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Paola Salinas (EBP/AMP)

O tabu da virgindade é abordado e justificado devido à hostilidade e ao desejo de vingança que o defloramento provocaria. Ao desenvolver correlações sobre o tema, Freud destaca a frigidez como aspecto importante na vida sexual da mulher, articulando ao Édipo e ao complexo de castração. Associa tal hostilidade, na base do tabu, à inveja do pênis e ao protesto de masculinidade.

A valorização da virgindade seria a extensão do direito de propriedade à mulher, incluindo seu passado, o que é natural e indiscutível para o homem da época; daí a incompreensibilidade do tabu presente nos povos primitivos, os quais, para evitar a hostilidade do defloramento, o fariam em rituais antes do casamento.

Tal valorização se associa à servidão sexual, dependência de uma pessoa com quem há envolvimento sexual, base do matrimônio, explicada em função da repressão sexual feminina, chegando ao sacrifício dos interesses pessoais.

Contudo, tal valorização também ocorre nos povos primitivos, ao ponto do defloramento ter se tornado tabu, proibição de cunho religioso frente à presença de um perigo, ainda que psicológico, segundo a definição freudiana.

Freud toma o horror à efusão de sangue e a angústia frente a todo ato primeiro, como possíveis motivos para o tabu. Contudo, destaca a importância do defloramento em relação à resistência sexual vencida e o fato de ocorrer apenas uma vez. Estamos diante de um acontecimento intenso e único, que tem o peso de um ato.

Este ato traz uma nova significação pelo furo no saber que engendra, presença de algo incompreensível e inquietante, por vezes tratado em rituais de passagem.

Crawley fala da abrangência do tabu em quase toda a vida sexual: “quase poderia se dizer que a mulher é um tabu em sua totalidade. Não somente em situações derivadas da sua vida sexual, menstruação, gravidez, parto e puerpério”2, exemplificando pela necessidade de afastamento das mulheres, em alguns povos, na época de caça, guerra ou colheita.

Verificamos nesse afastamento um temor fundamental à mulher. Esta ocupa o lugar de enigma, e algo disso persiste. A mulher encarna tal diferença em seu corpo.

Neste ponto, Freud fala do narcisismo das pequenas diferenças: “cada indivíduo se diferencia dos demais por um tabu de isolamento pessoal que constitui as pequenas diferenças entre as pessoas, que quanto ao restante são semelhantes, e constituem a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles”3. Poderíamos hipotetizar a repulsa narcisista à mulher.

Embora Freud diga que o tabu com a mulher em geral não esclarece o tabu da virgindade, abre uma questão sobre o lugar do feminino.

Os motivos levantados não explicam o tabu, a intenção de negar ou evitar ao marido algo que seria inseparável do primeiro ato sexual, mesmo que dali surja uma ligação intensa da mulher com o marido.

A gênese do tabu tem uma ambivalência original, que podemos articular à alteridade que a mulher representa. A relação entre o primeiro coito e a frigidez, estaria de pleno acordo com o perigo psíquico que o defloramento traz à tona. O gozo, pelo avesso, a frigidez, marca um funcionamento pulsional outro, articulado à proibição frente à sexualidade feminina.

Freud destaca a ofensa narcísica que o coito pode assumir pela destruição do órgão (hímen) e pela perda do valor sexual da mulher dele decorrente. Com maior importância fala do poder da distribuição inicial da libido, a fixação intensa da libido em desejos sexuais infantis. Nas mulheres, a libido estaria ligada ao pai ou ao irmão, sendo o marido sempre um substituto.

Destaca a inveja do pênis anterior à fase da escolha do objeto amoroso, mais próxima do narcisismo primitivo do que do objeto de amor. Haveria, portanto, algo do narcisismo feminino em jogo nesta hostilidade, hipótese que podemos aprofundar.

__________________________ 1 FREUD, S. “O tabu da virgindade (Contribuições à psicologia do amor III) (1918 [1917]). In: Edição Standard. Vol. XI, Imago: Rio de Janeiro. 1970. 2 _______. Op. Cit. P. 183. N.A.: Freud refere-se à Crawley (1902), Ploss and Bartels (1891), Frazer (1911) e Havelock Ellis [1913]. 3 _______. Op. Cit. P. 184.

