Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
Uma leitura de “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”
Heloisa Prado Telles (EBP/AMP)
“Empreitada de longo prazo que requer o conhecimento
profundo da ordem que se trata de arruinar, de derrubar”[1].
Qual a subversão anunciada por Lacan neste seu texto de 1960? Certamente a freudiana, a qual tratará de definir nesta comunicação proferida em um Congresso sobre a Dialética, em Royaumont, organizado por Jean Wahl, filósofo francês notabilizado por seus estudos de Hegel.
A leitura, porém, instigou a localizar o que era menos evidente: formulações de Lacan que anunciassem pontos de virada ou mesmo subversões em relação ao seu próprio ensino. O sujeito como efeito da articulação significante e o lugar do Outro são teses fortemente aqui afirmadas[2], e estão construídas de maneira tal que nos permitem ver com clareza um work in progress que Lacan imprime em seu escrito. Destacam-se: a lógica hegeliana para elucidar o que está em jogo no inconsciente freudiano e ao mesmo tempo os limites desta lógica revelados pela experiência analítica; a tentativa de Lacan de articular o sujeito ao Outro por meio da pulsão, fazendo desta uma cadeia significante; e as formulações acerca do gozo: mediado pelo complexo de castração e com uma significação, atribuída pelo falo, o gozo pode entrar na dialética analítica[3].
No entanto, uma subversão propriamente lacaniana, tal como J.-A. Miller nos ajuda a pensar, sobretudo com seu curso de 2011, poderia somente ser situada a partir do campo que se abre com as formulações acerca do inconsciente real, o novo estatuto dado ao resto da pulsão irredutível ao sentido sexual e à proposição do gozo feminino como regime do gozo como tal.
O início do ensino de Lacan geralmente é lembrado pelo fato de ele isolar o significante como causa, o significante dominando tudo o que há de significação para o sujeito[4]. Seria equivocado, no entanto, atribuirmos somente à concepção linguística do inconsciente o aporte fundamental de Lacan, uma vez que para ele estava em jogo a própria causalidade do sujeito, o sujeito inserido na relação de causalidade significante[5]. O caráter primordial da relação com o Outro, presente em suas formulações acerca do “estádio do espelho”, será determinante para o modo de entrada de Lacan na própria psicanálise, tal como nos indica Miller: “Se Lacan complementa a Freud, se ele o reformula e é, por excelência, quem retorna a Freud, deve-se ao ponto pelo qual entrou na experiência analítica”[6].
Lacan dirige-se ao público deste congresso para demonstrar “o que acontece com a questão do sujeito, tal como a psicanálise propriamente a subverte”; ou seja, é a subversão promovida por Freud que Lacan visa recuperar recorrendo, inicialmente, às referências hegelianas: “Não é à amplitude de um questionamento social que nos referimos aqui, ou seja, ao reservatório das conclusões que tivemos de tirar contra os notórios desvios, na Inglaterra e na América, da práxis que se autoriza do nome psicanálise. [….] É propriamente a subversão que tentaremos definir”[7].
Hegel é a ferramenta utilizada por Lacan para tirar a psicanálise do atoleiro da egopsychology[8]: “[…]o serviço que esperamos da fenomenologia de Hegel […] é o de marcar ali uma solução ideal, a de, por assim dizer, um revisionismo permanente, no qual a verdade está em constante reabsorção naquilo que tem de perturbador, não sendo em si mesma o que falta na realização do saber”[9].
O Aufhebung hegeliano implica um processo e ao mesmo tempo três acepções: negar, conservar e elevar[10] – e foi traduzido por suprassunção em nossa língua. Lacan refere-se ao Aufhebung, fundamento do saber hegeliano, como logicizante, indicando a razão de ele ser, neste momento, a referência para esclarecer o que interessa: “Se conduzíamos o sujeito a algum lugar, é a uma decifração que já pressupõe no inconsciente esta espécie de lógica em que se reconhece”[11] – trata-se de se opor, portanto, a uma naturalização do inconsciente ou às tentativas de integrá-lo a uma teoria do conhecimento, reafirmando-o estruturado como uma linguagem.
Em Hegel, a negação é o princípio vivificante, aquele que estimula, move e anima o próprio sistema. Ela não está fora do ser negado, mas no próprio ser, considerando os limites de sua natureza ou em suas relações – “o ser que representamos como negativo não é puramente um ser negativo, mas é um ser negativo e afirmativo ao mesmo tempo – é um ser concreto”[12]; a negação, portanto, não deve ser tomada como um elemento acidental ou estranho, mas como um elemento necessário e integrante.
Aufhebung é a palavra dialética de Hegel, tal como lembra Jean Hyppolite[13], e é retomada por Freud a propósito de suas elaborações acerca da Verneinung. Está referida por Lacan a propósito do falo: “signo da latência com que é cunhado tudo que é significável, a partir do momento que é alçado (aufgehoben) à função de significante”[14].
A dialética é afins ao significante uma vez que este comporta a propriedade da negação por excelência, permite combinatórias, e que se diga algo e ao mesmo tempo o seu contrário – no entanto, isto é aplicável especialmente ao significante enquanto unido a seus efeitos de significação[15]; a dialética hegeliana nestes termos se mostrará alheia à operação analítica[16].
