Bianca Dias[*] Diante das imagens de horror que nos são arremessadas cotidianamente desde o início…
5 CENTÍMETROS POR SEGUNDO
Niraldo de Oliveira Santos – EBP/AMP
A Comissão de Biblioteca da Escola Brasileira de Psicanálise, Seção São Paulo, determinada a manter palpitante nossa relação com os livros em tempos de isolamento social decorrente do Covid-19, lançou a tarefa de escolhermos um texto e comentá-lo a partir do momento atual. Prontamente, escolhi o texto “Transitoriedade” (Freud, 1916), inserido no volume “Arte, literatura e os artistas”, da editora Autêntica[1].
Trata-se de um pequeno texto no qual Freud descreve um passeio “em meio a uma florescente paisagem de verão”, na companhia de um conhecido poeta e de um amigo. Hoje sabemos que se tratava do poeta Rainer Maria Rilke, e que o amigo “taciturno” era, na verdade, Lou Andreas Salomé, a companheira de Rilke, que tempos depois se tornou psicanalista. Este acontecimento se dá em agosto de 1913, um ano antes da eclosão da primeira guerra mundial.
Chama a atenção de Freud o fato de o poeta admirar a beleza da natureza ao redor, sem poder retirar satisfação disso. Perturbava-o a ideia da efemeridade daquela beleza, destinada a desaparecer com a chegada do inverno, “assim como toda beleza humana e tudo o que é belo e nobre que o homem criou e poderia criar”. O que desanimava o poeta era o destino determinante da transitoriedade.
Freud aponta dois movimentos psíquicos diante de tal circunstância: um doloroso fastio diante do mundo e a rebelião contra a realidade existente. Para ele, “a exigência de eternidade deve claramente ser um êxito da nossa vida desejante”. Apesar da transitoriedade em geral ser um fato, Freud contesta o poeta pessimista, que desvaloriza o belo pela sua condição transitória: “A limitação das possibilidades de fruição eleva sua preciosidade”; e acrescenta: “Se existe uma flor que brota apenas uma única noite, então seu florescimento nos parece não menos vistoso, suntuoso”.
Estamos no mês de abril. É primavera no hemisfério norte e, no Japão, um fenômeno transitório é vivido em toda a sua plenitude: o tempo de apreciar as flores das cerejeiras, chamadas de sakura. De um rosa pálido, frágeis e de vida curta, as sakura tornaram-se um símbolo do Japão. Os japoneses divulgam, a cada ano, o dia e a hora exata para cada região do país em que ocorre o ápice da floração das cerejeiras. Na cidade de Kyoto, o ritual de visitar as flores do monte Yoshino, coberto por mil pés de cerejeiras, é repetido anualmente desde o século VIII[2]. Em regiões de muita neve, as árvores chegam a ser protegidas no inverno por uma espécie de capa em forma de cone feita de palha, para evitar que os galhos se quebrem com o peso da neve. Eles não são apenas apaixonados pela beleza emanada, mas também pelo que o hanami[3] representa. É precisamente porque as flores delicadas murcham e caem fácil e rapidamente que são tão amadas. É uma noção chamada mono no aware, algo como uma “agridoce consciência da impermanência das coisas”[4]. Crença de que essa impermanência precisa ser valorizada e não lamentada.
A enorme quantidade de cerejeiras plantadas no Japão atesta esse amor – são igualmente belas as árvores de ume, um tipo de ameixa japonesa, que florescem no mesmo período. Quando as cerejeiras florescem, as pessoas param de olhar para baixo e olham constantemente para cima; os trabalhadores, normalmente com pressa, param para tirar uma foto. As flores de cerejeira também desaparecem com encanto – primeiro com as flores chovendo lentamente no ar, ou como apresentado de modo poético em um filme de anime “as flores de cerejeira caem a uma velocidade de 5 centímetros por segundo[5]“. O estágio final das sakura termina com tapetes rosáceos nas ruas e a superfícies das águas cobertas com mantas igualmente em cor-de-rosa, que fluem levando as pétalas. Luto que se repete?
Freud, em seu texto, mostra-nos o quanto uma interferência afetiva pode perturbar o julgamento diante do belo, como aconteceu com seu amigo poeta, e atribui isso a uma “revolta psíquica contra o luto”, que desvaloriza a fruição do que é belo. De acordo com Freud, ao final do luto, quando os objetos nos quais investimos nossa libido são destruídos ou perdidos, nossa capacidade de amor (libido) é liberada novamente. Mas, para isso, o tempo de elaboração é um fator fundamental para que seja possível substituirmos esses objetos por outros, não sem dor: “Vemos que a libido se prende aos seus objetos e também não quer desistir dos perdidos, mesmo quando já preparou o substituto. Eis aí o luto”. Nos dias atuais, em alguma medida, estamos em luto. Alguns dentre nós temos a clareza de que (já) perdemos a liberdade de ir e vir; outros, nem tanto.
A efêmera floração das cerejeiras – que têm seu retorno, pontualmente, a cada início da primavera – é um fenômeno da natureza que segue suas leis. E quanto ao Covid-19, que ainda não nos parece transitório, trata-se de um real sem lei? Para Bassols[6], “o real do ser falante, (…) seguindo o último ensino de Lacan, é um real sem lei”. Já o Covid-19, “este segue uma lei implacável, ele segue a lei da natureza que é preciso saber decifrar para enfrentá-lo”. Para tanto, afirma Bassols, há um real do tempo que é decisivo para que isto se dê.
Antes de encerrar seu texto otimista a respeito da transitoriedade, Freud nos lembra que, apesar de nossa libido ficar empobrecida em relação aos objetos em algumas circunstâncias, ela ocupa com tanta intensidade o que ficou em nós, permitindo que “(…) o carinho por quem é próximo e o orgulho pelo que temos em comum subitamente se fortaleçam”. E acrescenta: “(…) pois ainda somos jovens e cheios de vida para substituir os objetos perdidos por novos objetos possíveis, preciosos ou mais preciosos ainda”.
Para concluir, vejamos o que diz Lacan em uma aula dada quando do seu retorno do Japão – uma viagem que lhe trouxe “algumas experiências”: “O desejo, com efeito, é o fundo essencial, o objetivo, a meta e também a prática de tudo que se anuncia aqui, neste ensino, acerca da mensagem freudiana”[7]. Podemos dizer, com Freud e com Lacan, que sim, somos jovens, o desejo rejuvenesce e há muitas coisas que desejamos que, assim como as sakura, sejam transitórias.