Kátia Ribeiro Nadeau - Associada da CLIPP “Minha alma tem o peso da luz. Tem o…
#Ecos de quarta – “O Analista e o Mestre – Uma questão de Política … e de Ética”
Por Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
“Só existe isso, o laço social” foi o título extraído de uma fala de Lacan no Seminário XX por Cristiane Alberti, nossa convidada para as Jornadas[1]. No texto [2], a autora aborda a ação dos psicanalistas da ECF no debate público que envolveu as últimas eleições presidenciais na França, e levou Miller a teorizar a “escola sujeito” [3]. Sem discutir programas e política partidária, o que mobilizou a entrada dos psicanalistas franceses no debate foi o ponto de vista ético: a discussão girou em torno das condições concretas e práticas acarretadas pela possível eleição de um presidente com um ideário de extrema direita, o que redunda necessariamente em limitação das liberdades civis.
Alberti cita Hegel que, nos “Princípios da Filosofia do Direito” [4] afirma que o Estado é a realidade em ato da ideia moral objetiva, ou seja, o “Espírito”, a civilização se revela no Estado, realizando o que sabe e porque sabe, isto é, ao falar de ideia moral objetiva é de ética que se fala, deste significante tão caro à Psicanálise. A situação das eleições na França chamou cada cidadão à responsabilidade (como em qualquer estado de direito), pois se tratava de construir uma opinião esclarecida, e diante de tal situação, o posicionamento público fez-se necessário.
Os psicanalistas encaram o recalque em seu cotidiano no enfrentamento da inclinação natural para olvidar o passado, e isto os fez lutar contra o esquecimento e o obscurantismo da sociedade, em relação às propostas de um candidato de extrema direita. Tal luta encarou o populismo que, ao colocar os outros partidos políticos como ilegítimos e corrompidos acabam por excluí-los, excluindo também parte do povo ao levantar a suspeita de que esta parcela não pertence à humanidade. Esta situação destrói qualquer possibilidade de oposição e diálogo, essencial ao andamento do estado de direito.
Opondo-se ao populismo da extrema direita, os psicanalistas franceses entraram no debate na defesa de um estado assimilado ao direito e à lei, obras humanas em constante movimento, mutantes ao sabor do tempo que incide sobre as civilizações. Tais obras não pertencem a ninguém em particular, mas a todos os cidadãos; e o estado de direito é uma instituição por e para os indivíduos.
No caso não se tratava apenas de defender as liberdades civis, o que permite a prática da psicanálise, mas também de fazer da psicanálise o campo de um exercício mais amplo do que aquele da solidão dos consultórios, campo para o exercício do analista cidadão, como cunhou Eric Laurent.
As discussões trouxeram à luz aquilo que é patente: com sua emergência a psicanálise mudou o mundo, e os psicanalistas não podem ignorar tal coisa por fazerem parte desta mudança. Lembrando Lacan, aquele que não estiver imbuído do espírito de seu tempo, que abandone a psicanálise.
A partir da experiência de uma análise pode-se apostar nos recursos dos discursos, “o laço entre os que falam” e Lacan sublinha que “só existe isso, o laço social” [5] a manter juntos os corpos, enquanto que ao contrário, o puro gozo (que é solitário) gera a segregação.
A experiência da análise distancia o sujeito das identificações de massa, considerando, no entanto, as múltiplas escolhas do desejo ou do gozo. A psicanálise quer o político e isso porque, na experiência analítica, chega-se ao ponto em que o Outro não existe, momento no qual os recursos simbólicos empalidecem. Atingido tal ponto, tem-se um retorno ao laço social com o Outro, na invenção de um Outro.
Os psicanalistas sabem disso por sua experiência, o que os leva à responsabilidade no contexto de diluição de um laço social que se valia da metáfora paterna e do falocentrismo, num modelo verticalizado de sociedade. Tal laço, baseado na autoridade do pai, não desapareceu totalmente, mas o esgarçamento da metáfora paterna e o rearranjo do falocentrismo na atualidade em tempo de (des)conexões leva à percepção do surgimento de novas parcerias as quais os psicanalistas não podem deixar de encarar. Estamos falando das novas formas de amor e sexo que surgem a cada passo em nosso caminhar atual.
A prática psicanalítica deve contribuir para o exercício de um discurso do mestre “um pouco menos idiota”, como disse Lacan na Conferência de Milão em 12 de maio de 1972 [6]. O discurso do analista, enquanto avesso do discurso do mestre, pode atuar sobre este, tentar fazer com que “seja um pouco menos idiota”, ou seja, que não espalhe a segregação com suas sentenças fechadas, ou com o tudo-saber do discurso universitário, o mestre moderno, que produz sujeitos divididos e angustiados, em constante busca, obedientes ao consumo, fascinados pelos S1s da avaliação e do cientificismo.
Uma análise não leva do pai (père) ao pior (pire), ao contrário do que presentifica um regime ditatorial. O desejo de saber que uma análise permite e provoca, na transmutação do amor ao saber, é essencial para os tempos atuais, para a civilização que a cada momento recebe novos sopros.