O grafo do desejo evidenciará que, ao contrário de uma realização infinita que poderíamos supor ao sujeito hegeliano – aquele “sujeito consumado em sua identidade consigo mesmo”[17] -, não somente há a ausência de uma inscrição (sujeito como falta-a-ser), como o sujeito do inconsciente será situado por meio do corte da cadeia significante – “único para verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade no real. Se a linguística nos promove o significante, ao ver nele o determinante do significado, a análise revela a verdade desta relação, ao fazer dos furos do sentido os determinantes de seu discurso”[18] – enfatizando-se, uma vez mais, que a psicanálise é uma experiência com a palavra, única maneira de tocar o real que lhe concerne[19]; e a hiância, o que há de mais real no inconsciente.
Se a psicanálise funda-se com o conceito de representação, necessário para situar o elemento material do inconsciente, o psiquismo, no entanto, “fracassa ao representar a pulsão como causa do sexual – há um hiato, resta uma falha entre a representação faltante e a que substitui”[20]. O aparato psíquico proposto por Freud carece de algo para representar esta hiância, há o esforço para dar sentido, tal como escreve Cottet: “Há um furo entre a pulsão (a excitação corporal) e sua representação psíquica: Freud chama “inconsciente” o trabalho de substituição que suplanta um impossível de pensar”[21] – disto depreende-se que a representação somente pode ser parcial, uma vez que somente pode ser representado aquilo que se presta a uma tradução metafórica[22].
E Lacan busca uma solução a este impasse, uma vez que pode ler, a partir do seu “inconsciente estruturado como uma linguagem”, esta hiância no próprio inconsciente freudiano; impasse que se traduz pela pergunta que efetivamente interessa à experiência analítica: como a palavra pode tocar o real da pulsão? Como dar tratamento ao gozo heterogêneo à linguagem?
Lacan escreverá a pulsão como demanda ($ ◊ D), ou seja, em termos de uma cadeia significante, estabelecendo, na escritura do seu grafo do desejo, um paralelismo entre fala e pulsão[23] – como demanda, a pulsão é exigência, reivindicação, podendo, desta maneira, ser atribuída ao campo da linguagem.
No entanto, no grafo há algo essencial: será em articulação com a pulsão que Lacan escreverá um novo ponto de basta: S(Ⱥ), indicando que “a pulsão tem outro vocabulário”[24]; mesmo tentando fazer da pulsão uma fala, Lacan proporá que o sujeito, a partir da pulsão, “é designado por uma localização orgânica, oral, anal”. E esta designação “satisfaz à exigência de estar tão mais longe do falar quanto mais ele fala”[25] – a pulsão sendo, portanto, apresentada como um outro tipo de enunciado para demonstrar que o “sujeito não tem nenhuma ideia de que, na pulsão, ele fala”[26]. Assim, “no nível da pulsão, o Outro da fala, o Outro do saber, o Outro da linguagem” está ausente[27] – o que não deixa de produzir à primeira vista um paradoxo mediante a proposição da pulsão como cadeia significante.
E Lacan, mesmo assim, avança em seu próximo passo: inserir o gozo neste sistema, na mesma dialética que o desejo; para tanto, recorre ao complexo de castração. E por que este é o artifício? A castração permitirá tomar o gozo na vertente da interdição, ou seja, a partir de uma problemática edipiana[28]. Desta maneira podemos entender que ao falo está predestinado dar corpo ao gozo[29] na dialética analítica, como sublinha Miller: “trata-se de o falo dar ao gozo uma significação muito precisa, uma significação de transgressão, correlativa à interdição”[30]. E esta é a solução lacaniana uma vez que Lacan atribui ao falo simbólico a propriedade de ser o significante do gozo impossível de negativar – o desafio torna-se, então, fazer entrar este elemento em um sistema todo baseado na negação[31] .
Esta indicação de Miller, quando encontrada, tal como estes achados inesquecíveis, foi o que iluminou o texto e as várias passagens onde os termos negar/negativizar/recusar/alcançar estão presentes. O que visa, afinal, esta invenção lacaniana ao se apropriar da negação tal como vislumbrada na dialética hegeliana? “Negar as categorias imaginárias a fim de lhes dar seu estatuto sublimado no simbólico”[32] – ou seja, nega-se para que, suspenso, algo seja elevado a outra coisa posteriormente, conservando em si a própria negação. Na até então sempre enigmática frase: “A castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser alcançado na escala invertida da Lei do desejo”[33] que finaliza o texto, podemos ler, com Miller, a própria dialética: é necessário dizer não ao gozo (aquele dito pelo Outro) para que o gozo possa posteriormente ser alcançado – fora do domínio do sacrifício fálico. Importante ressaltar que é a propósito do gozo, tal como o grafo indica, que Lacan escreve a falta do significante no Outro. No entanto, será somente com seu último ensino, que retirará o gozo da dialética interdição-permissão ao propô-lo como um acontecimento de corpo; a castração será a castração lógica: o fato de não se poder manter todos os significantes juntos[34].
Ler Lacan com Miller, como sabemos, produz entusiasmo e o desejo de transmitir os pequenos achados e as próprias conjecturas, mesmo se já notadamente ditos e escritos – efeito próprio à transferência de trabalho. E neste percurso, estando à busca de Subversões, tema da Jornada Fora da Série da EBP- Seção São Paulo neste inusitado 2020, concluo que Lacan, na valiosa empreitada de restituir e elevar o lugar da descoberta freudiana, foi digna e apaixonadamente subversivo.