Ler um sintoma*

Jacques-Alain Miller
Jacques-Alain Miller

Tenho que lhes revelar o título do próximo congresso da NLS, justificá-lo e apresentar algumas reflexões sobre a questão que poderão lhes servir de referência para a redação dos trabalhos clínicos que ele convoca *. Escolhi este título para vocês, a partir de duas indicações que recebi da presidente de vocês, Anne Lysy. A primeira é que o Conselho da NLS desejaria que o próximo congresso fosse sobre o sintoma. A segunda é que o lugar do congresso seria Tel-Aviv. A questão, portanto, era determinar que acento, que inflexão, que impulso dar ao tema do sintoma. Pesei isso em função do meu curso que faço em Paris todas as semanas, onde me explico com Lacan e a prática da psicanálise hoje, esta prática que não é mais completamente, ou talvez de nenhum modo, a de Freud. E, em segundo lugar, pesei o acento a dar ao tema do sintoma em função do lugar, Israel. E, portanto, tudo bem pesado, escolhi o seguinte título: ler um sintoma, to read a symptom.

Saber ler

Aqueles que lêem Lacan, sem dúvida reconheceram aqui, um eco de suas palavras em seu escrito «Radiofonia», que vocês podem encontrar na compilação dos Autres Écrits, página 428. Ele assinala ali, que o judeu é aquele que sabe ler1 . É esse saber ler de que se trata de interrogar em Israel, o saber ler na prática da psicanálise. Direi imediatamente que o saber ler, como eu entendo, completa o bem dizer, que se tornou um slogan entre nós. Vou sustentar com satisfação, que o bem dizer na psicanálise não é nada sem o saber ler, que o bem dizer próprio à psicanálise se funda sobre o saber ler. Se nos atemos ao bem dizer, não alcançamos mais que a metade daquilo de que se trata. Bem dizer e saber ler estão do lado do analista, é propriedade do analista, mas, no curso da experiência, trata-se de que bem dizer e saber ler se transferem ao analisante. Que aprenda de algum modo, fora de toda pedagogia, a bem dizer e também a saber ler. A arte do bem dizer é a definição dessa disciplina tradicional que se chama retórica. Certamente, a análise participa da retórica, mas não se reduz a ela. Parece-me que é o saber ler que faz a diferença. A psicanálise não é apenas questão de escuta, listening, ela é também questão de leitura, reading. No campo da linguagem, sem dúvida, a psicanálise toma seu ponto de partida da função da palavra, mas ela a refere à escritura. Há uma distância entre falar e escrever, speaking and writing. É nesta distância que opera a psicanálise, é esta diferença que a psicanálise explora.

Acrescentarei uma nota mais pessoal à escolha que faço do título, «ler um sintoma», posto que é o saber ler, o que Lacan me imputa. Vocês encontrarão isto na epígrafe de seu escrito ´Televisão´, na compilação dos Autres Ecrits, página 509, onde eu lhe colocava, um certo número de perguntas em nome da televisão e ele pôs na epígrafe do texto que reproduz com certas mudanças, o que ele havia dito, então: “Aquele que me interroga sabe também me ler”2 . Portanto, Lacan me prendeu com o saber ler, ao menos com o saber ler Lacan. É um certificado que ele me outorgou em razão das anotações com as quais escandi seu discurso na margem, muitas das quais fazem referência a suas fórmulas chamadas matemas. Então, a questão do saber ler tem todas as razões para me importar.

O segredo da ontologia

Depois desta introdução, vou evocar agora o ponto em que estou de meu curso deste ano e que conduz, precisamente, a esta questão de leitura e de leitura do sintoma. Estou, nestes dias, articulando a oposição conceitual entre o ser e a existência. E é uma etapa no caminho onde considero distinguir e opor o ser e o real, being and the real.

Trata-se, para mim, de relevar os limites da ontologia, da doutrina do ser. Foram os Gregos que inventaram a ontologia. Mas, eles mesmos se deram conta dos limites, posto que alguns desenvolveram um discurso que se refere explicitamente a um mais além do ser, beyond being. Devemos crer que eles sentiram a necessidade deste mais além do ser e colocaram o Um, the one. Em particular, aquele que desenvolveu o culto do Um como mais além do ser é o chamado Plotino. E ele o extraiu séculos mais tarde de uma leitura de Platão, precisamente do Parmênides de Platão. Então, ele o extraiu de um certo saber ler Platão. E antes de Platão está Pitágoras, matemático, mas místico-matemático. Era Pitágoras que divinizava o número e especialmente o Um e que não fazia uma ontologia, mas o que se chama, em termos técnicos a partir do grego, uma henologia, quer dizer, uma doutrina do Um. Minha tese é que o nível do ser chama, necessita de um mais além do ser.

