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A psicanálise na era do homem-empresa e do significante “neuro”(1)
Daniela de Camargo Barros Affonso (EBP/AMP)
A questão que me propus trabalhar neste cartel – “A psicanálise nos tempos das novas formas de autoritarismo” – origina-se da ideia de que as formas conhecidas do autoritarismo se tornaram insuficientes para explicar o enfraquecimento da democracia. Para Laval e Dardot, em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal(2), apesar de existirem mais países formalmente democráticos, há uma desconfiança generalizada entre governantes e governados. Se a democracia liberal estava longe de ser perfeita, ainda havia disparidade entre a expressão da vontade popular e a lógica econômica da acumulação do capital. O neoliberalismo produz a liquidação deste jogo, que permitia ações limitantes dos efeitos negativos do capitalismo.
Parte daí o interesse da psicanálise neste debate. Pensar que a psicanálise é exclusivamente uma experiência do um a um, alheia ao mal-estar do social, é um erro, diz Miller(3), lembrando que a própria existência da psicanálise vincula-se à democracia, único regime garantidor da liberdade de expressão.
O neoliberalismo não se reduz a uma política econômica, é uma racionalidade que incide na existência, transformando a subjetividade. Se “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”(4), é imperativo pensar as formas desta neo-subjetividade. Cabe ressalvar que o termo subjetividade não é sinônimo de sujeito: “(…) é necessário distinguir a subjetividade historicamente produzida pelos dispositivos de poder, lugar de onde a política advém, e o surgimento da existência sexuada, falante e mortal, que por estrutura não pode ser produto de nada”(5). O conceito de sujeito do inconsciente é a chave que abre a possibilidade de localizar a psicanálise como instrumento para pensar os impasses da civilização, já que há algo irredutível a qualquer representação.
Ao liquidar o conflito entre as exigências da pulsão e as da civilização, esta nova gestão ambicionaria superar a contradição entre os valores hedonistas do consumo e os ascéticos do trabalho. A empresa passa a ser “uma maneira de ser”, em que toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização do eu a ser transposto para todos os âmbitos da existência.
Este sujeito requer um discurso que implica técnicas cujo objetivo é fazer eclodir o homem-empresa – as “asceses do desempenho”: coaching, programação neurolinguística, análise transacional. Identifica-se o desempenho ao gozo. O indivíduo é confrontado com o universo da disfunção sempre que se vê incapaz de se “superar” e se “autorrealizar”. A tecnologia entra para resgatar o homem-empresa. As novas formas de autoritarismo estariam, assim, bem delineadas.
Por que caminhos a ciência se aliou a esta tecnologia e como a psicanálise se posiciona neste contexto? Miller(6) retrata como a psicologia adotou um simulacro do discurso da ciência transformando-se em cognitivista. Passou da observação dos comportamentos à dos neurônios, através da ressonância magnética. Somos dotados de um imaginário poderoso do simbólico, em que o significante mestre é “neuro”. O real se tornou neuro-real.
A mistura explosiva do discurso da ciência e do capitalismo rompeu os fundamentos mais profundos da tradição(7). É sob a forma de cientificismo e do comércio aberto por suas tecnologias que a ciência pode fazer laço com o século XXI(8).
Há toda uma linha da neurociência que tenta provar as teses psicanalíticas, sob o slogan “Freud está de volta!”. Mark Solms, criador da “neuropsicanálise”, é o principal expoente dessa tentativa de localizar os conceitos freudianos no sistema nervoso central. Para Bassols(9) esta extensão dos pressupostos da ciência a todo o âmbito do humano é uma ideologia reducionista, a “fantasia da época”.
Há duas correntes nas neurociências: a que quer localizar as funções subjetivas em alguma parte do cérebro e outra – com a qual a psicanálise pode dialogar – que está descobrindo a impossibilidade de efetuar tal localização. Haveria um “real” de certa
parte da ciência que crê na existência de um saber já inscrito no real genético e neuronal, e outro real, de outra parte da ciência, cuja ideia se aproxima àquela da psicanálise.
Se certo cientificismo negligencia a incidência da linguagem sobre o falasser, cabe à psicanálise não tergiversar quanto a isso. Advertidos de que as irrupções do real não podem ser reabsorvidas por nenhuma construção discursiva, os psicanalistas podem direcionar sua escuta mais além dos enunciados do homem-empresa. A psicanálise se vê diante do desafio de não se deixar engolir pelo cientificismo reducionista do significante “neuro”. Cabe estabelecer um debate vivo com o campo científico, na busca permanente de desnaturalizar a subjetividade atual, apontando para seu caráter contingente.
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1 N.A.: Versão reduzida do trabalho fruto do cartel “A posição da psicanálise diante da política na atualidade”, apresentado nas Jornadas de Carteis da EBP-SP em 29/9/2018.
2 Dardot, P. e Laval, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. SP: Boitempo, 2016.
3 Miller, J.-A. “Conferência de Madrid”. In Lacan Cotidiano N° 700.
4 Lacan, J. “Função e campo da fala e da linguagem”. In Escritos. RJ: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 322.
5 Entrevista com Jorge Alemán em http://subversos.com.br/uma-esquerda-lacaniana-entrevista-com-jorge-aleman/.
6 Miller, J.-A. “Neuro, le nouveau réel”.In La cause du désir, 98 – Folies dans la civilisation.
7 ________ “O real no século XXI”. In Scilicet – Um real para o século XXI.
8________ “Cientificismo, ruína da ciência”. In Scilicet – Um real para o século XXI.
9 Bassols, M.. “As neurociências e o sujeito do inconsciente”. In Opção Lacaniana online nova série, nº 17.