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UMA VERDADE VARIÁVEL

Maria de Lourdes Mattos
Membro da EBP e da AMP
Imagem – Instagram: @mam.rio
Imagem – Instagram: @mam.rio

Inicialmente quero destacar a atualidade do tema das XI Jornadas da EBP-SP[1], tanto do ponto de vista clínico como político, dado que vivemos num tempo de falsas verdades.

A atual presidente da AMP Christiane Alberti, em intervenção no evento de permutação da diretoria do Bureau da FAPOL[2], trouxe contribuições importantes ao nosso tema.

Para Alberti, a civilização está passando por uma mudança radical, onde o corpo se destaca aparecendo separado da palavra sem a mediação do desejo do Outro, tomando como exemplo, o autismo: “É um corpo paradoxalmente reduzido ao silêncio”, em que o segredo de seu triunfo pode ser expresso em: “sei o que sou, sei o que quero”[3].

Nesse corpo separado da fala, a dimensão subjetiva não aparece, o que favorece os movimentos de extrema direita, que ao apoiar-se no fato de que a verdade tem estrutura de ficção, espalham falsas notícias como estratégia para capturar as massas. O caso brasileiro é exemplar nesse aspecto!

Segundo Alberti, na contemporaneidade, as normas plurais estão tomando o lugar da interpretação, o que traz dificuldades para a psicanálise, que é uma experiência de verdade, em que o sujeito sempre diz mais do que sabe, dando lugar à interpretação. O saber do analisando esconde uma verdade.

Encontramos ao longo do ensino de Lacan muitas citações antecipatórias dos maus tempos atuais. Em 1974[4], em uma clara referência ao discurso capitalista considerou, “cada indivíduo é um proletário, (…) não há nenhum discurso com o qual fazer laço social, dito de outro modo, semblante.” Na ausência do laço social o sujeito fica na posição de objeto dejeto. Desamparo, abandono, fome, violência e segregação são alguns dos significantes que marcam nossa época.

Segundo Lacan[5], o futuro da psicanálise depende do real e do sintoma e, se ela tiver sucesso, não terá mais do que se ocupar, cairá no esquecimento. Por isso, é necessário que ela fracasse e ocupe seu lugar na nova desordem mundial, contribuindo para contrariar o real. Lacan não desconsiderou a importância da psicanálise no sentido da diminuição do mal-estar. Em outro momento, localizado no primeiro ensino, referiu[6] que o caminho para o sujeito apaziguar seu sofrimento é da ordem da verdade.

A psicanálise, diferente dos outros discursos, é um laço a dois, que vem suprir a falta de relação sexual, cuja particularidade está relacionada à verdade da estrutura do discurso[7].

De acordo com Miller[8], enquanto os outros discursos tomam uma verdade como universal, o discurso analítico toma a verdade como variável, dado que o objeto a, estando no lugar de agente, é um semblante de verdade.

O que se descobre em uma análise é da ordem de uma verdade anterior ao saber. O analista opera com a verdade recalcada, foracluída do saber, advinda a partir das formações do inconsciente[9].

O saber se produz à medida que a experiência avança e é no momento de sua falha, cujo efeito é de surpresa, que a verdade advém. “A surpresa tem afinidades com a verdade”. “Do lado do analisante, a surpresa se produz na falha da repetição; quando após S1 não vem S2[10].

Do lado do analista, a série de sessões prepara o terreno para a surpresa que advém da interpretação ou do corte, a partir da irrupção da verdade do inconsciente, no momento da falha do saber[11].

Miller[12], utilizando a expressão de James Joyce, refere que o ensino de Lacan é um work in progress, onde as conclusões são transitórias. A mudança do estatuto do inconsciente para o falasser ilustra esse trabalho em curso e tem consequências importantes para a clínica.

A interpretação referenciada ao inconsciente visa a verdade recalcada, enquanto que a interpretação direcionada ao falasser visa o gozo do corpo falante, o que traz implicações para o conceito de verdade. Esta, ligada ao recalque originário, é mentirosa por natureza, sendo o gozo, aquilo que não mente[13].

A variedade da verdade, decorrente de sua estrutura de ficção, culmina na generalização da loucura. Lacan, em seu questionamento daquilo que não se ensina, buscou na pena de Freud, tal generalização: “Freud considerou que nada é apenas sonho, e que todo mundo é louco, ou seja, delirante”[14].

Miller[15] refere que a frase “todo mundo é louco” é uma orientação sem segregação, no sentido que não tem uma referência determinada, como por exemplo, o Nome-do-Pai. É uma orientação que remete a um lugar de gozo, anterior a inscrição de um sujeito do significante.

Por mais paradoxal que seja, a tese do universal do delírio é uma tese que exclui o universal, não tendo como propósito a dominação, a organização do mundo. O discurso analítico tem como referência o particular, o singular, a verdade variável do falasser.


[1] Ⱥ Verdade e o gozo que não mente.
[2] O evento ocorreu em 25 de julho de 2022, na sede da EOL, tendo como título “La libertad de la palabra”, no qual Alberti apresentou o trabalho que teve como título: “Liberdade de expressão. A verdade é amável?”. In: www.fapol.org
[3] idem
[4] LACAN, J. “A terceira”. In: Opção Lacaniana, São Paulo, n.62, dez. 2011, p. 19.
[5] Idem, p. 18.
[6] LACAN, J. “As chaves da psicanálise”. In: Opção Lacaniana, São Paulo, n.84, P.18.
[7] _______ .  “A terceira”, p. 19.
[8] MILLER, JÁ. “Brújula de la última enseñanza”. In:  Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015, p. 324 -27.
[9] ________. “A ‘formação’ do analista” In: Opção Lacaniana, São Paulo, n.37. p.  9, 10.
[10] BRODSKY, G. “O princípio da imprevisibilidade”. In: Opção Lacaniana, São Paulo, n. 37, p. 43, 44.
[11] Idem, p. 44.
[12] MILLER, J-A. “Cada uno em su mundo.” In: Todo mundo é louco, p. 332
[13] __________. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O corpo falante – sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 32.
[14] LACAN, J. “Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes!”. In: Correio, São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, 2010, p. 31.
[15] MILLER, J-A. “Brújula de la última enseñanza” In: Op.cit, p. 315-329.
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