Os Gregos que desenvolviam uma ontologia sentiram a necessidade de um ponto de apoio, de um fundamento inquebrantável que justamente o ser não lhes dava. O ser não dá um fundamento inquebrantável à experiência, ao pensamento, precisamente porque há uma dialética do ser. Situar o ser é, ao mesmo tempo, situar o nada. E situar o ser é isto, é, ao mesmo tempo situar que não é isso, portanto o é também a título de ser seu contrário. O ser, em suma, carece singularmente de ser e não por acidente, mas de maneira essencial. A ontologia desemboca sempre em uma dialética do ser. Lacan sabia tão bem disso que, precisamente, ele define o ser do sujeito do inconsciente como uma falta a ser. Explora aí os recursos dialéticos da ontologia. A tradução da expressão francesa “falta a ser” por want to be agrega algo totalmente precioso, a noção de desejo.Want não é apenas o ato, em Want está o desejo, está a vontade e, precisamente, o desejo de fazer ser o que não é. O desejo faz a mediação entre being and nothingness. Encontramos este desejo na psicanálise no nível do desejo do analista que anima a operação analítica enquanto esse desejo aponta a conduzir, ao ser, o inconsciente, aponta a fazer aparecer o que está recalcado, como dizia Freud. Evidentemente, isso que é recalcado é, por excelência, um want to be, o que está recalcado não é um ser atual, não é uma palavra efetivamente dita, o que está recalcado é um ser virtual que está no estado de possível, que aparecerá ou não. A operação que conduz ao ser, o inconsciente não é a operação do Espírito Santo, é uma operação de linguagem, a que aplica a psicanálise. A linguagem é esta função que faz ser o que não existe. É, inclusive, o que os lógicos chegaram a constatar, se desesperaram pelo fato de que a linguagem seja capaz de fazer ser o que não existe e, então, trataram de normativizar seu uso esperando que sua linguagem artificial só nomearia o que existe. Mas, de fato, é preciso reconhecer aí, não um defeito da linguagem, mas sua potência. A linguagem é criadora e, em particular, ela cria o ser. Em suma, o ser de que falam desde sempre os filósofos, este ser não é jamais outra coisa senão um ser de linguagem, é o segredo da ontologia. Então, produz-se uma vertigem.

Um discurso que seria do real

Uma vertigem se produz para os filósofos, que é a vertigem da dialética. Porque o ser é o oposto da aparência, mas também o ser não é outra coisa senão aparência, uma certa modalidade da aparência. Então, é esta fragilidade intrínseca ao ser, o que justifica a invenção de um termo que reune o ser e a aparência, o termo semblante. O semblante é uma palavra que utilizamos na psicanálise e com a qual tratamos de cernir o que é, ao mesmo tempo, ser e aparência, de maneira indissociável. Uma vez, tratei de traduzir esta palavra em inglês com a expressão make believe. Com efeito, se se crê nisso, não há diferença entre a aparência e o ser. É uma questão de crença.

Então, minha tese, que é uma tese sobre a filosofia a partir da experiência analítica, é que os Gregos, justamente porque lidaram eminentemente com esta vertigem, buscaram um mais além do ser, um mais além do semblante. O que nós chamamos o real é esse mais além do semblante, um mais além que é problemático. Existe um mais além do semblante? O real seria, se queremos, um ser, mas não seria ser de linguagem, estaria intocado pelos equívocos da linguagem, seria indiferente ao make believe.

Este real, onde os Gregos o encontravam? Encontravam nas matemáticas e em outras partes, desde então, onde as matemáticas continuaram como continuou a filosofia, os matemáticos se dizem sempre, de bom grado, platônicos, no sentido de que não pensam, em absoluto, que criam seu objeto a não ser para soletrarem um real que já está ali. E isso, isso permite sonhar, em todo caso fazia sonhar a Lacan.

