O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
Eixo Temático 4 – Ato analítico e política do sintoma
Cristiana Chacon Gallo (EBP/AMP)
Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP)
Veridiana Marucio (EBP/AMP)
Sintoma: sentido e gozo
Em suas famosas conferências 17 e 23 sobre os sintomas, Freud nos diz que o sintoma possui um sentido e este guarda relação com as vivências do enfermo”[1]. Freud evidencia que os sintomas produzem uma nova maneira de satisfação da libido, dizendo que o neurótico se prende a algum ponto de seu passado, “um período desse passado no qual sua libido não carecia de satisfação, em que ele era feliz”[2]. A partir da análise dos sintomas, o psicanalista toma conhecimento de vivências infantis e recalcadas dos pacientes, nas quais a libido se fixou e de que são constituídos os sintomas; cenas infantis, de conteúdo sexual, que “nem sempre se revelaram verdadeiras”[3]. Vemos nestas duas conferências um binário, indo do sentido ao gozo, que é o caminho do ensino de Lacan. Miller nos diz que, em alguma medida, todo o ensino de Lacan é um comentário das Conferências 17 e 23 de Freud[4].
A perda dos instintos de autopreservação e de perpetuação da espécie se apresentam para o humano como dois furos, a morte e o sexo. Com a leitura que Lacan fez da obra freudiana, é possível afirmar que o sexo é um furo na linguagem que se articula ao impossível de escrever a relação sexual. É por esta via que podemos dizer que a linguagem se encontra atravessada pelo sentido sexual, consequência deste furo, que produz sintomas. Os sintomas estão em toda parte. São eles que levam os sujeitos para uma análise. Se podemos constatar que o sintoma guarda relação com o mais íntimo das vivências do paciente, pode o sintoma revelar algo a respeito de uma época?
O sintoma e a época
Lacan, no texto “De nossos antecedentes”, faz referência ao “invólucro formal do sintoma (…) verdadeiro traço clínico”[5]. O sintoma possui, então, um envelope formal, uma roupagem de uma época, pois se articula aos significantes mestres dominantes: “a cultura mesma propõe sintomas, ready made sintomas. São sintomas de supermercado, de grande divulgação, do tipo ‘não é necessário criar sintomas próprios, sai caro, pensem bem’”[6]. Porém, articulado a este invólucro formal, o sintoma traz consigo sua vertente de gozo. Há real no sintoma! É o que Lacan nos diz em “A terceira”: “o sentido do sintoma não é aquele com o qual o nutrimos para sua proliferação ou extinção. O sentido do sintoma é o real”[7].
Miller nos convida a ficarmos atentos, pois o mundo atual está “reestruturado por dois fatores históricos, dois discursos: o da ciência e o do capitalismo”[8], apontados por ele como discursos prevalentes da modernidade.
Nosso mundo é marcado pela evaporação do pai[9], a queda do falocentrismo e a ascensão do objeto a ao zênite social[10], que contribuem, sobretudo, com os processos de segregação, racismo e empuxo ao gozo. Quais as consequências destas modificações na época da globalização na formação dos chamados sintomas contemporâneos?
A sociedade do sintoma traz consigo o imperativo da felicidade, demanda resultados rápidos e propaga a falácia de que nada é impossível. Mas ela traz a reboque as errâncias e as passagens ao ato, por vezes com efeitos devastadores. O discurso do mestre contemporâneo chega ao consultório do psicanalista por meio de significantes-mestres como gênero, abuso, assédio, burnout, autismo, pânico, dentre outros, e mostram “a face segregativa do racionalismo biopolítico”[11], coroada pela fragmentação das entidades clínicas do DSM. Neste cenário, o sintoma evidencia as circunstâncias nas quais um significante-mestre captura o sujeito[12].
A perspectiva apresentada no último ensino de Lacan evidencia que o sintoma se inscreve como acontecimento de corpo, efeito da incidência traumática da linguagem, do encontro entre lalíngua e o corpo. Na concepção Freudiana, o sintoma é fundamentalmente histérico e ligado ao sentido. Para Lacan, o sintoma se transforma em sinthoma, inerente ao falasser, fora do sentido. No Seminário 23, o sinthoma é apresentado como “alguma coisa que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real continuarem juntos”[13]; trata-se da via do nó borromeano com sua série infinita de arranjos para cada falasser. A psicanálise em ato, ao levar em conta as soluções sinthomáticas, conduz ao avesso da biopolítica?
