O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
Eixo 3 – Ato analítico e civilização
Fabiola Ramon (EBP/AMP)
Milena Vicari Crastelo (EBP/AMP)
Patricia Badari (EBP/AMP)
“(…) a psicanálise como o tratamento
que se espera de um psicanalista (…)”[1]
O ato de Freud funda a psicanálise e interpreta a civilização, incidindo nos laços e nos modos de gozo. O ato[2] de Lacan funda uma Escola, alicerçada no cartel e no passe, uma resposta lógica à queda do Pai sem ceder ao Pior e à fagocitose do discurso capitalista.
Os efeitos do ato de fundação da psicanálise e do ato de fundação da Escola de Lacan dão mostras na inscrição do discurso do analista na civilização. Mas, para que a psicanálise siga se inscrevendo é preciso que haja um psicanalista. Eis aí uma dimensão ética e política que sustenta a própria inscrição desse discurso no mundo.
Miller, em 2017, opera um ato e inaugura o Ano Zero[3] no campo freudiano seguindo Freud e a orientação lacaniana de interrogar a subjetividade de sua época[4]. Ele inclui uma quarta extensão ao que eram três dimensões da instituição analítica[5]: o campo da política. Trata-se de ir além da dimensão da política da psicanálise. Para isso, “é preciso ter uma ideia clara do fundamento de nossa ética para abordar a nova tarefa que nos é proposta” [6], a de colocarmos as bases do discurso analítico no campo político e no debate público.
A sustentação do discurso analítico como ato e como política
Muito atento à clínica e ao seu tempo do sujeito desiludido do pós Primeira Guerra Mundial, Freud faz equivaler o sentimento de culpa inconsciente, engendrado pela civilização, à angústia, remanejando sua teoria da angústia pela introdução da paradoxal pulsão de morte[7].
Em “O mal-estar na civilização”, de 1930, Freud nos adverte: “O mandamento ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo’ constitui a defesa mais forte contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do supereu cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme do amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade”[8]. Ele nos coloca que está no cerne da civilização a égide do supereu e este é o mal-estar desta.
O imperativo de gozo faz seu circuito constante e perpétuo na civilização. No entanto, se na época vitoriana o supereu tomava forma a partir da moral como dever, no contemporâneo, com a queda do ideal, que revela o esvaziamento do Outro e o lugar cada vez mais potente do corpo enquanto corpo próprio, o dever como imperativo está em gozar mais e mais, colocando de forma obscena, o quanto o narcisismo não faz barreira à pulsão de morte.
Nos anos 60, Lacan localiza o significante-mestre que surge naquele momento: o mercado comum, que tem na burocracia sua sustentação e que, graças à técnica, o apresenta como esboço do estado universal homogêneo[9]. Lacan pôde ler esse axioma da civilização e apontar que a crença no universal negligencia o gozo, e o retorno deste engendra processos de segregação[10]. A isso a psicanálise se opõe ao circunscrever “o estatuto descentrado do sujeito fundamentado num alhures”[11].
Em 1970, em “Radiofonia”, Lacan fala sobre a subida do objeto a ao zênite social[12] e dá uma orientação precisa, baseada no que extraiu de Freud, para que sigamos o efeito de angústia como verdadeiro efeito de linguagem.
Ao escrever os quatro discursos, Lacan inclui a dimensão do gozo no laço social[13], o gozo não está fora do laço, mas o compõe, faz parte dele. Localiza um novo regime do laço social a partir da fantasia e do gozo, e não mais a partir da identificação ao ideal, ao pai[14]. Esse ponto, apreendido e atestado dia a dia na clínica, vem sendo uma bussola fundamental na orientação lacaniana.
A clínica contemporânea nos apresenta sintomas e fenômenos segregacionistas que testemunham esse novo regime do laço social. À psicanálise cabe problematizá-los, mas tendo como princípio a ética e a lógica do um a um.
O campo das identidades sexuais, por exemplo, traz uma nova forma de mascarar a diferença sexual[15], um querer se autodefinir com relação ao gênero, e se organiza no sentido de cortar o laço entre o corpo biológico e o corpo falante. No entanto, a psicanálise incide aí apontando que há um laço, não há um sem o outro[16] e que somente a partir deste laço e do modo de gozo de cada ser falante é que a autodefinição é possível.
Outro exemplo é o campo da segregação racial, que para a psicanálise não se trata exclusivamente de uma questão de supremacia e colonialismo, ela incide apontando que o que está em jogo no racismo é a rejeição do gozo do Outro a partir do inassimilável do gozo opaco[17].