Lacan fez, uma vez, um seminário que se intitulava ´De um discurso que não fosse semblante´3 . É uma fórmula que permaneceu misteriosa, mesmo uma vez que o seminário foi publicado, porque o título deste seminário se apresenta sob uma forma condicional e negativa, ao mesmo tempo. Mas, sob esta forma, evoca um discurso que seria do real, é isso o que quer dizer. Lacan teve o pudor de não dizer-lhe sob esta forma que revelo, ele disse sob uma forma apenas condicional e negativa: de um discurso que seria do real, de um discurso que tomaria seu ponto de partida a partir do real, como as matemáticas. Era o sonho de Lacan, por a psicanálise ao nível das matemáticas. A respeito disto, é preciso dizer que só nas matemáticas o real não varia – ainda que nas margens, varia de todas as maneiras. Na física matemática, que incorpora e que se sustenta, no entanto, nas matemáticas, a noção de real é completamente escorregadia porque é, de algum modo, herdeira da velha ideia de natureza e que, com a mecânica quântica, com as investigações do ser mais além do átomo, podemos dizer que o real na física tornou-se incerto. A física conhece polêmicas entre físicos ainda mais vivazes que na psicanálise. O que para um é real, para um outro não é mais que semblante. Fazem propaganda de sua noção de real porque a partir de um certo momento fizeram entrar na conta, a observação. A partir desse momento, o complexo composto do observador e dos instrumentos de observação interfere e, então, o real torna-se relativo ao sujeito, quer dizer, cessa de ser absoluto. Podemos dizer que deste modo, o sujeito faz tela ao real. Não é esse o caso nas matemáticas. Como se acede nas matemáticas, ao real, por qual instrumento? Acede-se pela linguagem, sem dúvida, mas uma linguagem que não faz tela ao real, uma linguagem que é o real. É uma linguagem reduzida a sua materialidade, é uma linguagem que está reduzida a sua matéria significante, é uma linguagem que se reduz à letra. Na letra, contrariamente à homofonia, não se encontra o ser, being, in the letter is not being that you find, é the real. 

Fulgor do inconsciente e desejo do analista

A partir destas premissas, proponho interrogar a psicanálise. Na psicanálise, onde está o real? É uma pergunta urgente, na medida em que um psicanalista não pode não experimentar a vertigem do ser, desde o momento em que em sua prática, ele está invadido pelas criações, pelas criaturas da palavra.

Onde está o real em tudo isto? O inconsciente é real? Não! De toda forma, é a resposta mais fácil de dar. O inconsciente é uma hipótese, o que resta como uma perspectiva fundamental, mesmo se podemos prolongá-la, fazê-la variar. Para Freud, lembrem que o inconsciente é o resultado de uma dedução. É o que Lacan traduz de modo mais aproximado, salientando que o sujeito do inconsciente é um sujeito suposto, quer dizer, hipotético. Não é, então, um real. Inclusive nos colocamos a questão de saber se é um ser. Vocês sabem que Lacan prefere dizer que é um desejo de ser, mais que um ser. O inconsciente não tem mais ser que o sujeito mesmo. Isso que Lacan escreve S barrado é algo que não tem ser, que só tem o ser de falta e que deve advir. E nós sabemos bem que basta simplesmente extrair as consequências disso. Sabemos bem que o inconsciente na psicanálise está submetido a um dever ser. Está submetido a um imperativo que, como analista, representamos. E é nesse sentido que Lacan diz que o estatuto do inconsciente é ético. Se o estatuto do inconsciente é ético, não é da ordem do real, é isso o que quer dizer. O estatuto do real não é ético. O real em suas manifestações é muito mais unethical, não se comporta segundo nossa conveniência. Dizer que o estatuto do inconsciente é ético é, precisamente, dizer que é relativo ao desejo e, primeiro, ao desejo do analista que trata de inspirar o analisante a assumir esse desejo.

Em que momento na prática da psicanálise, necessitamos de uma dedução do inconsciente? Simplesmente, por exemplo, quando vemos retornar na palavra do analisante, lembranças antigas que haviam esquecido até este momento. Somos forçados a supor que essas lembranças no intervalo residiam em algum lugar, em um certo lugar do ser, um lugar que permanece desconhecido, inacessível ao conhecimento, do qual dizemos, precisamente, que ele não conhece o tempo. E, para imitar ainda mais o estatuto ontológico do inconsciente, tomemos o que Lacan chama suas formações, que põem em relevo, precisamente, o estatuto fugitivo do ser. Os sonhos se apagam. São seres que não consistem, dos quais frequentemente só temos fragmentos na análise. O lapso, o ato falho, o chiste, são seres instantâneos que fulguram, aos quais damos na psicanálise, um sentido de verdade, mas que se eclipsam imediatamente.

