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O bater de asas da borboleta: a interpretação e seu efeito multiplicador

Boats at Martigues (1908), Raoul Dufy
Nancy Greca Carneiro
Membro da EBP/AMP

 Poderia o bater de asas de uma borboleta no Brasil,

causar um tornado no Texas?[1]

O que é hoje a interpretação analítica? Ao tratar do que faz rir no curso “A fuga do sentido”, Miller apresenta, no efeito surpresa do chiste, uma razão renovada necessária para considerar a interpretação analítica, na ruptura da causalidade onde “estamos frente a uma situação em que uma pequena causa produz um efeito desproporcional”[2].

Inicio pela questão: o que faz rir a um, ao outro faz matar. Em seu texto “O retorno da blasfêmia”, Miller aponta que a questão “será saber se o prazer pelo riso, o direito a ridicularizar, o desprezo iconoclasta, são tão essenciais ao nosso modo de gozar como o é a submissão ao Um na tradição islâmica”.[3] Do que se ri? Pode-se rir de tudo? Ele segue: “Há que manter unidos os signos de uma comunidade. Em nenhuma parte, nunca, desde que há homens e estes falam, foi lícito dizer tudo”[4].

Da caricatura do sagrado tomada como blasfêmia aos apelidos da juventude interpretados como bullying, às piadas tornadas ofensivas e injuriosas ou aos chistes recolhidos como sarcasmo ou ato falho, ou mesmo a perda do sentido de humanidade contido na palavra “Homem” nas questões de gênero, os fenômenos do riso se apresentam, no mundo contemporâneo, a serviço de uma segregação cada vez menos afeita a um laço social possível e mais próxima do ódio, do racismo e da destruição do outro.

No texto de 1905[5], Freud considerou o chiste, na brevidade de sua técnica e em seu ponto de vista econômico, como uma forma de veicular a agressividade e de se obter satisfação pela via do inconsciente à luz dos processos primários.

Em sua leitura do texto de Freud, Lacan irá sublinhar na técnica do chiste o que permite ao pulsional passar à palavra, assim como a agressividade que se apresenta sob a forma hostil ou obscena, onde se implica no laço social nas formas da oposição, da ostentação ou da mentira[6].

Em “As formações do Inconsciente”[7] – onde sustenta o axioma “o inconsciente se estrutura como linguagem” – Lacan irá sublinhar a técnica do chiste ao apresentar os efeitos de criação e sentido que advém das clássicas “estruturas freudianas do espírito”, formações em que a satisfação obtida resulta no riso – do chiste, do cômico e nas várias formas de humor – sempre referendadas pelo Outro. Um combate entre dois lugares opostos a sustentar o lugar do Outro e o laço social, “pois só existe tirada espirituosa particularizada – não há tirada espirituosa no espaço abstrato”[8]. O chiste permite ao sujeito fazer passar um real pulsional, no qual se pode passar à palavra e se pode rir.

Lacan apontará fenômenos em que a autoridade questionada pelos discursos da ciência e do capitalismo fazem surgir a inconsistência do Outro, e paralelamente o retorno de figuras que buscam sustentar o Outro, tais como a ultradireita ou o triunfo da religião, “o que faz com que a universalização não possa senão engendrar a segregação”[9].

Por outro lado, Miller aponta o retorno no real do Outro completo, consistente, e que produz uma virada da agressividade ao ódio. “Há uma consistência desta agressividade que merece o nome de ódio e que aponta o real no Outro”[10]. Aqui não se trata da lógica da consistência do Outro, mas a lógica do UM e o real da pulsão. Não há dois lugares, há o Um sozinho e não há o Outro deste Um e é aí que se produzem os fenômenos mais violentos, tais como os do terrorismo fundamentalista. Só há um lugar e o que não responde a este lugar, deverá ser eliminado. Assinala-se ao sujeito, o que no saber não alcança dialetizar: o gozo.

