BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
UMA VERDADE VARIÁVEL
Maria de Lourdes Mattos
Membro da EBP e da AMP
Inicialmente quero destacar a atualidade do tema das XI Jornadas da EBP-SP[1], tanto do ponto de vista clínico como político, dado que vivemos num tempo de falsas verdades.
A atual presidente da AMP Christiane Alberti, em intervenção no evento de permutação da diretoria do Bureau da FAPOL[2], trouxe contribuições importantes ao nosso tema.
Para Alberti, a civilização está passando por uma mudança radical, onde o corpo se destaca aparecendo separado da palavra sem a mediação do desejo do Outro, tomando como exemplo, o autismo: “É um corpo paradoxalmente reduzido ao silêncio”, em que o segredo de seu triunfo pode ser expresso em: “sei o que sou, sei o que quero”[3].
Nesse corpo separado da fala, a dimensão subjetiva não aparece, o que favorece os movimentos de extrema direita, que ao apoiar-se no fato de que a verdade tem estrutura de ficção, espalham falsas notícias como estratégia para capturar as massas. O caso brasileiro é exemplar nesse aspecto!
Segundo Alberti, na contemporaneidade, as normas plurais estão tomando o lugar da interpretação, o que traz dificuldades para a psicanálise, que é uma experiência de verdade, em que o sujeito sempre diz mais do que sabe, dando lugar à interpretação. O saber do analisando esconde uma verdade.
Encontramos ao longo do ensino de Lacan muitas citações antecipatórias dos maus tempos atuais. Em 1974[4], em uma clara referência ao discurso capitalista considerou, “cada indivíduo é um proletário, (…) não há nenhum discurso com o qual fazer laço social, dito de outro modo, semblante.” Na ausência do laço social o sujeito fica na posição de objeto dejeto. Desamparo, abandono, fome, violência e segregação são alguns dos significantes que marcam nossa época.
Segundo Lacan[5], o futuro da psicanálise depende do real e do sintoma e, se ela tiver sucesso, não terá mais do que se ocupar, cairá no esquecimento. Por isso, é necessário que ela fracasse e ocupe seu lugar na nova desordem mundial, contribuindo para contrariar o real. Lacan não desconsiderou a importância da psicanálise no sentido da diminuição do mal-estar. Em outro momento, localizado no primeiro ensino, referiu[6] que o caminho para o sujeito apaziguar seu sofrimento é da ordem da verdade.
A psicanálise, diferente dos outros discursos, é um laço a dois, que vem suprir a falta de relação sexual, cuja particularidade está relacionada à verdade da estrutura do discurso[7].
De acordo com Miller[8], enquanto os outros discursos tomam uma verdade como universal, o discurso analítico toma a verdade como variável, dado que o objeto a, estando no lugar de agente, é um semblante de verdade.
O que se descobre em uma análise é da ordem de uma verdade anterior ao saber. O analista opera com a verdade recalcada, foracluída do saber, advinda a partir das formações do inconsciente[9].
O saber se produz à medida que a experiência avança e é no momento de sua falha, cujo efeito é de surpresa, que a verdade advém. “A surpresa tem afinidades com a verdade”. “Do lado do analisante, a surpresa se produz na falha da repetição; quando após S1 não vem S2”[10].
Do lado do analista, a série de sessões prepara o terreno para a surpresa que advém da interpretação ou do corte, a partir da irrupção da verdade do inconsciente, no momento da falha do saber[11].
Miller[12], utilizando a expressão de James Joyce, refere que o ensino de Lacan é um work in progress, onde as conclusões são transitórias. A mudança do estatuto do inconsciente para o falasser ilustra esse trabalho em curso e tem consequências importantes para a clínica.
A interpretação referenciada ao inconsciente visa a verdade recalcada, enquanto que a interpretação direcionada ao falasser visa o gozo do corpo falante, o que traz implicações para o conceito de verdade. Esta, ligada ao recalque originário, é mentirosa por natureza, sendo o gozo, aquilo que não mente[13].
A variedade da verdade, decorrente de sua estrutura de ficção, culmina na generalização da loucura. Lacan, em seu questionamento daquilo que não se ensina, buscou na pena de Freud, tal generalização: “Freud considerou que nada é apenas sonho, e que todo mundo é louco, ou seja, delirante”[14].
Miller[15] refere que a frase “todo mundo é louco” é uma orientação sem segregação, no sentido que não tem uma referência determinada, como por exemplo, o Nome-do-Pai. É uma orientação que remete a um lugar de gozo, anterior a inscrição de um sujeito do significante.
Por mais paradoxal que seja, a tese do universal do delírio é uma tese que exclui o universal, não tendo como propósito a dominação, a organização do mundo. O discurso analítico tem como referência o particular, o singular, a verdade variável do falasser.