Confrontação com os restos sintomáticos

Então, entre essas formações do inconsciente, está o sintoma. Porque colocamos o sintoma entre estas formações do inconsciente, senão porque o sintoma freudiano também é verdade. Damos-lhe um sentido de verdade, o interpretamos. Mas, ele se distingue de todas as outras formações do inconsciente por sua permanência. Há outra modalidade do ser. Para que haja sintoma no sentido freudiano, sem dúvida é preciso que haja sentido em jogo. É preciso que isso possa ser interpretado. É o que faz para Freud, a diferença entre o sintoma e a inibição. A inibição é pura e simplesmente a limitação de uma função. Enquanto tal, uma inibição não tem sentido de verdade. Para que haja sintoma, é necessário também que o fenômeno dure. Por exemplo, o sonho muda de estatuto quando se trata de um sonho repetitivo. Quando o sonho é repetitivo, implica um trauma. O ato falho quando se repete torna-se sintomático, pode, inclusive, invadir todo o comportamento. Nesse momento, lhe damos o estatuto de sintoma. Nesse sentido, o sintoma é o que a psicanálise nos dá de mais real.

É a propósito do sintoma que a questão de pensar a correlação, a conjunção do verdadeiro e do real torna-se ardente. Neste sentido, o sintoma é um Janus, tem duas caras, uma cara de verdade e uma cara de real. O que Freud descobriu e que foi sensacional em seu tempo é que um sintoma se interpreta como um sonho, se interpreta em função de um desejo e que é um efeito de verdade. Mas, há, como vocês sabem, um segundo tempo deste descobrimento, a persistência do sintoma depois da interpretação e Freud o descobriu como um paradoxo. É, com efeito, um paradoxo se o sintoma é pura e simplesmente um ser de linguagem. Quando temos que nos haver com seres de linguagem na análise, os interpretamos, quer dizer, os reduzimos. Reconduzimos os seres de linguagem à nada, os reduzimos à coisa nenhuma. O paradoxo aqui é o do resto. Há um x que resta mais além da interpretação freudiana. Freud se aproximou disto de distintas maneiras. Pôs em jogo a reação terapêutica negativa, a pulsão de morte e ampliou a perspectiva até dizer que o final da análise como tal deixa sempre subsistir o que chamava restos sintomáticos. Hoje, nossa prática prolongou-se muito mais além do ponto freudiano, muito mais além do ponto em que, para Freud, a análise encontrava seu fim. Justamente era um fim do qual Freud dizia que sempre há um resto e, portanto, sempre é preciso recomeçar a análise, depois de um curto tempo, ao menos para o analista. Um curto tempo de pausa e logo recomeçamos. Era o ritmo stop and go, como se diz em francês agora. Mas, isso não é nossa prática. Nossa prática se prolonga mais além do ponto em que Freud considerava que há finais de análise, mesmo se houver que retomar a análise, nossa prática vai mais além do ponto que Freud considerava como fim de análise. Em nossa prática, assistimos, então, à confrontação do sujeito com os restos sintomáticos. Passamos, certamente, pelo momento de decifração da verdade do sintoma, mas chegamos aos restos sintomáticos e ali, não dizemos stop. O analista não diz stop e o analisante não diz stop. A análise nesse período se dá pela confrontação direta do sujeito com o que Freud chamava de restos sintomáticos e aos quais damos outro estatuto muito diferente. Sob o nome de restos sintomáticos, Freud chocou-se com o real do sintoma, com o que, no sintoma, é fora de sentido.

 O gozo do ser falante

Já no segundo capítulo de Inibição, sintoma e angústia , Freud caracterizava o sintoma a partir do que ele chamava de satisfação pulsional “como signo e o substituto (Anzeichen und Ersatz) de uma satisfação pulsional que não aconteceu”4 . Ele explicava no terceiro capítulo, a partir da neurose obsessiva e da paranoia, assinalando que o sintoma que se apresenta a princípio como um corpo estranho em relação ao eu, tenta cada vez mais fazer um com o eu, quer dizer, tende a incorporar-se ao eu. Ele via no sintoma, o resultado do processo do recalque. Evidentemente, são dois capítulos e o conjunto do livro que se deve trabalhar na perspectiva do próximo congresso.

