BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
De uma mentira verídica à verdade mentirosa
Andressa Contó Luz
Associada ao CLIN-a
“a miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira (é a isso que se chama resistência, em termos polidos), não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise.”[1]
Diante da oportunidade de contribuir para este boletim das XI Jornadas da EBP/SP “Ⱥ verdade e o gozo que não mente”, determinei a “satisfação que marca o fim da análise”[2] como ponto de partida deste trabalho. É o que me faz questão, pois é este o ponto do qual se verifica o limite de uma certa ilusão da verdade que se fez presente durante todo o percurso da análise.
Para tanto, busquei algumas passagens de Lacan e de Miller, onde pude localizar referências concernentes ao tema da verdade, para contextualizar a minha questão a seguir:
No Seminário 11, Lacan indica que o campo da verdade ou da mentira “refere ao campo do Outro (A), uma vez em que é neste campo, onde o sujeito se olha e se vê, em que ele começa a constituir uma mentira verídica pela qual tem começo aquilo que participa do desejo no nível do inconsciente”[3]. Ou seja, é com o jogo dos significantes – do qual o sujeito é efeito, que um “efeito de verdade”[4] se produz. Portanto, falar é preciso! “sem fala, nada de efeito de verdade”[5], reforça Miller.
No Seminário 16, Lacan retoma a propriedade da verdade: “ela fala”[6], diz ele, para precisar que isso não significa, no entanto, que ela diga a verdade: “Quanto ao que ela diz, vocês é que têm de se haver com isso”[7]. No seminário 17, no entanto, Lacan segue trabalhando o tema da evocação da verdade para indicar que ela “só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer.”[8]. Eis, aí, um primeiro limite no campo da enunciação. O que resta a dizer, d (Ⱥ) verdade, ao final de uma análise?
Sabemos, com Lacan, da indicação que ele nos faz, ao cunhar o termo “verdade mentirosa” como um novo estatuto da verdade no final de uma análise. É com o dispositivo do passe, portanto, que temos uma referência “daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa”[9].
Ainda a respeito da “verdade mentirosa”, recolho de Miller uma precisão que ele enuncia como o cerne de sua constituição: a aliança da verdade com a mentira[10].
Em seguida às referências preliminares que indiquei aqui, proponho as seguintes questões para debatermos até às Jornadas:
O que o final de uma análise poderia testemunhar de uma nova relação entre gozo, saber e verdade? Estaria aí, em essência, o saber-fazer com o gozo, próprio ao sinthoma?
O que poderíamos extrair (enquanto um dizer) de uma satisfação que marca, ao final de uma análise, uma nova aliança com o gozo?
Se o amor ao inconsciente é o pivô da relação analítica, Lacan nos adverte que o amor à verdade “é o amor a essa fragilidade cujo véu levantamos, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração”[11]. Diante desta perspectiva, se considerarmos o percurso de uma análise rumo ao desvanecimento dos efeitos de verdade que re-velam a castração, via discurso, em que medida essa operação-redução implica o corpo?
Encontrei em Miller, entretanto, uma direção: ao retomar o conceito de gozo, ele indica que, se a aparição do sinthoma se dá em algum lugar, é justo quando Lacan tropeça num termo que não funcionará em conformidade com o regime da castração. Mais adiante, ele localiza em Lacan um esforço de tentar mostrar por que o gozo é necessariamente atingido pela castração, dizendo que o gozo, por ser infinito, exige uma “interdição, um só-até-aqui, um não, um menos”[12]. Miller ainda acrescenta que, se o gozo fosse infinito, ele seria mortífero, “caso não encontrasse um menos, o complexo de castração”[13]. Sendo assim, deparamo-nos com dois planos que se desdobram naquilo que concerne ao gozo: um onde há o falo, o objeto a, o menos, o Édipo (negativação do gozo); e no outro plano onde há o impossível de ser negativado[14]. Miller esclarece que é preciso reconsiderar a relação entre a verdade e o gozo sob o ângulo do gozo como impossível negativação, tratando-se, portanto, de uma travessia da fantasia em direção ao impossível de negativar, de modo a fazer “desvanecer toda uma parte da experiência na qual o neurótico joga sua partida fantasística com um Outro que lhe demandaria sua castração para dela gozar”[15].
Mas, se esse Outro não existe, problematiza Miller, e se esse Outro que não existe é o da verdade, o Outro do sentido (cerne da mentira verídica), o lugar do Outro deve ser buscado no corpo e não na linguagem[16].
O que Miller destaca nas passagens indicadas acima é que, a travessia da fantasia, isto é, a travessia da “mentira verídica” com a qual nos deparamos durante todo o percurso de análise, implica em uma mudança no estatuto do Outro. Os efeitos de verdade que se revelam, índice do que vela a castração, caminham em direção à negativação do gozo. Uma revelação sobre a fantasia faria dissipar, enquanto efeito, o “parceiro imaginarizado da fantasia”[17], este Outro da verdade, revelando sua inconsistência e, consequentemente, liberando o acesso ao gozo como impossível de negativar.
“Que o sujeito, com o gozo, possa passar a uma nova aliança”[18], isso é o que propõe Miller ao indicar a busca do lugar do Outro no corpo, implicado na produção do gozo, e não mais na linguagem. O que dissiparia, neste caso, é o apelo ao Outro do sentido, em direção ao não-sentido, próprio do gozo impossível de negativar.
Estaria aí uma direção para o que engendra essa nova aliança entre a verdade com a mentira, constitutiva da verdade mentirosa, cujo índice de “limite da miragem da verdade” só se alcança ao final de uma análise?.