BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
‘VERDADES’ INTERCAMBIÁVEIS
Teresinha Natal Meirelles do Prado
Membro da EBP/AMP
Um fenômeno cada vez mais evidente na atualidade é o papel das redes sociais na vida dos seres humanos, algo que se intensificou ainda mais com a pandemia. Contudo, enquanto nos deliciamos com posts anódinos de belas paisagens, comidas apetitosas, bichinhos e bebês bonitinhos, todo um mercado se realiza, cujos produtos nem sempre estão claros, talvez porque, no final das contas, em parte, os produtos sejamos nós, através dos dados que fornecemos sem saber.
Quem assistiu ao documentário da Netflix lançado em 2019: “Privacidade hackeada”, certamente se perguntou, em algum momento do filme, se aquilo era mesmo um documentário ou se se tratava de uma obra de ficção-científica, algo do estilo Matrix, este declaradamente ficcional, mas que nos confrontava com a incômoda sensação de que havia algo de verdadeiro no que víamos ali. Em Matrix, a atmosfera é de sonho, os seres humanos são objetos de uma intervenção que, através do coma induzido, criava uma realidade paralela em que os seres humanos, manipulados, realizavam estritamente o que estava previsto para sua pífia existência. O documentário sobre o uso dos algoritmos nos faz sentir objetos de um panóptico universal sem precisar do coma induzido.
O filme acompanha parte do processo que um americano, David Carrol, moveu na Inglaterra contra a empresa Cambridge Analytica (CA), para exigir que fornecessem os dados que foram coletados de seu perfil nas redes sociais. Sua intenção era, a partir disso, entender como atuava essa empresa que possuía ‘braços’ em diversos continentes a fim de escapar da legislação de cada país. O desenrolar do processo mostrou a complexidade dessa empresa e do que ela fazia, paralelamente às investigações de uma jornalista do jornal The Guardian, Carole Cadwalladr, que localizou duas figuras importantes nesse processo, que revelaram à imprensa e à justiça os bastidores de sua ação e o que era comercializado.
A CA se definia como uma “empresa de mudança de comportamento”, o “Santo graal das comunicações”[1], associando Big data a testes de personalidade a fim de obter as melhores técnicas de persuasão (ao estilo “os fins justificam os meios”), utilizando-se dos dados obtidos nas redes sociais (majoritariamente no Facebook, de quem eram clientes comerciais e em troca tinham acesso aos dados, com o consentimento desta outra empresa) a partir das interações de cada perfil, e em seguida de todos os seus contatos, constituindo um banco de dados cuja magnitude é incalculável. Esses dados eram utilizados conforme os interesses dos clientes que os contratavam, em especial políticos interessados em se servir das redes sociais para suas campanhas. As táticas da CA eram tão agressivas e eficazes, que o sucesso era garantido. O slogan de seu vice-presidente e um de seus fundadores era: “Se você quiser mudar uma sociedade, deve primeiro destruí-la”[2]. Em seu material de divulgação, a empresa informava sua atuação bem-sucedida em mais de 200 eleições espalhadas pelo globo terrestre. Um dos cases em seu material de divulgação foram as eleições em Trinidad-Tobago, em que havia uma polarização entre cidadãos de origem indiana e caribenhos. Contratados pela candidata cuja eleição sua atuação garantiu, CA realizou um mapeamento dos perfis dos jovens desse país, definindo seu alvo: visavam os jovens, com uma campanha que deveria se mostrar como apolítica, pois os dados mostravam que a maioria dos jovens não ligava para política; tinha que ser incendiária e contagiosa, pois esse público era, segundo a empresa, preguiçoso. Então criaram a campanha: “Faça parte da nossa turma, faça parte do movimento”. Utilizaram um símbolo conhecido de todos, a saudação da resistência naquele país (ao que parece, essa etapa do slogan e da apropriação de um símbolo nacional é um elemento estratégico nessas ações) e intitularam a campanha: “Do so” (não votarei). A difusão foi massiva; a aposta era que os jovens caribenhos não votariam, ao passo que os indianos, apegados às tradições familiares, obedeceriam a seus pais. O resultado foi gritante: uma diferença de 40% na faixa etária entre 18-35 anos, fazendo oscilar em 6% os resultados anteriormente estimados, o que garantiu a vitória de sua cliente. Outras campanhas vitoriosas para seus clientes foram as de Trump, do Brexit, as eleições da Argentina em 2015, e quiçá as eleições de 2018 no Brasil… Na França, em algum momento, o dado aparece no filme quando Kaiser afirma, durante o julgamento, que se recusou a participar das tratativas da campanha de Marine Le Pen, e essa candidata não chegou a vencer as eleições. Seus clientes eram normalmente candidatos de extrema-direita, dispostos a ultrapassar qualquer barreira ética para atingir seus objetivos.