Queria assinalar isto: o gozo em questão é primário? Em certo sentido, sim. Podemos dizer que o gozo é o próprio do corpo como tal, que é um fenômeno de corpo. Nesse sentido, o corpo é o que goza, mas, reflexivamente. Um corpo é o que goza de si mesmo, é o que Freud chamava o auto-erotismo. Mas, isso é verdade para todo corpo vivo. Podemos dizer que é o estatuto do corpo vivo, o gozar de si mesmo. O que distingue o corpo do ser falante é que seu gozo sofre a incidência da palavra. E, precisamente, um sintoma testemunha que houve um acontecimento que marcou seu gozo, no sentido freudiano de Anzeichen, e que introduz um Ersatz, um gozo que não faria falta, um gozo que transtorna o gozo que faria falta, quer dizer, o gozo de sua natureza de corpo. Portanto, nesse sentido, não, o gozo em questão no sintoma não é primário. É produzido pelo significante. E é precisamente esta incidência significante o que faz do gozo do sintoma, um acontecimento, não apenas um fenômeno. O gozo do sintoma testemunha que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo depois do qual, o gozo natural, entre aspas, que podemos imaginar como o gozo natural do corpo vivo, transtornou-se e se desviou. Este gozo não é primário, mas é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá e que lhe dá por seu sintoma enquanto interpretável.

Podemos recorrer, para captá-lo melhor, à oposição da metáfora e da metonímia. Há uma metáfora do gozo do corpo, esta metáfora produz acontecimento, produz este acontecimento que Freud chama a fixação. Isso supõe a ação do significante como toda metáfora, mas um significante que opera fora de sentido. E após a metáfora do gozo há a metonímia do gozo, quer dizer, sua dialética. Nesse momento, ele se dota de significação. Freud fala disso em Inibição, sintoma e angústia, fala de die symbolische Bedeutung, da significação simbólica que afeta um certo número de objetos.

Da escuta do sentido à leitura do fora de sentido

Podemos dizer que isso se transmite na teoria analítica. Na teoria analítica, durante muito tempo se contou uma pequena história sobre o gozo, uma pequena história onde o gozo primordial era encontrado na relação com a mãe, onde a incidência da castração era por efeito do pai e onde o gozo pulsional encontrava seus objetos, que eram Ersatz, que tamponavam a castração. É um aparato muito sólido que foi construido, que abraça os contornos da teoria analítica. Mas, de qualquer maneira, vou endurecer a linha, é uma superestrutura mítica com a qual, durante um tempo se logrou, com efeito, suprimir os sintomas, interpretando-os no marco desta superestrutura. Mas, interpretando o sintoma no marco desta superestrutura, quer dizer, prolongando o que eu chamava esta metonímia do gozo, se fez inflar o sintoma também, quer dizer, ele foi alimentado com sentido. Aí se inscreve meu “ler o sintoma”.

Ler um sintoma vai no oposto, quer dizer, consiste em privar o sintoma de sentido. Por isso Lacan substitui o aparato de interpretar de Freud – que Lacan mesmo havia formalizado, havia esclarecido, quer dizer, o ternário edípico – por um ternário que não produz sentido, o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Mas, ao deslocar a interpretação do quadro edípico em direção ao quadro borromeano, é o funcionamento mesmo da interpretação que muda e passa da escuta do sentido à leitura do fora de sentido.

Quando se diz que a psicanálise é uma questão de escuta, é preciso estar de acordo, é o caso de dizê-lo. O que se escuta de fato, é sempre o sentido e o sentido chama o sentido. Toda psicoterapia se sustenta nesse nível. Isso desemboca sempre, em definitivo, em que o paciente é o que deve escutar, escutar o terapeuta. Trata-se, ao contrário, de explorar o que é a psicanálise e o que pode a nível propriamente dito da leitura, quando se toma distância da semântica – remeto-lhes aqui, às indicações preciosas que há sobre esta leitura no escrito de Lacan que se chama ´O aturdido´5 e que vocês podem encontrar nosAutres Ecrits, página 491 e seguintes, sobre os três pontos da homofonia, a gramática e a lógica.

