#06 - OUTURBRO 2023
O esp de um riso
Marie-Claude Sureau
AME da ECF/AMP
As análises começam, frequentemente, pelas lágrimas em uma dimensão trágica e, às vezes, terminam por um traço cômico, em que o riso vem então pontuar sessão. Uma vez o fantasma apreendido, atravessado, o objeto caído, um resto de gozo se manifesta e faz rir! E, pronto, o analisante pode ir.
No seu texto “Vue de la sortie”[1] e posteriormente em “O osso de uma análise”[2], Jacques-Alain Miller retoma a alegoria de Lacan sobre o final da análise a partir da anamorfose do quadro intitulado “Os embaixadores” de Holbein. Diante dos dois embaixadores em posição majestosa, há um objeto em primeiro plano, um osso de choco, que quando o espectador vai e volta sobre a pintura, avista então uma caveira. “Essa revelação anamórfica ofertada somente àqueles que se voltam ao partir, eu faria dela, com prazer, uma alegoria do final da análise – esse ponto aonde se volta, pode-se finalmente perceber a figura do que estava até então velado, quase sem forma”[3], escreve Jacques-Alain Miller. Nesse quadro é a morte, a castração, que Lacan disse estar presentificada e que, na verdade, não faz rir. Mas o riso não é também frequentemente provocado por um reviramento? O que estava dentro, escondido, vem para fora e provoca o riso. É uma versão topológica do riso. O fantasma, que não era conhecido, torna-se claro uma vez atravessado, o que é também um movimento topológico. Assim, proponho abordar a questão do riso no final da análise de um ponto de vista topológico como um momento de reviramento, onde o objeto mais de gozar surge onde já estava caído, e “fazê-lo surgir, esse objeto, é propriamente o elemento de cômico puro”[4], diz Lacan. Assim, o eco desse reviramento no corpo pode ser o riso, uma descarga, como escreve Freud.
O riso em Freud
No seu livro “O chiste e sua relação com o inconsciente”[5], Freud se preocupa em distinguir o chiste do cômico. No capítulo VI, “O chiste e as variedades do cômico”, ele teoriza do que se trata o cômico: “O gênero do cômico que mais se aproxima do chiste é o ingênuo [naïf] (…) um dispêndio de inibição que costumamos fazer torna-se subitamente inutilizável e é descarregado pelo riso”[6]. O que distingue o chiste da palavra que faz rir os ingênuos ou as crianças é a intencionalidade. “Notamos aqui pela primeira vez que a outra pessoa se colocou no processo psíquico da que produz a fala ingênua”[7]. Freud dá o seguinte exemplo: trata-se de uma cena de teatro criada e depois encenada por crianças para seus pais. Um marido faz uma longa viagem pelo mar para ganhar dinheiro e volta rico. Sua esposa quer mostrar a ele que também não ficou ociosa, então ela lhe mostra todos os bebês que concebeu na ausência dele! Risos dos pais em posição de outra pessoa. “A pessoa ingênua acredita ter empregado de maneira normal e simples o seu meio de expressão e o curso do pensamento, e nada sabe de uma segunda intenção; ela também não extrai nenhum ganho de prazer da produção da fala ingênua. Todas as características do ingênuo só existem na compreensão da pessoa do ouvinte, que coincide como terceira pessoa do chiste”[8].
Ao final da análise, o terceiro personagem, a Dritte person não seria, antes de tudo, o analista que escuta, acompanhado do riso que pode surgir de um resto fantasmático que faz um retorno irrisório e que ratifica a saída da análise, e posteriormente, não seria o cartel do passe e, finalmente, a Escola como Dritte person?
