Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
Pascal Quignard: entre o que escapa e o que não se realiza – a solidão na ponta da língua
Por Teresinha N. Meirelles do Prado
EBP/AMP
“Muitas vezes, mais vale não compreender para pensar, e é possível percorrer léguas compreendendo sem que disso resulte o menor pensamento”[1].
Pascal Quignard possui uma obra vasta. Seu procedimento é por ele identificado à linhagem da retórica especulativa, por ele definida como o resgate de uma: “tradição antiga, marginal, recalcitrante, perseguida, para a qual a letra da linguagem deve ser tomada à la littera. Essa tradição esquecida é a violência da literatura”.[2]
A ‘violência da literatura’ é também sua grande potência, que permite fazer da linguagem um uso contrário ao logos, à tradição que visa a atrelar o saber à razão. Esta concepção de literatura se aproxima em muito da psicanálise. Foi a descoberta, por Freud, de um saber inconsciente, que o levou a deslocar o predomínio da razão para ‘outra cena’, algo que se passava à revelia da vontade do sujeito e que atendia a motivações que lhe eram alheias, muitas vezes produzindo efeitos paradoxais, nem sempre prazerosos, o que permitiu a Freud desenvolver toda a teoria das pulsões e também considerar o desejo inextricavelmente relacionado a uma falta que não se extingue e impulsiona os interesses humanos. Essa descoberta é inseparável do que constituiu para a psicanálise um escândalo em relação ao discurso corrente: a inadequação do humano em relação ao real do sexo, o que Lacan traduziu na expressão “a relação sexual não existe”.
Embora pareça enigmática, o que esta frase designa é o abismo que existe entre nossa condição de seres de linguagem e a constituição da sexualidade no humano. Não há nada que estabeleça previamente para cada um o que seja um homem, o que seja uma mulher, ou como se dará o encontro com o corpo do outro. É pela linguagem que tentamos estabelecer parâmetros, mas os sinais que nos vêm de nosso próprio corpo não encontram tradução exata em nosso universo simbólico.
É também essa inadequação que o procedimento de Quignard desnuda. Sua definição de literatura passa pelo esgarçamento desse furo, ao confrontar, através da retórica, o que a palavra alcança por fracassar, fisgando algo do corpo, que sempre escapa, contudo:
“(…) aquele que escreve é um homem com o olhar suspenso, de corpo paralisado, as mãos estendidas em súplica na direção das palavras que lhe escapam. Todos os nomes se mantêm na ponta da língua. A arte é saber convocá-los quando preciso e por uma causa que lhes revivifique os corpos minúsculos e negros. A orelha, o olho e os dedos esperam em círculo, como uma boca, essa palavra que o olhar busca ao mesmo tempo intensamente e em lugar nenhum, mais longe que o corpo, no fundo do ar. A mão que escreve é antes a mão que vasculha a linguagem que falta, que tateia em direção à linguagem sobrevivente, que se crispa, se irrita, que da ponta dos dedos a mendiga”.[3]
Quignard opõe a literatura às falas cotidianas, “sem consequências vitais”, que “são como roupas que dissimulam, enquanto a linguagem literária é a língua desnudada até o assombro”[4] . A tarefa do escritor é para ele a do retor (o retórico), que “nunca demonstra: ele mostra; e o que mostra é a janela aberta. Ele sabe que a linguagem abre a janela”. Abre para o quê? Para um saber possível através do que escapa, que permita fisgar algo da Coisa desde sempre perdida, do real do corpo em seu gozo, alusivamente, muitas vezes através de imagens construídas pelo deslizar metafórico-metonímico das palavras, como neste belo trecho em que se conjugam bout (ponta); debout (de pé); bouter (expulsar) e bouton (espinha), algo que a tradução, infelizmente, não permite capturar: “A agonia é que a espinha brote na ponta do rosto. Os brotos nas árvores são botões de flores. Os botões dos casacos são gemas de madrepérola”.[5]
Sua busca se dirige a um ‘antes’ que, no entanto, não se define por uma progressão cronológica, sucessiva (Chronos), mas pelo que ele denomina “l’instant qui tombe à pic”, o momento oportuno (Kairós)[6]. E para mostrar isto, Quignard se serve das imagens. Em O sexo e o assombro, a representação pictural dos afrescos romanos é descrita como representação que condensa um “instante ético” do mito que ele denomina augmentum: o momento exatamente anterior àquele em que se produzirá a catástrofe trágica, momento anterior àquele em que se dará a passagem ao ato. Essa representação aparece no vídeo em que que o autor lê seu texto enquanto a dançarina de butô Carlotta Ikeda representa o momento de desespero de Medeia, “a olhar seus filhos, prestes a assassiná-los, mas ainda entrincheirada no silêncio que precede o acesso de loucura”[7].
A literatura de Quignard parece buscar o ponto de incidência do ‘acontecimento de corpo’, momento em que o infans, ainda mergulhado em lalíngua, mistura de sons variados que não fazem sentido especial, em determinado momento, inapreensível como tal, por ser intraduzível, mas que pode ser atingido por coalescência, por meio desse Kairós, momento oportuno, que a literatura pode forjar, com esse momento em que a palavra, ainda sem sentido, fisgara o corpo, ali cristalizando algo que ao mesmo tempo se revelou traumático, um núcleo de gozo opaco e irredutível, produzido pelo encontro desse corpo com o parasita linguageiro. Nesse ponto se desenha o que da sexualidade no humano se dá necessariamente como inadequado: uma sensação no corpo se produz, mas a partir de um incorpóreo que, no entanto, comparece aí em sua materialidade (sonora, associada a algo da imagem, da cena vivida e depois construída de outros modos, em diferentes momentos), o encontro do corpo com o osso da palavra.
Algo que faz evocar parcialmente o modo como Walter Benjamin descreve a entrada da criança no uso das palavras: diante de “(…) sons a serem explorados (…) como quem entra em cavernas, entre as quais cria caminhos estranhos”[8]. É, de certo modo, o que encontramos em Quignard quando fala do “nome na ponta da língua”, a artificialidade da linguagem, do parasita linguageiro que, no entanto, nos constitui:
“É o desamparo próprio à linguagem humana. É o desamparo diante do que é adquirido. O nome na ponta da língua nos lembra que a linguagem não é em nós um ato reflexo. Que não somos animais que falam assim como veem. (…) Que uma palavra possa ser perdida, isto quer dizer: a língua não somos nós. Que a linguagem seja em nós adquirida, significa que podemos conhecer seu abandono, que a totalidade da linguagem pode refluir para a ponta da língua. Isto quer dizer que podemos reencontrar o estábulo, ou a selva, ou o antes da infância ou a morte”.[9]
Ao descrever esse desamparo inerente ao humano, Quignard nos revela também os fundamentos de sua escrita literária, que parte da solidão fundamental do ser humano na inadaptação que lhe é inerente, numa busca que se sabe fracassada, mas reconhece nesse fracasso a possibilidade, bem-sucedida, de algo desse impossível que se deixa fisgar por uma contingência.