O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
O ato retira o envoltório*
Eduardo Suarez (EOL/AMP)
No campo da política, a crise das democracias representativas que, por sua vez, acarreta a crise de autoridade, de credibilidade no sistema democrático e de governabilidade, produz dois efeitos chave para que a psicanálise acompanhe as vicissitudes da civilização e, que concernem, sobretudo, aos regimes identificatórios que surgem como resposta a ela, a saber: os novos populismos e os crescentes movimentos identitários.
Ambos os processos competem à questão das massas contemporâneas e é de particular interesse a ascensão da segregação que tais efeitos implicam.
A política nos dias de hoje necessita, como nos disse Eric Laurent,[1] de “um esforço de poesia analítica”.
A evaporação do pai, tal como designa Lacan em sua “Nota sobre o pai”[2], essa determinação maior, arrasta com ela a determinação das identificações. Este processo, longe de comprometer apenas o semblante, deixa descoberto o pedaço de real onde tais funções se sustentavam. Com relação ao pai, se produz uma mudança de registro através da qual, ali onde a consequência natural da função paterna era a de uma segregação simbólica, agora resta uma cicatriz, na qual Lacan antecipa a ascensão da segregação que deve se localizar no registro do real. No plano das identificações também permanece algo que não se evapora, que é a necessidade do parlêtre ser parte de um Outro que o reconheça como ser falante. Na medida em que porta um corpo habitado por um gozo, agregar é uma tentativa de tratamento para que esse gozo adquira uma modalidade.
Então, o social hoje mostra sua verdadeira face ao coletivizar seus integrantes, unificando-os por uma determinada maneira de gozar. Por menor que seja esse universo e por mais que se fale hoje das microssociedades nas quais o social se fragmenta, cada identificação, cada identidade familiar ou cultural perdida corresponderá a uma nova aspiração, que agora vai se sustentar sobre a base de uma segregação, em um movimento que tenta se materializar. Os discursos que pretendem instaurar essas novas identificações passam a ser, necessariamente, discursos de restauração e promessa de retorno ao laço social perdido. As identificações hoje não são simplesmente afirmadas, mas reivindicadas e enunciadas como reconquista. No plano político, os novos populismos assentam seus triunfos eleitorais na utopia de uma refundação de uma identidade forte contra supostos inimigos identificados e designados como culpados pelo descumprimento da tradição.
J.A. Miller, em seu seminário Um esforço de poesia, nos fala do retorno sensacional do discurso do mestre[3]. Como ele bem localiza a expressão, não se trata simplesmente de um retorno, mas sim de um retorno qualificado, na medida em que se percorre o caminho da nostalgia e da reivindicação, perseguindo o gozo diferente.
Miller, em seu curso Extimidade, partiu da operação do mestre sobre o êxtimo: “[…] há também um envoltório político desse hiato, um cobrimento por parte do mestre, na medida em que ele libera da extimidade e faz sentir, caso necessário, esta opressão como exterior […]”[4].
Quando se recusa a extimidade do gozo, ela retorna na figura do inimigo odiado. O discurso do mestre explode essa propriedade de estrutura, fazendo de sua complexa topologia um simples ordenamento maniqueísta, interior-exterior, amigo-inimigo etc.
Portanto, urge conversar sobre o ato analítico.
Seguindo a orientação de J.-A. Miller[5], diríamos que, se este ato tem lugar, ainda que na mais humilde e cotidiana porta de entrada em análise, vemos que se produz um efeito sujeito que inaugura a experiência da identidade como vazio que, mais cedo do que tarde, resultará em um antídoto contra o consentimento cego ao canto da sereia da voz do mestre. Mas, ao mesmo tempo, ao referir o objeto a ao lugar do analista, o sujeito separa sua crença na causa, do lugar da identificação, para dedicar-se ao caminho da busca de sua própria verdade. Por aí cada um poderá circunscrever o hiato entre o universal e o gozo que o habita e terá a oportunidade de forjar seu sinthoma para re-enodar, à sua maneira, o gozo que lhe concerne e o laço social que lhe é devido.