#06 - OUTURBRO 2023
Estão fazendo arte
O homem que ri
Marcia Eliane Rosa
Participante da Comissão de Arte e Cultura das XII Jornadas da EBP – SP
O romance de Victor Hugo, “O homem que ri”, publicado em 1869, nos faz olhar para complexas questões sobre o riso e o humor. A história traz como personagem principal Gwynplaine (o homem que ri), um homem deformado a partir de uma cirurgia forçada, realizada ainda na infância, que transforma seu rosto deixando-o permanentemente distorcido em um sorriso perto do grotesco. A condição física do personagem pode ser vista como uma metáfora para seu estado emocional de sofrimento e uma sensação de isolamento e alienação. No entanto, apesar de sua condição trágica, Gwynplaine também é retratado como alguém que tem um senso de humor e é capaz de rir de si mesmo e das situações absurdas que enfrenta.
A narrativa de Gwynplaine, que se tornou um artista performático circense, foi recontada em mais duas obras emblemáticas: no filme “O homem que ri”, dirigido pelo cineasta alemão expressionista Friedrich Wilhelm Murnau, em 1928, e na primeira história do Batman, “The Man Who Laughs” (1940), que deu vida ao personagem Coringa. A autoria da criação do personagem gera algumas discordâncias[1] e reivindicação do ilustrador Jerry Robinson, mas é certo que Coringa nasce da parceria dos roteiristas Bob Kane e Bill Finger. E apesar de diferenças entre os personagens Gwynplaine e Joker, há muita semelhança na caracterização estética.
No livro de Victor Hugo, diversas cenas mostram que Gwynplaine – impedido de usar o riso como forma de responder às situações sociais, já que em seu rosto era escrachado seu riso constante – buscava no humor o caminho possível. Para Henri Bergson[2], o humor seria uma transposição do moral para o científico, algo que reverteria o caráter equívoco da comicidade para a elaboração e não para a emoção, como no riso. “[…] Um caráter pode ser bom ou mau; pouco importa: se for insociável, poderia tornar-se cômico. Vemos agora que a gravidade do caso não importa tampouco: grave ou não grave, ele poderá fazer-nos rir se tudo for arranjado para que não nos comova”.
É certo que Lacan[3], no Seminário 5, não poupa críticas a Bergson ao dizer que “já se proferiu uma porção de barbaridades particularmente obscuras, desde que o sr. Bergson fez sobre o riso um livro do qual podemos simplesmente dizer que é legível[4]” ou quando faz o comentário sobre a “rigidez mecânica”[5]. Lacan vai dizer “que nada está mais longe de satisfazer-nos do que a teoria de Bergson, do mecânico que surge no meio da vida”[6]. No entanto, mostra-se mais próximo da ideia de Bergson sobre a necessidade do Outro na comunicação do riso. “Em outras palavras, para que minha tirada espirituosa faça o Outro rir, é preciso, como diz Bergson em algum lugar – e essa é a única coisa boa que existe em O riso [o livro] -, que ele seja da paróquia”[7]. Lacan busca, neste momento do texto, recuperar a ideia da “terceira pessoa”[8], que Freud expõe no quinto capítulo do livro Witz – “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, na tentativa de elucidar a função do público na estrutura do dito espirituoso.
No filme “O homem que ri” (1928), do alemão Murnau, o ator Conrad Veidt foi desafiado a mostrar as emoções e toda essa comicidade e dramaticidade, em um filme do cinema mudo, mesmo expressando o sorriso permanente em seu rosto. O filme é um dos exemplos mais conhecidos do cinema expressionista alemão, caracterizado por uma forte ênfase na estilização visual e na utilização de efeitos especiais para criar uma atmosfera de mistério e surrealismo. A direção de Murnau foi considerada notável por suas composições visualmente impressionantes, com o uso de sombras e iluminação dramática para criar um clima sombrio e melancólico. Veidt consegue expressar uma ampla gama de emoções, apesar da maquiagem grotesca que o transforma em um personagem deformado. Além disso, a trilha sonora do filme, composta por Werner Richard Heymann, contribui para a atmosfera intensa e emocional do filme.
Já na primeira história do Batman (1940), o personagem do Coringa, inspirado em Gwynplaine, é alguém que ri de maneira compulsiva e descontrolada, o que o torna um dos mais emblemáticos vilões dos quadrinhos. No filme “Joker” (2019), dirigido por Todd Phillips, o personagem do Coringa, interpretado por Joaquin Phoenix, sofre de uma condição neurológica que o faz rir incontrolavelmente em momentos inapropriados. Quase como uma forma subversiva e política do riso.
Desde o século 19, “O homem que ri”, em suas diversas apresentações e versões, é um universo de situações e contracenas que nos remete às diferentes perspectivas do riso, do humor e do cômico. No entanto, a forma política de apresentação é notavelmente frequente. Às vezes como uma ferramenta para questionar as normas sociais e políticas[9]. Outras para trazer esta questão para o campo da interdição política ou da subversão[10] dos valores dominantes da sociedade.
Beirando ao final do romance de Victor Hugo, uma cena chama a atenção para este contexto político e social do riso. Gwynplaine, que é um homem sensível e inteligente, começa a falar com seriedade sobre sua história e sobre as injustiças que sofreu em sua vida. No entanto, conforme ele começa a falar, os nobres e aristocratas riem dele e de sua aparência, considerando-o um mero objeto de diversão e de escárnio.
A cena é marcada pela tensão entre a seriedade e a comicidade, com Gwynplaine tentando se afirmar como um sujeito com voz e vontade próprias, mas sendo constantemente interrompido e humilhado pelo riso dos outros.
Paradoxalmente, “O homem que ri” apresenta o riso e o humor como elementos complexos e multifacetados, capazes de gerar emoções entre o prazer e a alegria e a dor e a humilhação. O personagem Gwynplaine encena como o riso pode ser utilizado como uma forma de resistência e subversão diante das adversidades, mas também é um exemplo de como o riso pode ser usado como uma forma de opressão e de desumanização.