Rir no teatro
Recentemente fui ao teatro para assistir à peça “L’avare” [O avarento], de Molière, com Jérôme Deschamps no papel de Harpagon, e ri muito da surdez de Harpagon quanto ao seu gozo, seu fantasma agarrado ao seu objeto mais de gozar, o dinheiro, o objeto anal que prevalece sobre todas as suas racionalizações, seus planos de casamento para seus filhos guiados, não por seu suposto amor aos filhos, mas por seu amor ao dinheiro. O que faz rir é o fato dele não ser nem totalmente ingênuo, nem propriamente cínico, ele é somente um tolo de seu fantasma, tolo de seu objeto de gozo que ele tenta esconder, mas que transpira em todas as suas falas, o que é compreendido graças ao texto de Molière e à encenação dos atores. O público está, então, na posição de Dritte person. Há uma lacuna entre os enunciados de Harpagon feitos de boas intenções ao querer a felicidade de seus filhos, e sua enunciação, seu dizer que inclui seus atos nos quais prevalece seu gozo do dinheiro. Que se diga fica esquecido atrás do que se diz, mas que se escuta nos espectadores, parafraseando Lacan em “O Aturdito”. A encarnação do personagem pelo ator mostrava em seu corpo essa disjunção entre suas palavras e seu gozo, ele tremia de dor, sufocava com a ideia do roubo de seu querido cofrinho. As modulações sonoras do ator fizeram ouvir uma “moterialidade”[9], uma ganância para ter dinheiro e seu espanto diante do roubo. Lacan comenta assim: “Harpagon não fica curado pela conclusão mais ou menos postiça da comédia molièresca. O desejo, na comédia, é desmascarado, mas não refutado”[10]. Harpagon não está em análise, ele continua tolo de seu gozo e de seu fantasma de um homem roubado!
No chiste de Heine, comentado por Freud, é Hirsch-Hyacinthe, homem pobre, que diz: “Eu estava sentado ao lado de Salomon Rothschild, e ele me tratou como um igual, de uma maneira familionária”. É bem marcante a presença do objeto dinheiro que surge no milionário, objeto de gozo escondido sob o familiar e desmascarado pelo chiste. Essa palavra [familionária] é um reviramento da intenção de dizer o modo familiar da consideração do barão, o qual, portanto, tem os limites de um homem muito rico quando cara-a-cara com o pobre Hirsch-Hyacinthe.
O esp de um riso no final de análise
Lacan diz que “o interesse do chiste pelo inconsciente está ligado à aquisição de lalíngua”[11]. Ele coloca em série o sonho, o ato falho e o chiste: “um sonho constitui um equívoco [bévue], como um ato falho ou um chiste, com isso quase nos reconhecemos no chiste porque ele agarra isso que eu chamo lalíngua”[12].
O falasser que faz um chiste está próximo de sua lalíngua, uma palavra ao final da análise pode surgir como um chiste, juntando, compactando o percurso.
Uma vez atravessado o fantasma, um resto de gozo que pode fazer rir, uma enésima repetição do fantasma, rir do real em jogo, podemos rir do real? Parece-me que o final pode ir em direção a um traço cômico. É o aspecto irrisório do fantasma fundamental que pode ocasionar o riso, este [fantasma] que organizou toda uma vida e do qual nos desfazemos como um trapo velho.
Assim, o percurso de uma análise vai dos enunciados à enunciação, ao dizer que pode suscitar os eps de um riso e uma alegria certa de ter feito o percurso.
“Rir das normas”[13] é o título de um texto de Éric Laurent apresentado durante as 51ª jornadas da ECF. Ele coloca em destaque a expressão de Lacan a propósito dos “aforismos, que aliás contento-me em apresentar em botão, transformem em reflores os fossos da metafísica (porque o númeno [noumène] é a chacota, a subsistência fútil…). Digo que eles provarão ser o mais-de-nonsense [plus-de-nonsense], mais engraçados, numa palavra, do que aquilo que assim nos conduz [nous mène]…”[14]. Os chistes de Lacan, aqui o númeno nos conduz, são numerosos. As torções que ele opera sobre os conceitos freudianos são mais do que engraçadas, pois elas são interpretações, como o Um-equívoco [l’Une bévue] no lugar do Unbewusst, do inconsciente etc. O mais-de-nonsense ressoa com o mais-de-gozar. Ao final da análise, o esp de um nonsense surge e pode fazer rir.