Uma reflexão inquietante é feita pela jornalista do Guardian: A CA foi dissolvida por seus sócios, muito provavelmente para eliminar provas contra sua atuação ilícita, mas sua lógica de funcionamento não acabou. Podemos ver que governos totalitários estão em ascensão e utilizam essa tecnologia para difundir ódio e medo através do Facebook. Cita como exemplo o Brasil: “(…) esse extremista de direita que foi eleito, e sabemos que o WhatsApp, que faz parte do Facebook, estava claramente implicado na divulgação de fake news lá. (…) É sobre incutir medo e ódio para dominar um país, dividir e conquistar. (…) Essas plataformas que foram criadas para nos conectar, agora são usadas como armas. E é impossível saber o que é o quê, pois está acontecendo nas mesmas plataformas em que nos comunicamos com amigos ou compartilhamos fotos de bebês. Nada é o que parece ser… Depois disso, ainda é possível termos eleições livres e justas?”[3].
É deste modo que as redes sociais, em especial o Facebook, aponta o documentário, exploram a audiência emotiva, especialmente o medo e a raiva, em seguida vendem esses dados para terceiros. Com isto se constitui um imenso mercado de consumo, e quem conseguir dominá-lo, será hegemônico.
Brittany Kaiser, que trabalhou por anos nesse conglomerado, foi uma figura-chave no rastreio das ações dessa empresa. E mais: ela desvela um processo irreversível, em que se evidencia uma nova ordem mundial, regida pela força do mercado de consumo: os dados que cada cidadão fornece voluntariamente, sem saber que usos espúrios podem ser feitos deles. Kaiser destaca que este é o bem mais valioso no planeta atualmente, vale mais do que ouro, e é utilizado como instrumento de guerra, uma guerra da comunicação, exatamente como os PSYOPS[4] dos militares.
Os dados coletados[5] eram divididos em três âmbitos: factual (dados demográficos, geográficos, socioeconômicos); atitudinal (reações a postagens, dados de consumo, dados de estilo de vida e padrões de compra, tipos de engajamento cívico, político e a emissão de opiniões nas redes) e de personalidade (dados obtidos por testes que os usuários preenchiam nas próprias redes, sem saber que seriam utilizados para outros fins), bem como suas reações a diferentes tipos de persuasão (se eram tocados pelo medo, pela pressão social, pelo sentimento de autoridade, de escassez ou reciprocidade). A partir dessas informações, que chegavam a reunir 5000 pontos de dados de cada usuário (conforme divulgação da própria CA), formulavam-se estratégias de convencimento que fundamentariam as campanhas personalizadas e massivas, como a do exemplo acima. A partir de então, concentravam forças naqueles que podiam mudar de ideia, até que eles vissem o mundo da forma como a CA queria. No caso da campanha presidencial dos EUA, por exemplo, a empresa utilizava os dados mapeados para orientar uma publicidade particularizada, colocando o usuário em contato com posts que tocavam exatamente nos pontos sensíveis de seus temores e aspirações para aplicá-los às figuras de Hillary e Trump, manipulando o modo como viam cada um dos políticos. A estratégia era encontrar os pontos vulneráveis nesses indecisos e bombardeá-los com posts persuasivos que não tinham nenhum compromisso com princípios éticos ou fidedignidade. Eram táticas de mercado, e suas estratégias eram os meios para obter a meta contratada com o cliente.
Este caso da CA ilustra muito bem o que em 1970 Lacan descreveu sobre o discurso capitalista, que deriva de uma mutação em que o lugar de agente passa a ser ocupado pelo $, e o lugar da verdade pelos S1, que se pluralizam, assim como o produto, os objetos a, objetos descartáveis, são oferecidos pelo mercado com a promessa de complementaridade e gozo, que se torna um imperativo insaciável, aumentando, em vez de arrefecer o mal-estar na civilização. Lacan nomeia o novo mestre nesse discurso: o capitalista, que com o auxílio do discurso universitário estabelece os fundamentos para um consumo ‘orientado’ pela ciência. O tipo de comércio exercido pelas redes sociais consegue amalgamar esses dois discursos: o capitalista vende ao seu cliente um resultado bem-sucedido nas eleições e o universitário lança mão de técnicas de avaliação psicológica e manipulação dirigida (o termo que utilizam é ‘microdirecionamento comportamental’). E o mais intrigante que vemos nesse novo matema é que o agente desse discurso é o próprio $; é ele quem quer consumir e busca o suporte da ciência para comprar seus produtos e soluções de modo avalizado. Conforme aponta Laurent, Lacan “propôs, para o discurso capitalista, que de fato não havia ali mais nenhum significante mestre, exceto a própria vacuidade do sujeito, o culto de sua própria autenticidade, de seu desenvolvimento, de sua autorrealização e de sua autorreferência”[6]. Nesse sentido o consumidor sujeito é coautor do que o consome. Na realidade, o discurso capitalista ludibria o sujeito, fazendo-o acreditar-se agente, quando na verdade ele é comandado por uma profusão de significantes-mestre (S1) que se sucedem no lugar da verdade e servem ao imperativo do consumo.
