#06 - OUTURBRO 2023
A dimensão singular do riso
Andrea V. Zelaya
Membro da EOL/AMP
Uma perspectiva psicanalítica do riso
“Para Freud o chiste não é simplesmente uma piada que pretende gerar riso […]”.[1] O valor clínico do riso que o chiste produz é sua dimensão disruptiva e de impacto no corpo. Destaco seu viés vital, não somente pelo produzido na comédia, mas também pelo eco que se produziria com o riso, na complacência e ressonância no Outro, inclusive sua cumplicidade para que chegue a se efetuar.
Há uma importância na função social no riso e em sua utilidade. Há uma afetação de satisfação que consegue atravessar, pela intensidade pulsional, os limites da repressão; por esse motivo tem seu valor na experiência de uma análise, seja pela irrupção contingente, seja por seu impacto na matéria do corpo. Em referência a esta última vertente, Miller introduz que: “O que indiretamente mostra como o orgasmo na matéria, quer dizer, o desencadeamento do riso – o momento de gozo é o hilário – se deve não só ao prazer do Witz, mas também à pulsão” [2]. O riso ultrapassa o sentido, o qual está articulado aos significantes, atravessa algo da repressão tocando o pulsional, que ao liberar-se provoca um efeito que também incide no Outro. A partir desta vertente, até a pulsão, poderíamos animarmo-nos a dizer – recordando o sintagma utilizado por Lacan no Seminário da Ética sobre a sublimação -, que a eleva à dignidade do fator riso que toca o corpo, por ele passa e nesta deriva afeta ao Outro. “O que faz rir é a pulsão e sua satisfação”[3], gera surpresa que provoca um despertar do sujeito e do Outro, “[…]desperta-se sua atenção, e uma vez que o feixe de sua atenção está aberto – representando isso como um raio laser – podemos provocar surpresa […]”[4]. Estes pontos vivos que recorto são os que Miller introduz para pensar o efeito do riso, e nos orientam a enfatizar o valor clínico do riso e refletir sobre as consequências subjetivas atuais.
Há risos e risos: suas diferenças
Na vida contemporânea o valor libidinal e singular da palavra se encontra não somente em perigo de extinção, mas também, ameaçada pelo abarrotamento que produz o mercado da tecnociência ao mesmo tempo veloz, iminente e excessivo; é um “[…] imediatamente […]”[5] que produz um sujeito cada vez mais assujeitado ao consumo, pela produção de uma multiplicidade de objetos a serem consumidos. O que se garante é a certeza de que o sujeito termina por ser consumido; neste circuito o sujeito fica aplicado[6] ao discurso do mestre dos mercados comuns e universalizantes que impera.
Graciela Brodsky coloca:
(…) A utopia contemporânea é biopolítica (…) As novas utopias, das quais jornais e revistas ecoam e – que somente nos fazem rir, como último recurso para burlar ao supereu que se insinua sob o disparate -, se aplicam aos corpos. Elas vão de mãos dadas com uma ficção que já não é jurídica, mas sim cientificista, que busca na estrutura do cérebro e na medida estatística, um Real último que, na falta de Deus, sirva de fundamento e torne inteligível e predizível ao homem e seus atos.[7]
O tema destas jornadas sobre “la R.I.S.a”[8], evoca um equívoco na língua não isento de certa ironia, uma vez que leio e escrevo R.I.S.-a. Ela é agente e causa, produz um encontro contingente e surpresivo que pode enodar real, imaginário e simbólico por um vazio central (o objeto a), a partir do qual se produz uma diferença.
É importante estabelecer uma das diferenças a respeito do riso, pois uma questão bem diferente no posicionamento do sujeito é a que descreve Lacan sobre a dimensão do chiste e o riso do capitalista, pois se refere à descoberta que Marx realizou neste momento, com respeito à essência da mais-valia, que assinala: “[…] à conjunção do riso com a função radicalmente eludida da mais-valia, da qual já indiquei suficientemente a relação com a elisão característica que é constitutiva do objeto a”.[9]
Ainda que esta função do riso no capitalista desvele a expropriação do mestre da mais-valia e a submissão do sujeito a ela enquanto elidido, ao mesmo tempo, esclarece a íntima relação do riso com o objeto pulsional, aquele que nomeia a perda estrutural do sujeito, o objeto a, enquanto ele mesmo é a própria falta de objeto.
A diferença do riso no capitalista é a apropriação da mais-valia pelo Outro, que provoca no sujeito o sofrimento de uma perda, enquanto que o riso do lado do sujeito se dá pela apropriação de seu próprio mais-de-gozar, faz algo diferente de sofrer pela alienação. Então o riso é uma satisfação, é um gozo que se sente e acontece em um corpo, singular. A experiência analítica como tratamento do gozo permite isolar o valor de seu real no sintoma. Possibilita, por meio da “[…] interpretação em sua variante do Witz pulsional”,[10] na qual esvaziaria um gozo solitário, triste e entediado do sujeito preso às demandas das leis do mercado.
Um riso fora da repetição
“O chiste deve surpreender, deve ser novo, não pode ser repetido”[11]. A partir desta perspectiva, o ato que provoca um Witz, tal como ressalta Miller, é o que Freud indica da interpretação: “[…] ela deve ser como o pulo do leão. Só pula uma vez, e se depois a gazela partiu, já não pode repeti-lo”[12].
O analista mediante seu ato recorta e localiza o modo de gozo cuja satisfação poderia transformar e constatar pelo riso, um acontecimento de corpo.