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Lalíngua e a interpretação na passagem de psicanalisante à psicanalista
Ana Martha Wilson Maia (EBP/AMP)
Quando Lacan introduziu o neologismo lalíngua, ele promoveu um giro em seu ensino que produziu efeitos importantes na clínica. Um deles incide diretamente sobre o conceito de interpretação.
Lacan inventa lalíngua para circunscrever o gozo que fica marcado no corpo a partir do encontro com esta massa sonora que é constituída de significantes sozinhos, isolados, que não formam cadeia, não comunicam, não estabelecem laço com o Outro. Lalíngua só serve para gozar.
Em seu curso de orientação lacaniana A fuga do sentido, Miller sublinha uma modificação que Lacan fez em suas coordenadas fundamentais: do lado esquerdo de uma tabela, temos palavra, linguagem e letra e, do lado direito, apalavra, lalíngua e lituraterra. São três termos do primeiro Lacan e três neologismos, invenções de Lacan dos anos 70. Não por acaso, é no mesmo seminário 20 que ele apresenta lalíngua e o gozo feminino.
Quando a linguagem passa a ser uma elocubração de saber sobre lalíngua, já não se trata de estrutura, mas de aparelho de gozo. A interpretação tem aí um outro lugar.
No tempo do inconsciente estruturado como uma linguagem, a linguagem é uma estrutura a ser decifrada, construída (Miller, 2012). Na linguagem como aparelho de gozo, a interpretação não visa o sentido que relança e tende à infinitização. Na direção contrária, no avesso da interpretação (Miller, 1996) está o corte que reconduz o ser falante à opacidade de seu gozo.
Assim, neste giro das coordenadas fundamentais, Lacan faz da interpretação uma formalização da apalavra que suporta o real como impossível e promove uma redução do isso quer gozar para isso não quer dizer nada.
As marcas deixadas por lalíngua no corpo reaparecem “nos sonhos, em todo tipo de tropeço, em todo tipo de formas de dizer”. (Lacan, 1975, p. 10). Podemos verificar em uma análise, até onde vão os efeitos de lalíngua e destacar restos enigmáticos, um indizível que itera (Miller, 2011).
Em um de seus testemunhos de passe, Bruno de Halleux (2012) traz um sonho que marca a conclusão de sua análise. Ele vai de bicicleta para a casa de uma mulher baronesa. De repente, algo o freia e a bicicleta para. Um homem bêbado, parecido com um primo barão com quem brincava na infância, surge em um carro Twingo e para em seu lado. Ele se esquiva para não ser atingido, tenta fugir, mas, inexplicavelmente, a bicicleta o impede de seguir. O homem o alcança e, no momento em que vai atingi-lo, Halleaux grita forte “não!”, acordando a mulher e os filhos.
Twingo é um significante que condensa muitas significações: a carreira do pai em uma empresa automobilística, ser gêmeo, a língua inglesa usada pela mãe para guardar segredos e a brincadeira escolhida por seus filhos de contar Twingos na rua, depois do episódio do sonho.
No romance familiar, ele é a criança do milagre que foi salva por uma enfermeira no parto em que supunham que nasceria apenas uma criança. Ele chegou inesperado: eram gêmeos.
A partir de lalíngua, esse parlêtre faz uma elocubração de saber que se torna uma construção fantasmática que é esvaziada, inicialmente, por um primeiro analista, em uma intervenção que considera ousada, ao lhe dizer: “Eu te quero bem” (Je vous ai à la bonne). O efeito é de um golpe. Como continuar acreditando em um pai ideal se o analista lhe diz que é amado? Ele não suporta a intervenção e deixa o analista.
Lacan não incluiu a interpretação entre os conceitos fundamentais da psicanálise porque ela faz parte do conceito de inconsciente, conforme Miller (1996). Podemos dizer que ao final de uma análise, na passagem de analisante à psicanalista, o parlêtre relata como lê seu percurso. E em sua leitura, em sua interpretação, vemos que “ele se encontra no lugar do sinthoma.” (Laurent, 2010)
Tempos depois da interpretação ousada que o leva à saída da primeira análise, um estranho sintoma aparece na segunda análise de Halleux: as crises de choro. Ele demanda ao novo analista sua significação e recebe a resposta: “Os choros são muito misteriosos!” (Les larmes sont très mystérieuses!).
O analista acentua a dimensão do acontecimento de corpo. Não procura a causa que o faz chorar, mas o mistério do corpo que chora. Trata o choro como um real e o conduz a um significante que faça borda ao gozo, com uma interpretação que produz um furo. O analista esvazia a significação com uma interpretação aparentemente simples que introduz a dimensão fora do sentido e o empuxa a nomear, sob a forma do S1, ao invés de dar significação e o lançar numa cadeia associativa infinita. Essa interpretação abre um lugar na cadeia significante e faz surgir um significante sozinho que vem nomear o sem sentido do sintoma do lado do S1, e não do sentido, do S2.
O lugar do pai está vazio. Ele abandona a relação imaginária com o irmão gêmeo e o significante paterno automobilístico. A redução de gozo traz uma mudança radical em sua posição subjetiva. Um desejo decidido o incita a ir, a não ceder sobre mais nada em sua vida. Ele termina o testemunho com o sonho que havia lhe indicado tão precisamente em inglês: “Vá em frente, gêmeo! Twin-go!”