A psicanálise na política e o real do gozo
Miller, em “Uma fantasia” dá um passo além e, contemporâneo ao nosso tempo, esclarece que esse novo regime do laço comandado pelo gozo coloca em convergência o discurso do analista e o discurso da civilização hipermoderna; em ambos é o objeto a que está no comando[18]. No entanto, a convergência não faz deles discursos que operam da mesma forma.
O lugar do objeto na civilização hipermoderna condiciona imperativos de gozo, desagalmatiza o saber e engendra a segregação.
Diante destes impasses na civilização, Jacques-Alain Miller propõe aos psicanalistas que tomem essa convergência a partir da ética da psicanálise. Uma das formas de operar a partir disso trata-se de “colocar as bases do discurso analítico no campo político”[19] e no debate público.
O que imediatamente nos interroga sobre o que se trata levar a psicanálise ao campo da política. Como a psicanálise pode entrar no debate público, já que isso não quer dizer tomar partido nas ideologias e nem mesmo fazer teorias sociológicas?
Em primeiro lugar, podemos dizer que a psicanálise necessita de psicanalistas para entrar no debate público – “(…) psicanalistas capazes de jogar sua partida com a ciência e com a cultura capitalista”[20]. Necessita de psicanalistas que operem com as bases do discurso analítico – a partir da diferença absoluta, a partir do caso a caso, da singularidade e de uma solidão sem a garantia de um Outro.
O discurso analítico aponta para o real do gozo. Este modo de operar pode fazer barreira, fazer obstáculo ao empuxo à segregação, à universalização e à relação desagalmatizada com o saber em nossa época.
Se à psicanálise cabe fazer obstáculo ao universal[21], “ao para todos” que exclui a contingência em cada falasser, no entanto, não se trata de se contrapor a ele, mas de ressituá-lo, fazendo aparecer os axiomas lógicos do discurso universal.
Se a civilização rechaça o furo, a psicanálise responde incluindo a dimensão do furo. Se o que a civilização oferece são tentativas de dar solução ao gozo excluindo o real que não tem sentido, nem mesmo o do não-sentido, a psicanálise aponta para o real do gozo.
Como lembrou Angelina Harari no lançamento da Grande Conversação da AMP na EBP-SP, cabe à psicanálise acolher todos os sujeitos, acolher para buscar separar o sujeito do significante-mestre. À relação que nos cabe, enquanto psicanalista, com o discurso do mestre, Miller deixa a orientação: “o discurso analítico se submete abertamente ao discurso do mestre ao mesmo tempo em que, às escondidas, ele o subverte”[22].
“A psicanálise é um abraço com o particular, o não universal, o que não vale para todos, ao passo que o discurso do mestre, reforçado por seu pacto com a ciência, está sob o regime do “para todos”. O que faz trauma é a ferocidade atual desse para todos que resulta das bodas do mestre com a ciência”[23].
A psicanálise não é “guardiã da realidade social”[24]. “Levar a psicanálise para a política” significa levar a identificação dessegregativa para esse campo, já que não há campo mais segregativo que esse[25]. E mais, para entrar neste debate “o analista tem que estar próximo de sua maldade”[26]. O analista tem que ter, ele mesmo, experimentado em sua própria análise essa zona de amor-ódio e não recuar diante dela, para permitir ao sujeito em análise aceder a esta zona que há nele próprio, para que não recue diante desse horror, para que possa lhe dar uma dignidade. A dignidade de um ato. O ato de enunciação, um dizer que toca o real do falasser, em uma situação particular. A solidão de um ato, sem a garantia do Outro.
Solidão de um ato de enunciação, que tem efeitos no corpo, no modo de satisfação.
Muitos sintomas e fenômenos segregacionistas que dão mostras desse novo regime do laço social nos interessam e apostamos que a clínica do caso a caso poderá iluminar e no ajudar a problematizar sobre, por exemplo: violência, feminicídio, cultura do cancelamento e movimento woke, feminismo, democracia sanitária e despatologização, comunidades do meio virtual e diversos outros que abriremos para o debate nessas Jornadas.
Finalizamos com Cristiane Alberti, que ao tomar a palavra em um Fórum sobre a ascensão do populismo na Europa, ocorrido no Pipol 8, em 2017, afirma: “A política é, no fundo, o laço social. E é nossa arma frente à pulsão de morte.”[27]