#06 - OUTURBRO 2023
O instante fugaz de um Witz
O instante fugaz de um Witz
Andréa Eulálio de Paula Ferreira
Membro da EBP/AMP
Em O seminário, livro 24,[1] L’insu-que-sait de l’une-bévue s’aile à mourre, Jacques Lacan propõe uma nova leitura do Witz articulando-o à interpretação analítica: “Se vocês são psicanalistas, verão que o forçamento é por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que o sentido. (…) O sentido tampona. (…) É de uma outra ressonância que se trata, a ser fundada sobre o chiste. (…) Ele não se sustenta senão de um equívoco, ou como diz Freud, de uma economia”.
Na clínica com crianças, somos surpreendidos com a dimensão do gozo e do sem sentido com que as palavras recaem sobre elas. É o encontro contingente com o analista que torna o inconsciente operatório – em seu efeito de separação das palavras impostas a elas como forma de tratamento do real que lhes pressiona[2].
Bia, 8 anos, encontra-se, nas primeiras sessões, numa espécie de profusão pulsional. Agita-se, fala ininterruptamente – sem significar algo com seu dizer –, apresenta acessos constantes de raiva, além de um comportamento desafiador de quem não tolera limites e faz somente o que lhe dá prazer. “Hiperatividade” é como a mãe nomeia o que acontece com o corpo agitado de sua filha.
Durante uma brincadeira, Bia põe-se a falar, comicamente, com o sotaque nordestino do pai, ao qual sempre se refere com ironia e insolência. Passo a conversar com ela com o mesmo sotaque. Bia ri muito. Em seguida, Bia passa a conversar em inglês, dada a desenvoltura que ela tem com essa língua. Ao encerrar a sessão, digo-lhe “see you later”, e Bia indaga com visível excitação: “você está no cio?”. Devolvo-lhe a pergunta ao mesmo tempo que a encaminho à porta. Quando ela faz menção de voltar, empurro-a com firmeza para fora da sala.
Na sessão seguinte, Bia chega surpreendentemente tranquila, e uma série de perguntas passam a se articular. Ao se referir a uma figura e dizer “olha, é um gay”, ela esclarece que “um gay é um homem que gosta de outro homem”, e daí por diante.
A interpretação da analista, contida no gesto de contenção do corpo de Bia, possibilitou que a fala de Bia deixasse de ser pura vociferação dirigida ao pai que, até então, a privava de dar qualquer significação sobre o sexual. Diante do impossível de dizer, a frase “você está no cio”, enquanto letra que promove a articulação de um S1 à presença viva do gozo permite que esse sujeito produza sentidos discursivos sobre o enigma da sexualidade que, antes, agitava-lhe o corpo[3].
Estaríamos aqui diante de um Witz fundado no sem sentido, por meio da intrusão de lalangue? Para Jacques-Alain Miller há uma modalidade na qual o chiste e o cômico estão misturados. Se trata de uma expressão codificada em uma língua e, utilizando as assonâncias, opera-se uma transferência de uma língua a outra sem passar pelas dimensões semânticas, mas pela assonância[4].
Em seguida, apresento um fragmento em que o tema do (des)encontro amoroso pôde ser tratado em sua dimensão cômica a partir de uma situação corriqueira na vida dos parceiros; especialmente em momentos nos quais algo “não anda” ou algo sempre escapa.
Ela deita-se no divã e, mais uma vez, lamenta-se do descompasso temporal entre ela e o parceiro. Ela sempre atrasada, ele sempre adiantado. Discorre sobre uma série de acontecimentos nos quais a dimensão antagônica existente entre a espera e o encontro remete à maneira como a erótica do tempo afeta seu corpo.
Chorosa diante de tantos desencontros, recorda a cena em que os dois estão saindo de uma montanha-russa e ela, ainda ofegante, atônita e recuperando-se do “stress emocional”, vê o parceiro correr descomedidamente em direção ao próximo brinquedo e agarrar, por engano, a mão de outra mulher. Nesse momento, ela irrompe numa sonora gargalhada, e interrompo a sessão.
O que esperar dos efeitos dessa gargalhada na sessão analítica?
Na fugacidade dessa cena, ao ser surpreendida pelo encontro contingente com um elemento novo, algo cai para essa mulher enquanto objeto de desejo do homem. Poderíamos dizer que a gargalhada revela o que estava há muito encoberto? Ou seja, o homem que agarra a mão de “qualquer uma” desnuda para essa mulher, para além do embaraço da cena, o lugar que ela ocupa na parceria amorosa – o de “qualquer uma”?
A gargalhada, nesse caso, vem no lugar de uma interpretação?
“Não se pode evitar de pensar o que Freud disse a respeito da interpretação: que ela deve ser como salto de leão. Ele só salta uma vez”.[5] Segundo Esthela Solano[6], cabe ao analista, ao escutar sonoridade dos ditos do analisante e a percussão de um equívoco, que ele possa intervir no espaço de um instante, e que não seja nem muito cedo nem muito tarde.
A irrupção da gargalhada – acolhida de modo vivo – permite que algo se desloque e opere de um outro modo, relançando essa mulher a um outro tempo, uma Outra cena, e, quem sabe, dar um novo rumo na vida amorosa.
[1] LACAN. J. Rumo ao significante novo – A varidade do sintoma. In: Opção Lacaniana 22 (agosto de 1998). Aula 19 de abril de 1977.
[2] REGO BARROS, M.R.C. Lo que el inconsciente enseña a un niño. In: Notas de niños. Revista del Departamento de Investigación de Psicoanálisis con Niños CIEC-NRC, año 3, n. 3, Córdoba, septiembre, 2018, p.25-26.
[3]Comentários feitos por Antônio Teixeira (mais-um) a partir das discussões do cartel para as Atividades Preparatórias da Jornada “Acontecimento de corpo: da contingência à escrita. ttps://www.jornadaebpmg.com.br/2021/a-interpretacao-nos-tempos-do-falasser/
[4] MILLER, J-A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 379.
[5] MILLER, J-A. La fuga del sentido. Buenos Aires, Paidós, 2012, p. 374.
[6] SUAREZ E.S. Le moment de l’ ínterprétation. https://journees.causefreudienne.org/le-moment-de-linterpretation/?print=pdf