, é necessário criar instrumentos para questionar o que é um analista e garantir sua prática. Se do lado do AE, que é quem dá provas como analisado, temos o dispositivo do passe como instrumento para verificar e confirmar, do lado do AME, que é quem dá provas como praticante, temos a Comissão da Garantia – que tem o controle[37] como seu instrumento fundamental.
No caso do passe, trata-se do paradoxo da garantia, no qual o AE sem saber o que é um analista, ensina como ele se tornou analista de sua própria análise, bordejando esse furo onde sua fantasia não serve mais como tampão. Ele se confronta com esse gozo Um e faz laço com a Escola através do testemunho. O dispositivo do passe, que é uma experiência coletiva, verifica a autorização de si mesmo através dos passadores, do cartel e do público. Cada um atesta se passa ou não.
Quanto à garantia, nosso ponto de interesse, estamos no caminho de interrogar a subversão da psicanálise; isto é, as vias de ação do analista, garantindo a eficácia, a operatividade do discurso analítico. Trata-se da garantia da prática, do controle da prática analítica.
Não contamos com um aparato conceitual para conceder a alguém essa habilitação, daí a importância do controle. Nele coloca-se à prova o compromisso do analista em sua prática e no social – e, por que não também, mais amplamente, no político. O controle acompanha o analista, o praticante, durante toda sua formação, indo mais além de indicações técnicas ou receitas, na medida em que o que é submetido ao controle é o desejo do analista. “O controle não acaba com a solidão; no máximo, a acompanha. Objetiva escutar especialmente aquilo no que a rotina do praticante, mesmo do clínico, o torna surdo”[38], fazer escutar a materialidade do significante, o corte, esse S1 desconectado do S2. Controla-se o ato analítico, que é na solidão.
“Nesta experiência que é o controle (superaudição), verifica-se a particularidade da experiência analítica, onde se pode transmitir algo do que diz um sujeito a um terceiro. Não é possível dizer que se pode transmitir o impacto do que um sujeito diz a outro no tratamento, porque, justamente, não se trata de uma gravação. Nessa transmissão está em jogo a ‘dritte Person’. De um lado está a transmissão do que o paciente (o analisante) diz e o efeito que isso tem sobre o analista; e de outro lado, a transmissão a outro analista (controlador), que está em posição de terceiro. É uma experiência transindividual, mas não há um Outro do Outro”[39]. Não existe controle ideal, nem especializado, como não há analista ideal ao final da análise. O fundamental do controle é como transmitir o fato de que a palavra dentro da psicanálise tem uma função criacionista.
A Comissão de Garantia, enquanto responsável por reconhecer aqueles que dão provas de sua prática, nomeia alguém AME pela mesma razão que Lacan fundou sua Escola; isto é, pelo seu compromisso com a psicanálise na Escola e no mundo. É alguém que se fez reconhecer pela comunidade em sua relação com a causa freudiana.
Com o título AME, o membro reconhecido como tal, ao se comprometer com a designação dos passadores, passa a representar a Escola de psicanálise enquanto uma associação legal, no discurso do mestre. A garantia é inseparável tanto da política da psicanálise (há uma relação estreita entre garantia e passe) como da política como tal (há uma relação inevitável com a subjetividade da época pois, como diz Alberti, nossa época é atingida pela devastação contemporânea).
É através do AME que conseguimos interrogar as possíveis ações do analista, seja na prática, nas instituições e mesmo, como propõe Miller com o lançamento do Campo Freudiano, Ano Zero, comprometendo-nos no campo da política, podemos “estender o discurso analítico ao nível da opinião” (Zadig)[40] – onde, mais que representar a Escola, se incorpora a pata social, como ele diz. Não somos apenas espectadores, somos parte ativa do mundo ao nosso redor, o que supõe as formas de implicação do sujeito na “subjetividade de sua época”, um compromisso que coloca em jogo a nossa relação com a causa. Chamamos a atenção para o fato de que a garantia, como diz Alberti, na medida em que se orienta pela psicanálise em intensão, “controla a extensão”[41].
Por fim, marco que precisamos de dois momentos lógicos: um, o momento do ato analítico – como propus aqui – que implica a solidão, que é um “sem”, e dois, a relação com a causa, onde este “sem” está incluído no “com”:
- Solidão do ato analítico implica autoriza-se sem Outro, ali onde se produz uma invenção, que toma a forma do sinthome (no último ensino). Uma forma de autorização que supõe “prescindir do pai na condição de servir-se dele”, onde ocorre a passagem do inconsciente transferencial ao inconsciente real.
- Relação com a causa, que Miller chama de Passe bis. Se, em um primeiro momento, tratava-se da passagem do inconsciente transferencial ao inconsciente real, Miller propõe – o que aqui chamo – um segundo momento lógico, que supõe a passagem do inconsciente real ao inconsciente transferencial. Passar do Um ao Outro.
É um momento em que a relação com o psicanalista é radicalmente transformada, em que se produz uma liquidação, no sentido – como foi dito – de que não há demanda para o analista. É uma liquidação para o analista, para estabelecer uma outra via, a da relação do inconsciente real com a causa analítica. Ou seja, uma transferência com a análise, tal como proposto por Lacan em ’64.
“Convida-se cada um a reunir-se com Freud e Lacan em sua solidão”[42], ou seja, para encontrar-se com a causa analítica. Tanto Freud como Lacan são exemplos disso. Sozinho, mas com outros.
Termino com isso, propondo-os a pensar a garantia a partir da solidão com. Um laço êxtimo, onde o que se privilegia – mais que a relação com o Outro – é com o que se faz laço: cada um a partir da sua solução singular, arranjadas para fazer existir o discurso analítico.
A relação entre o ato analítico e a garantia supõe um laço entre a solidão que põe em jogo o “sem” e o laço que introduz o “com”. Há solidão e há laço. Conciliável, mas inconciliável. Não apenas consentimos ao efeito sintomático que cada um é, que se obtém como resultado de própria experiência analítica, mas também consentimos às ressonâncias que isso tem nos outros, na Escola[43]. Consentimos ao Outro ficcional operativo, de onde apostamos na orientação do Um, que dá nome à Escola Una. Isto é, a uma solidão fecunda.
A Escola Una é o nome dessa identificação que funciona sem Outro e sem o outro a quem se fazer semelhante. “É a voz dessa função que cada membro deve, idealmente, exercer”[44], caso se escolha fazer a experiência da verdade, a experiência da solidão.