Apontar o clinamen do gozo

A leitura, o saber ler consiste em manter à distancia, a palavra e o sentido que ela veicula, a partir da escritura como fora de sentido, como Anzeichen, como letra, a partir de sua materialidade. Enquanto que a palavra é sempre espiritual, se posso dizer assim, e a interpretação que se sustenta puramente ao nível da palavra não faz mais que inflar o sentido, a disciplina da leitura aponta para a materialidade da escritura, quer dizer, a letra enquanto que ela produz o acontecimento de gozo que determina a formação dos sintomas. O saber ler visa esse choque inicial que é como um clinamen do gozo – clinamen é um termo da filosofia dos estoicos.

Para Freud, como ele partia do sentido, isso se apresentava como um resto, mas, de fato, esse resto é o que está nas origens do sujeito, é, de algum modo, o acontecimento originário e, ao mesmo tempo, permanente, quer dizer, que se reitera sem cessar.

É o que se descobre, o que se desnuda na adicção, não “mais um copo” que escutamos falar há pouco6 . A adicção é a raiz do sintoma que é feito da reiteração inextinguível do mesmo Um. É o mesmo, quer dizer, precisamente, não se adiciona. Não teremos jamais o “bebi três copos, portanto, é suficiente”, bebe-se sempre o mesmo copo uma vez mais. Essa é a raiz do sintoma. É neste sentido que Lacan pôde dizer que um sintoma é um etcétera. Quer dizer, o retorno do mesmo acontecimento. Podemos fazer muitas coisas com a reiteração do mesmo. Precisamente, podemos dizer que o sintoma é, neste sentido, como um objeto fractal, porque o objeto fractal mostra que a reiteração do mesmo pelas aplicações sucessivas lhes dá as formas mais extravagantes, inclusive se pôde dizer, as mais complexas, que o discurso matemático pode oferecer.

A interpretação como saber ler visa reduzir o sintoma a sua fórmula inicial, quer dizer, ao encontro material de um significante e do corpo, quer dizer, ao choque puro da linguagem sobre o corpo. Então, certamente, para tratar o sintoma, é preciso passar pela dialética móvel do desejo, mas também é necessário se desprender das miragens da verdade que essa decifração lhes aporta e apontar mais além, à fixação do gozo, à opacidade do real. Se eu quisesse fazer falar a este real, lhe imputaria o que disse o deus de Israel na sarça ardente, antes de emitir os mandamentos que são o revestimento de seu real: “sou o que sou”7 .

*Jacques Alain-Miller apresentou no final do Congresso da NLS que se realizou em Londres, nos dias 2 e 3 de abril de 2011, o tema do próximo congresso que acontecerá em Tel-Aviv, em junho de 2012. Texto estabelecido por Dominique Helvoet, não revisado pelo autor.

Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes

Texto distribuído por EBP-Veredas (EBP-Veredas é uma lista sobre a psicanálise de difusão privada e promovida pela Associação Mundial de Psicanálise (AMP) em sintonia com a Escola Brasileira de Psicanálise) – E-mail: EBP-Veredas@yahoogrupos.com.br


[1] Lacan, J. Radiophonie, Autres Ecrits, Paris, Seuil, 2001, p. 428
[2] Lacan J., « Télévision », Autres Ecrits, Paris, Seuil, 2001, p. 509

[3] Lacan J., Le Séminaire, Livre XVIII, D’un discours qui ne serait pas du semblant, Paris, PUF, 2007

[4]Freud S., Inhibition, symptôme et angoisse, 1926, Paris, PUF, 1986, p. 7

[5] J. Lacan, « L’étourdit », Autres Ecrits, Paris, Seuil, 2001, pp. 491-493

[6] J-A Miller fait référence à l’intervention de notre collègue Gabriela van den Hoven de la London Society of the NLS : « The Symptom in an Era of Disposable Ideals », les symptômes à l’ère des idéaux jetables

[7] Disse Moisés a Deus: Eis que quando vier aos filhos de Israel e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós e se eles me disserem: Qual é o seu nome? Que lhes direi?
E disse Deus a Moisés:  Eu sou o que sou – Ehyeh asher Ehyeh (La Bible, Exode 3,13-14a).
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