#06 - OUTURBRO 2023
Um sorriso para Lia1
Retrato de Madame Matisse (1905), Henri Matisse
Iordan Gurgel
AME da EBP / AMP
“a cura de crises paranoicas residiria não tanto numa solução e correção das ideias delirantes, quanto numa retirada delas da catexia que lhes foi emprestada”[2].
Se uma das possibilidades de tratar uma psicose passa por esta indicação de Freud, por que não pensar que o humor pode bem servir a este propósito?
Para atender o pedido de escrever um texto sobre o riso, tema das Jornadas da EBP-SP, optei em tomar a psicose como referência e demonstrar, via um caso clínico, a estabilização que se produziu a partir de um efeito cômico de um significante, tendo como resultado a construção de um sinthoma. Se trata de tomar o humor como estratégia de estabilização de uma psicose.
Freud dizia que para se entender um chiste e para que esse possa produzir o riso é necessário compartir os mesmos códigos para que se possa distinguir o sentido do não-sentido e, assim, após um momento de certo espanto, o riso aconteça. Paradoxalmente, poderíamos questionar se esta concepção se aplicaria também à psicose. Encontramos uma luz em Freud, que nos dá uma direção para o tratamento das psicoses: ”com as ideias de perseguição há um sofrimento que é atenuado – há uma diminuição no gozo que aí prevalece – com o riso que alivia o eu”[3]. Se trata aqui de aliviar o retorno no real daquilo que foi foracluido, uma tentativa de saber fazer com a inadequação da função paterna e chamar atenção do sujeito psicótico para a realidade. A ideia é que o psicótico, que não teve acesso ao simbólico – e, justamente por isso, dá testemunho de um encoberto a decifrar – por estar fixado em uma posição que o impossibilita de restaurar o sentido, possa compartilhar com o outro[4], quando, após o momento de sideração, advenha o efeito sujeito, consequente a um aporte de sentido ao não sentido. Vejamos a clínica:
Em um dia de inverno a paciente chega com roupa de verão. A analista pergunta: por que você não usa um casaco? Você não está com frio? A paciente responde: com o que você quer que eu compre? Você sabe que eu sou pobre! A analista sorrindo diz: você não tem prata para comprar um casaco? A intenção era indicar que ela pertencia a uma família rica com alto poder aquisitivo. Ela responde secamente: você sabe que eu sou uma sovina. Aqui se introduz no tratamento o riso da analista ao provocar algo da ordem de um chiste.
O significante sovina, que aparece reiteradas vezes no discurso de Lia, causa graça na analista, pelo absurdo da situação. Esta resposta, sutil e chistosa abre caminho para a injeção de sentido. A intervenção, no primeiro momento, provoca em Lia desconcerto e temor. Ela não entende o porquê da pergunta e do riso e, por isso mesmo, reage ao sem sentido da intervenção da analista, que faz uma manobra transferencial, dando-lhe uma explicação – diz que sovina não é antônimo de rica – para dar conta do deslizamento provocado ao dito: sou sovina. A intervenção visava apontar a foraclusão da riqueza familiar.
Em um segundo momento, se verifica uma mudança no modo de falar de Lia, que passa a utilizar piadas sobre sua qualificação de sovina. Nesta direção, o significante sovina se configura como uma marca que clama por sentido, e a analista, com o riso, aponta a possibilidade de uma outra leitura pelo sujeito, abrindo caminho para partilhar um sentido.
A paciente estava petrificada no significante pobre e a manobra transferencial se centrara em buscar uma possibilidade ortopédica de separação deste significante e de lograr, mediante um cauteloso jogo pobre-sovina-rica, um certo deslizamento. Foi levando em consideração esta condição que a analista, no lugar do Outro, começa a operar jocosamente sobre o significante sovina com o significante rica, criando um falso antônimo.
O sorriso da analista e sua proposta de humor produzem certo desconcerto em Lia, operando como uma sanção simbólica que modifica a imagem torturante que ela tinha de si mesma – ser sovina. Há um movimento de articulação do imaginário e do simbólico consequente do olhar e da voz do Outro, que faz limite ao real invasivo, dando testemunho da presença da analista.
Então, se observa que no primeiro momento a paciente teme, mas logo em seguida, brinca. Há uma vacilação naquilo que a aterrorizava quando confrontada com o outro – sua certeza sobre ser pobre – e se produz uma mudança de sentido do significante sovina, moderando o gozo. Por exemplo, ela consegue realizar pequenos gastos e desfrutar de férias. Aqui, na linguagem freudiana podemos dizer que houve “uma retirada da catexia que lhes foi (anteriormente)…emprestada”[5], o que proporcionou um certo apaziguamento frente a seu tema mais frequente: o pressentimento da morte, direcionando-a na construção do sinthoma.
Neste contexto, é necessário destacar que isso só foi possível graças à transferência, que possibilitou a analista, considerando a cena caricata do ‘estádio do espelho’ e a relação eu-eu, propor o sorriso e o humor como equivalentes do primeiro contato com o Outro primordial – a mãe – acreditando na ‘imagem jubilosa’ (teorizada por Lacan), como sustento desta manobra transferencial. A isso se agrega o aporte lacaniano que considera, ao se referir ao desenvolvimento da criança, que “antes mesmo da fala, a primeira comunicação verdadeira… para além daquilo que vocês são diante dela como presença simbolizada, é o riso – antes de qualquer palavra, a criança ri”[6].
A hipótese freudiana do riso é consequente às primeiras experiências precoces da criança: o esgar característico do sorriso, a torção dos cantos da boca, “aparecem primeiro quando a criança de peito após ser saciada e satisfeita, abandona o seio e cai adormecida”[7] e que, só depois, se associa aos processos de descarga. Assim, seguindo Freud[8], o riso acontece quando uma cota de energia psíquica se torna inutilizável e esta energia pode encontrar descarga livre e, então, encontrar prazer.
Há muitas perguntas que podemos formular sobre o caso; por exemplo: como operou o sorriso da analista? Como explicar que haja estabelecido com sua analista um código particular, onde ela se permite brincar? Não temos respostas prontas, tampouco podemos usar este caso como uma direção padrão, mas podemos concluir que, neste caso de esquizofrenia, houve um efeito de estabilização a partir da intermediação do cômico da palavra.
Uma hipótese para entender este caso é evocar novamente Freud, quando se refere a uma modalidade de chiste, cujo prazer não se origina do livre uso das palavras e pensamentos e sim do nonsense, que vai além do jogo de palavras e se caracteriza pelo absurdo – sua força está em suspender e desafiar a razão e o juízo crítico e assim obter maior prazer pela suspensão da inibição. Freud não diz, mas podemos deduzir que aí se aplica a função do riso na psicose. Esta condição nonsense adquire a função de aumentar a atenção para o que se diz e desconcertar o ouvinte, podendo provocar ou acelerar a compreensão e possibilitar um outro “juízo contido no pensamento”[9].
E assim, o riso funcionou para a estabilização de Lia!