O esp de um ato Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP) Chegamos ao último Boletim Travessias.…
A entrada em análise: ato e moterialismo
Cristina Drummond (EBP/AMP)
Nas jornadas da ECF sobre o feminino, François Ansermet nos disse que a fala de Paul Preciado nos trouxe a responsabilidade que temos de reinventar a psicanálise em um mundo do qual participamos. O pensamento de Preciado foi tomado por nossa comunidade como signo da subjetividade de nossa época e a questão trans como uma consequência da intervenção da ciência no mundo dos seres falantes. Já em 83, Catherine Millot dizia: “nada de transexual sem cirurgião e sem endocrinologista”. A impossibilidade de representar a diferença dos sexos como tal e a alteridade do sexo e do gozo que não podem se representar pela linguagem se apresentam de maneira cada vez mais insistente nas soluções singulares dos falasseres que produzem sintomas para se arranjarem com seus corpos e seus gozos.
Juntamente com essa convocação a reinventar a psicanálise diante dos novos sintomas, das novas formas dos falasseres se arranjarem com o gozo, temos a orientação de Lacan em seu seminário 11 de que a presença do analista é ela mesma uma manifestação do inconsciente. Lacan também diz nesse seminário que a função do analista se sustenta a partir de um desejo impuro, que é um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem à posição de se assujeitar a ele.
Assim, nessas jornadas da EBP-SP sobre o ato, teremos a oportunidade de buscar as maneiras de sustentar nossa função que leva ao Um. Gostaria aqui de pensar a respeito do ato de entrada em análise. Esse ato depende da conexão do sujeito com o inconsciente, cuja materialidade em nossa atualidade não me parece ser tão fácil de ser levada em conta, sobretudo a moterialidade do inconsciente que nos permite localizar o Um. Estamos num tempo em que o falasser recorre a outras formas que não a decifração fundada na metáfora para resolver sua relação com o gozo.
Miller, em sua conferência “Uma fantasia”, disse que a análise demanda amar seu inconsciente para fazer existir não a relação sexual, mas a relação simbólica. Isso para que no final do tratamento, o sujeito possa se destacar dos efeitos de verdade que ele amou. Não há início de análise sem a passagem pelo sujeito suposto saber para que se abra o inconsciente, fundado sobre o amor ao seu próprio inconsciente, ao Outro. Tal como disse Lacan, não há ato analítico fora do manejo da transferência.
A abertura do inconsciente permite ao analisante localizar um sujeito em seu dizer e indica algo de sua relação singular com a palavra e o que ela toca em seu corpo e que o introduz no caminho da longa experiência de uma análise.
Localizar o ponto em que a palavra equivocada orientou o mal-entendido sobre o qual o sujeito fundou seu fantasma leva tempo. Antes disso, é preciso que o sujeito se dê conta de sua relação própria com a palavra, com sua lalíngua familiar, com seu inconsciente charlatão. E isso só tem lugar a partir de um endereçamento transferencial e uma escuta.
Alguns relatos de AEs são bastante elucidativos a esse respeito e nos ensinam sobre sua relação singular com o significante e demonstram que a possibilidade desse trabalho foi devido à presença e à palavra do analista, que muitas vezes não é mais do que referendar a interpretação do inconsciente de cada um. A topologia própria ao ato analítico se articula à função poética já que, como disse Éric Laurent, o moterialismo encerra em seu centro um vazio. Vou tomar alguns desses exemplos que me ajudaram a pensar essa questão.
Dominique Jammet diz ter repetido durante muito tempo certos significantes que retornavam em suas queixas, seja nos sonhos ou nos atos falhos, e que não lhe permitiam captar a lógica que os enlaçavam e determinavam seu gozo. Era preciso tempo para uma análise que, em um segundo tempo só foi possível a partir de um encontro com um analista diante do qual ela teve medo de que ele esquecesse o seu nome. O ser esquecida retomava um relato de seu nascimento feito por sua mãe no qual a parteira a deixara sobre a balança, onde a mãe foi buscá-la diante da demora.
Como diz Daniel Pasqualin, se no início está a transferência, uma análise reserva muitas surpresas para aquele que se engaja nesse trabalho de decifração do inconsciente. Percurso de localização dos significantes e de mudança na relação com o gozo.
Dominique Hoelvet nos relata que, desde o início de sua análise, aparece o olhar da mãe que o invadia ao entrar no banheiro quando tomava banho e que ele repetia como dançarino. Ao ser deitado no divã ele pode fazer uma primeira separação desse olhar devorador e deixar o palco para continuar sua análise.
Araceli Fuentes relata que após a morte de seu pai ela busca uma segunda análise com uma analista reconhecida. Logo na primeira sessão, sem que ela tivesse pensado nisso, surge a frase que marcara sua vida: “ah se sua mãe a visse!”. Também menciona a frase que seu primo tinha o costume de dizer: “Que sorte teve a menina com dona Maria!”. Dona Maria era a mulher com quem seu pai se casara, sua segunda mãe, a única que ela conheceu e a menina era ela. Essa frase lhe dizia não apenas que estava bem ter uma segunda mãe como que era uma sorte ter perdido sua primeira mãe. A transferência a fazia sonhar, inclusive com sua analista examinando sua garganta e dizendo, tal como Freud a Irma, o nome de sua doença: Lupus. Segundo ela, sua análise não foi fácil, uma verdadeira travessia no deserto, pois ela partia de um real mudo que não se prestava a nenhum tipo de simbolização.
Carlos Rossi nos conta sobre sua primeira entrevista. Ele se dividia entre a música e a psicanálise. Sua analista o deixa falar um pouco de seus incômodos com o Outro: os músicos eram muito descontrolados e os analistas uns esnobes, não saíam à rua. A analista lhe diz: “fale-me de seu pai”. A partir desse corte se seguiram 16 anos de análise.
O ato de entrada está atrelado ao moterialismo, ao laço singular de cada um com a palavra e que só tem lugar ao ser acolhido por alguém que se presta a ser o destinatário desse lugar. Função encarnada por um desejo nada puro.