Miller em “O Outro sem o Outro”[11] observa que, no grafo do desejo, estão ligadas a ordem simbólica da qual o Nome do Pai é suporte de um lado, e por outro lado, a via metonímica do desejo e a inconsistência do Outro S(Ⱥ). Ou seja, não há uma metáfora que fará surgir uma significação definitiva. Mais ainda, nos indica a estrutura fantasmática por meio da qual os efeitos de uma perda inauguram uma modalidade de relação do sujeito com o objeto colocando em cena o desejo e o gozo. Se trata aqui de saber e de gozo.

Mas será no Seminário 20[12] que uma mudança se dá do Lacan clássico do “inconsciente estruturado como uma linguagem” à linguagem que passa a alcançar um novo estatuto de aparelho de gozo, ordenando o gozo, presentificando um gozo que não se presta ao jogo subjetivo. A partir deste Seminário, o trabalho analítico supõe a materialidade da pulsão: a dimensão do real do gozo. A clínica deixa de ser uma elaboração de saber sobre o sintoma e passa a ser as soluções que o sujeito inventa sobre o real do gozo.

Finalmente, no Seminário 22: RSI, o ponto de partida é o de que o efeito próprio do simbólico é o efeito de gozo, sendo o efeito de sentido remetido ao imaginário. O efeito próprio do simbólico é o gozo, o efeito de sentido é imaginário e o sem sentido é o real, ou seja, a não relação sexual.

Ao escrever a psicogênese do chiste, Miller[13] retoma o Seminário 20 e indica o que estava já em Freud: a intensão do chiste é a de produzir prazer! Dará destaque ao primeiro nível do chiste no prazer obtido pelo falante que se satisfaz no blábláblá, onde Lacan pôde finalmente colocar que o significante trabalha para o gozo. Gozo que não se liga ao sentido, satisfação justo alcançada na assonância e no sem sentido, efeito da liberação das restrições impostas pela linguagem.

O chiste, ao levantar a repressão, produz o que Miller chama de ruptura da causalidade e faz somar ao jogo do significante a força da pulsão. Nesta satisfação que prescinde do sentido, não há gasto psíquico, diferentemente da vertente pulsional do chiste que teve de vencer os obstáculos das inibições e do recalque. Do paradoxal do sem sentido a uma revelação fugaz e surpreendente.

Ao prazer do significante puro se acrescenta um plus da pulsão, efeito multiplicador da pulsão, reabrindo um acesso ao primário do gozo. Será aqui que Miller situará a interpretação do analista como um enunciado que pertence à família dos enunciados do chiste pulsional, uma variante do chiste pulsional que permite pequenas intervenções obterem grandes efeitos.

Esta é a questão que se mantém: como interpretar, produzir efeitos no gozo intraduzível, fora da gramática e da sintaxe, ainda pela palavra, pela linguagem e seus equívocos?

 


[1] Teoria do Caos. Título de um artigo escrito pelo matemático meteorologista –   Eduard Lorenz escrito em 1972.
[2] MILLER, J. A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós. 2012 p.372. (Tradução livre).
[3] MILLER, J. A. “O retorno da Blasfêmia”. In: Correio 77Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo. Outubro 2015, p. 57. (Tradução livre).
[4] Ibid. p. 57.
[5] FREUD, S O chiste e suas relações com o Inconsciente. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standart Brasileira, Vol. VIII. Imago.
[6] LACAN, J. “A agressividade na Psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[7] LACAN, J. “As estruturas freudianas do Espírito”. In: O seminário Livro 5: As formações do Inconsciente” (1956-57). Rio de Janeiro: Zahar Ed, 1995.
[8] Ibid, p. 12.
[9] LACAN, J. (1973) “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
[10] MILLER, J. A. “Racismo”. In: Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011 p.53. (Tradução livre).
[11] MILLER, J. A. Texto apresentado no encerramento do XI Congresso da New Lacanian School em Atenas. Diretoria na Rede, Orientação lacaniana, nov. 2013.
[12] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
[13] MILLER, J. A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012.
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