A política do sintoma e a psicanálise em ato
Em “Lituraterra”, Lacan diz que “o fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se comprova nossa política implica (…) que tudo o que se articula dessa ordem seja passível de interpretação”[14]. Ao seguirmos a pista deixada por Lacan a partir desta citação, a articulação entre política e sintoma convoca necessariamente outros dois significantes essenciais: inconsciente e interpretação. De posse destes quatro termos, podemos evocar o dito de Lacan proferido no Seminário 14: A lógica da fantasia: “Não digo sequer ‘a política é o inconsciente’, e sim, de maneira bem mais simples, ‘o inconsciente é a política”[15]. Como o psicanalista pode ler e se servir destas afirmações nos tempos atuais?
Miller[16] sublinha que se a formulação “a política é o inconsciente” está para Freud como a política articulada ao pai, por outro lado, com Lacan, “o inconsciente é a política” parte não do pai e sim do inconsciente como o que está “a ser definido”, apontando para a condição transindividual do inconsciente. Trata-se de levar em conta que a sociedade atual deixou de viver sob o reinado do pai, não havendo mais o que faz barreira e que interdite. A estrutura do todo cedeu à do não-todo, abalando o laço social, o modo de viver junto. A psicanálise não segue o apelo desesperado e nostálgico ao reino do significante-mestre da tradição. Nossa política é a da falta-a-ser. Ela preserva o real como o cerne da prática analítica em um mundo em que o analista “tende a se dissolver na prática assistencial”[17].
Ao ser questionado a respeito de como a psicanálise poderia intervir no campo político, Miller[18] nos mostra que isso não implica de modo algum sair do campo da psicanálise, mas sim o contrário, de levar a psicanálise à política. Como o sintoma, mais especificamente a política do sintoma, pode contribuir para isso?
Há duas perspectivas para a política do sintoma: uma para dentro, a psicanálise pura, e outra para fora, quando a psicanálise se dirige ao social, à cidade. Para dentro, a política da psicanálise leva ao passe, uma vez que o dispositivo do passe investiga o sintoma, sendo esta a política da psicanálise pura[19].
No dispositivo do passe, trata-se de verificar o que se passou com a interpretação em uma análise, se essa interpretação logrou fazer algo ou não com o sintoma do sujeito, verificando se houve uma modificação a tal ponto que seja possível falar em sinthome no final de análise, ou seja, um novo enodamento. A política do sintoma comporta o não-todo e visa à passagem de um regime de gozo a outro, de um regime de sofrimento a um regime de prazer. Nessa via, o ato analítico renova, em cada psicanálise levada a seu termo, “a inscrição no mundo da ‘psicanálise em ato’”[20].
Na direção ao externo, a política do sintoma localiza o sintoma do sujeito como portando algo do social, a cada vez, abrindo a perspectiva para a interpretação também do que aparece no laço, na sociedade na qual vivemos, sem perder de vista a singularidade do caso.
Bassols nos lembra que, quando Lacan disse que a psicanálise é uma política do sintoma, não se trata do sintoma que é preciso fazer desaparecer, “mas sim do sintoma como portador de uma verdade do sujeito do nosso tempo, do seu mais-de-gozar”[21].
No trabalho de uma análise, o ato analítico, nos diz Marcus André Vieira, poderia ser abordado, como indica Lacan, como um forçamento para dar lugar a um gozo impossível de negativizar em sua possibilidade contingente de fazer laço. E acrescenta: “Quando se trata do não-sentido é necessário se responsabilizar. Para fazer reverberar o gozo fora do sentido, (…) é preciso comprometer-se, entrar com seu corpo”[22].
Lacan[23], com seu ato, funda as condições para que a Escola possa garantir a um psicanalista a sua formação e apresenta o dispositivo do passe como tratamento interno do mal-estar nas instituições analíticas.
Na direção contrária do universalismo capitalista, articulado à lógica do para-todos que a civilização impõe, Lacan, no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, designa por passe a historisterização da análise, quando se constata que a verdade é uma miragem e se atinge o inconsciente real. Lacan se abstém de impor esse passe a todos, “porque não há todos no caso, mas esparsos disparatados”[24].
Nossa aposta é a de que levar a política lacaniana do sintoma – o mais radical da singularidade e a perspectiva do não-todo – para o campo da política é pela via da psicanálise em ato. Talvez esta seja a forma de o psicanalista tornar menos mortífero o espetáculo do gozo no mundo.