BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
“COM A VERDADE, NÃO HÁ RELAÇÃO AMOROSA POSSÍVEL”[1] – SOBRE A POSIÇÃO DO ANALISTA
Heloisa Prado R. da Silva Telles
Membro da EBP e da AMP
Em “Radiofonia” (1970), Lacan retoma a fórmula do sujeito suposto saber, lançada anos antes, com o intuito de marcar um aspecto que, ao seu ver e surpreendentemente, passara desapercebido: este saber suposto, suposto como também é “esse sujeito”, seria suposto saber a verdade? Rapidamente, adverte ao que isto poderia levar. E concluímos que levaria ao pior, uma vez que pensar nisto “arriscaria matar a transferência”[2]. Lacan referia-se ao analista. E se é inconcebível pensar que o “psicanalista seja casado com a verdade”[3], qual sua relação com ela desde o lugar que ocupa?
O analista faz parte do conceito de inconsciente não somente porque seria seu suposto destinatário, mas sobretudo porque o seu lugar e o seu ato são engendrados pelo próprio inconsciente – vemos esta correlação ao longo do ensino de Lacan, no qual suas formulações ou reformulações sobre a transferência e a interpretação seguem às referidas ao inconsciente.
Da mesma maneira, no nosso campo, o esforço recai em situarmos a dimensão da verdade a partir das balizas dadas pela descoberta radical do inconsciente. Isto que parece evidente não resultou – ou ainda não resulta – em um caminho sem tropeços. Para Lacan, por exemplo, tornou-se fundamental retirar a psicanálise de concepções de uma prática conduzida por uma confrontação entre os ditos do sujeito com a obviedade dos fatos da realidade ou, ainda, por uma adaptação do eu à realidade, fundamento da egopsychology.
Encontramos em seus escritos dos anos 1950 indicações muito precisas de que a verdade – esta que, tal como o real, concerne um impossível, como proporá posteriormente – é algo que se depreende da experiência com a palavra em uma análise, reafirmando-se assim que é no valor dado à fala e à palavra que a psicanálise joga sua partida e onde algo da verdade do sujeito pode advir: “Essa fala que constitui o sujeito em sua verdade”; essa fala que “fala por toda parte onde pode ser lida em seu ser”[4].
Assim, o “Eu, a verdade, falo” diz respeito a algo inédito que a psicanálise introduz: uma verdade que fala, desde que exista um analista que possa dar lugar a este acontecimento. Lacan assim o indica com muito refinamento: “O comércio de longo curso da verdade já não passa pelo pensamento – […] parece doravante passar pelas coisas: rébus, é por meio dele que me comunico, como o formula Freud”[5]. Esta transposição de pensamento para coisa/rébus (um meio para uma verdade ser veiculada) resulta do próprio trabalho do inconsciente que, assim, instala o vazio necessário para que outra cena possa advir.
Vislumbramos nas palavras de Lacan de 1955 um fio entre este trabalho do inconsciente e a posição do analista: “É na medida em que o analista faz silenciar em si o discurso intermediário, para se abrir para a cadeia das falas verdadeiras, que ele pode instaurar sua interpretação reveladora”[6] – o silêncio (do analista) faz a verdade falar.
Com a agudeza da leitura lacaniana, pode-se qualificar esta verdade descoberta por Freud como enigma, opacidade, perda irremediável, ruptura, impossível, mas sobretudo concernida a um sofrimento[7]: a verdade que se sofre, tal como o sintoma pode denunciar, implicando, portanto, corpo e gozo.
Voltemos ao nosso sujeito suposto saber. Sabemos que o significante da transferência dá lugar ao regime topológico do funcionamento do objeto, o analista surge no lugar do objeto sempre perdido, de modo que o saber que se obtém em uma análise é menos aquele que se articula em uma cadeia e mais ruptura[8]. Assim, institui-se a possibilidade de uma extração de gozo e uma desestabilização do sintoma que mantém o laço da cadeia S1-S2. Esta é uma das maneiras como podemos ler a proposição de Lacan acerca do analista, aquele que se presta a bancar o dejeto: “[…] para realizar o que a estrutura impõe, ou seja, permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, tomá-lo como causa do seu desejo”[9].
Cabe notar que, logo depois da sua “Proposição” de outubro de 67, Lacan dedica-se ao engano (méprise) do sujeito suposto saber, em seu texto de dezembro de 1967 que traz no seu cerne a seguinte questão: “o saber que só se revela no engano do sujeito, qual pode realmente ser o sujeito que o sabe de antemão?”[10]. A posição do analista deve ficar suspensa em uma relação hiante, de abertura, […] e é na estrutura do engano do sujeito suposto saber que o psicanalista tem que “encontrar a certeza do seu ato e a hiância que constitui sua lei”[11]. No comentário que faz deste texto, Miller se pergunta qual é, afinal, esta “estrutura que determina a posição do analista, sua posição de sujeito na experiência enquanto inscrita no real, […] enquanto marcada em seu próprio ato” [12], ato que pode produzir efeitos reais e não somente semblantes. A primeira resposta: o analista não está determinado por uma captura de saber, sua prática não diz respeito a uma matéria sobre a qual pode-se capturar um saber e acumulá-lo como se faz na maestria. Ao contrário, na experiência analítica a relação com o saber é de impossibilidade de toda captura – verdade que o próprio inconsciente revela. Há um engano (méprise) essencial a propósito do saber em questão. Paradoxalmente, o sujeito suposto saber seria uma maneira de recobrir o furo no saber, radical e próprio ao inconsciente. Daí, a advertência de Lacan quanto aos riscos de uma identificação do analista com o sujeito suposto saber – o que Miller localiza como “enfatuação”.
Alguns impasses que se colocam na experiência de uma análise dizem respeito a este complexo e “enganoso” enodamento entre amor, saber, verdade. Freud ao propor que “a relação analítica se baseia no amor à verdade” não deixou de apontar, mesmo que fosse a título da necessidade de excluí-la, a possível presença insidiosa da aparência (semblante) e do falseamento[13]. Se o amor à verdade é o “modo de acesso ao saber para todo sujeito falante”, e a verdade, portanto, constituiria “a face libidinal, pulsional do saber”, Lacan encontrará a maneira de arrancar da verdade sua face de satisfação desconectando-a do sentido[14] – este nos parece ser um ponto crucial em seu ensino. Ao se autorizar, desde sua própria experiência de análise, a sustentar este laço inédito que é a psicanálise, o analista poderá dar lugar ao inconsciente realizado em ato sob transferência; ocupando a posição de objeto a, pode deslizar ao lugar definido pelo modo de gozo em ato[15], sem saber prévio ou suposto.