Nesse contexto, o que são as redes sociais? Embora não sejam objetos palpáveis, são um tipo especial de gadget, na medida em que oferecem a promessa de aliviar a solidão irremediável daqueles que a elas recorrem, seja para tomar conhecimento do que se passa à sua volta, sob o crivo de seus interesses particulares (a chamada ‘bolha’), seja para sentir-se protagonista em uma história que parece seguir seu curso a despeito das idiossincrasias individuais, ou também para ‘mostrar-se ao mundo’, mostrar um sucesso e realização montados para os olhos de seus interlocutores. Através delas, muitos colocam seu fantasma a céu aberto, compartilhando-o em comunidades organizadas segundo certos modos de gozo e nas interações públicas com desconhecidos, que subitamente podem passar à categoria de ‘contatos’, sinônimo de uma ‘amizade’ virtual. As redes também oferecem ocasião para dar lugar a gozos inconfessáveis, o anteparo da tela parece destravar algumas censuras sociais, o que encoraja a ‘tirar do armário’ velhos medos e intolerâncias.
Quando Lacan construiu o discurso do capitalista a partir da mutação no discurso do mestre, ele o fez por observar o que já se delineava nos anos 70.
Podemos nos perguntar: por que essas táticas muitas vezes esdrúxulas de difusão massiva de versões construídas dos fatos funcionam tão bem? Táticas de publicidade para a manipulação das populações sempre existiram, mas não com a eficácia do manejo dos dados que orientam o tipo de artifício utilizado para cada tipo de público, tal como vemos na atualidade.
Isto também Lacan permite vislumbrar. A partir da constatação do lugar e da ação do novo mestre, o capitalista, auxiliado pelo discurso universitário, que forneceu os fundamentos para um consumo ‘orientado’ pela ciência, já na década de 70, ele identificou e previu mudanças na subjetividade que nos tempos atuais se tornaram evidentes: o que muitos autores referem como a queda dos valores e das referências, a efemeridade das relações (líquidas), a exigência de buscar felicidade a curto prazo e a ausência de projetos ou ideais de futuro, está relacionado à pluralização dos Nomes-do-pai, que se enuncia no que Lacan chamou de père-versão (especialmente a partir do Seminário 21: Les non-dupes errent, título que evoca essa pluralização pelo trocadilho com Les non-dupes errent, os não-tolos sendo os ‘tolos do pai’, sem o que seu destino é a errância), que desmistifica a ideia de perversão ao associá-la ao pai, destacando que o que nomeia não é a autoridade do pai simbólico, mas uma operação meio capenga, que permite que o sujeito tenha acesso à lógica fálica e à posição de falante pelo modo particular como o pai real (que não se trata aqui do pai da horda primitiva, mas daquele que toma uma mulher como objeto causa de seu desejo e faz dela seu sintoma), ocupando o que seria uma posição de exceção, que parece remeter ao fato de servir de conector para que ela “se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele”[7]. Isto também aparece no Seminário 20, em que Lacan discute os fundamentos e decorrências do famoso enunciado “não há relação sexual”, em que afirma que “o ato de amor é a perversão polimorfa do macho”[8]. Em 1975, Lacan é bastante claro ao associar a perversão paterna ao que é necessário para que um pai possa fazer sua função[9], e evoca o fato de que um pai deve falhar em ocupar essa função, caso contrário, como no exemplo de Schreber, é o que conduz ao pior: “nada é pior do que o pai que profere a lei sobre tudo”[10].
A partir dos anos 70, é possível evidenciar no ensino de Lacan as relações entre a ascensão do discurso capitalista, a pluralização dos nomes-do-pai, a noção de père-versão e o imperativo de gozo nas sociedades contemporâneas, uma vez que essa ‘versão do pai’ descrita por ele se orienta pelo gozo e não propriamente pelo desejo. Sendo assim, a leitura dos fenômenos de massa a partir do traço de identificação ligado ao ideal já não é suficiente, temos que levar em conta as comunidades de gozo e o mais-de-gozar que circula e se oculta em suas manifestações.
Se o que sustenta o ‘pacto social’ não é mais a interdição, sob os auspícios do NP, e com sua queda a ideia de uma verdade indiscutível também caiu por terra, tal como vemos justamente nos usos que os discursos de extrema-direita fazem disso (por exemplo, ao afirmar, como uma verdade, que Hitler era de esquerda, sob a alegação do nome de seu partido, ‘Nacional-socialista’, ou como em um post recente de um integrante de um movimento intitulado ‘gays com Bolsonaro’, que afirma ter derrubado a ‘narrativa’ dos movimentos LGBT, que ele acusa de homofobia…), caímos em um relativismo desbussolado, em que a ‘narrativa’ de cada um é sua ‘verdade’ e podem haver ‘verdades’ incompatíveis que reivindicam igualmente o estatuto de verdades… Isto justifica, por exemplo, a situação polêmica da americana que se declarou negra nos EUA, sem nenhum fundamento genético que justificasse essa afirmação.
Se basta declarar-se para ser, a verdade se torna o equivalente da fala de cada um…