Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
Subversões do Pai
Gustavo Menezes (EBP/AMP)
Em Subversão do sujeito, Lacan afirma que a castração é “a mola mestra da própria subversão”[1], o que a articula à função da causa do desejo, uma vez que “tanto a subversão do sujeito quanto a dialética do desejo abarcam a função do objeto”[2]. Ao recorrer à lógica da perversão, veremos em que perspectiva Sade é “o passo inaugural de uma subversão”[3] da qual Lacan tenta definir.
Normatização do desejo
Interrogando o mito freudiano, Lacan parte da questão de onde se ordena a função do objeto do desejo. O Pai morto, estando no princípio da Lei, faz da interdição do incesto a lei fundamental. Aí se encontra o desejo essencial. Uma vez que há uma falta na estrutura, não há Outro do Outro[4], o Pai vem em seu lugar como representante da Lei refrear o capricho materno. Se desejo e Lei são a mesma coisa, é por possuírem seu objeto em comum. Uma vez proibido esse objeto, a própria lei impõe desejá-lo, tornando-se o desejo, desejo do Outro. Há aqui uma simetria: por um lado a Lei fará a mediação do desejo, o normatiza e “o situa como desejo”[5]. Inversamente, esse desejo aparece como autônomo da própria Lei, uma vez que a Lei dele se origina.
Por trás da metáfora paterna, “esconde-se a metonímia da castração”[6] e se “cria a falta pela qual se institui o desejo”[7] submetido à Lei, uma vez que, enquanto incidência negativa, o complexo de castração introduz o objeto falo (-φ). Estando o desejo “agarrado à proibição”[8], o neurótico deseja “segundo a lei”[9], estando o objeto desejado no campo do Outro. O desejo é uma defesa[10] na medida que o gozo que se encontra do lado do Outro é proibido ao ser falante. Assim, a castração faz com que “o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo”[11]. Mesmo recusado pela Lei, o gozo flui pela própria fala, este é “impossível de negativizar”[12]. Ao ser vetorizado pelo Pai, há uma Lei no desejo, ou seja, Lei e desejo[13] convergem. A verdadeira função do Pai é “unir (e não opor) um desejo à Lei”[14].
O desejo é regulado pela fantasia, essa é seu estojo[15] que “faz crer que o objeto do desejo é um objeto visado”[16], agalmático, e que escapa ao sujeito, uma vez que, inserido na metonímia da fala, está sempre alhures. “Máquina para transformar gozo em prazer”[17], a fantasia está no ponto de articulação entre desejo e gozo, é o que “torna o prazer apropriado ao desejo”[18].
Ao longo dos anos 1960, Lacan construirá uma nova relação do significante com o gozo a partir do objeto a. A função do objeto enquanto causa se refere à lacuna que separa desejo e gozo. Dessa maneira, Lacan irá extrair o “objeto causa do desejo do engodo da fantasia”[19]. Enquanto causa do desejo, o objeto a é aquele em torno do que gira a pulsão e “fica na posição de funcionar como lugar de captura de gozo”[20].
Subversão libertina
Desde Freud, o desejo do qual tratamos é proveniente das relações paradoxais por si mesmas. Com a perversão, por “acentuar a função do desejo no homem”[21], Lacan irá interrogar “a fecundidade da psicanálise”[22]. Na fantasia perversa (a◊$), o que é visado no desejo é a divisão subjetiva no nível do objeto. O sujeito ali determina a si mesmo como objeto, ele se resume a um a, fetiche negro[23]. O fetiche é “condição para que o sujeito sustente seu desejo”[24], ou seja, o fetiche não é propriamente o objeto visado, intenção do desejo, mas é necessária sua presença para que o desejo seja causado.
Diferente do neurótico que não quer “sacrificar sua castração ao gozo do Outro”[25], o perverso, em sua fantasia, “faz-se instrumento do gozo do Outro”[26]. Na perversão haveria uma tentativa de preencher a falta que “torna o Outro inconsistente”[27], e que o perverso acredita ser incompleto, ao restituir “o predomínio, no lugar privilegiado do gozo, do objeto a da fantasia, que ele coloca no lugar do Ⱥ”[28]. Ao se identificar ele mesmo com o objeto pulsional, o perverso crê no Outro livre da castração e tenta “evitar a hiância radical, na ordem do significante, representada pela castração”[29]. Ao depositar no Outro um suposto-gozar, o perverso “está do lado do fato que o Outro existe”[30] sem barra. Tentativa de garantir a conjunção do corpo e do gozo sem perda, se desmente o feminino como não-todo.
“Utopia do desejo”[31] sustentada pela fantasia, não há acesso ao gozo do Outro, a “mãe continua proibida”[32]. Mas mesmo ali, “aquilo que aparece externamente como uma satisfação irrefreada é uma defesa, bem como o exercício de uma lei, na medida em que esta refreia, suspende, detém o sujeito no caminho do gozo”[33]. Seu desejo enquanto vontade de gozo[34] fracassa, se depara com seu limite “no exercício mesmo do desejo”[35].
Portanto, com a lógica perversa, o que Lacan subverte é o lugar do Pai e a relação deste com o objeto do desejo[36]. A causa do desejo não é a interdição, não é a lei do pai edípico. É o objeto a. Há ali uma disjunção: de um lado, o objeto interditado e visado pelo desejo, do outro, o objeto causa do desejo. Na perversão “o desejo se dá como aquilo que serve de lei, ou seja, como uma subversão da lei”[37].
Em Freud há “um singular equilíbrio da Lei e do desejo”[38]. A perversão “representa o ato de pôr contra a parede a apreensão ao pé da letra da função do Pai”[39]. Segundo Laurent, na perversão há um acesso direto à satisfação pulsional, sem “passar explicitamente pela castração e seu agente paterno”[40]. Diferente do neurótico, o perverso não se atém às barreiras do objeto, ele “se aperfeiçoa nisso”[41], o que nos abre para os modos de gozo.
Clínica das versões
Já em Subversão do sujeito, Lacan indicava que o Édipo “não pode manter-se indefinidamente em cartaz”[42]. Assim, abre-se uma lógica do tratamento para além do Pai e do objeto visado no desejo. Lacan acentuará mais o objeto de gozo e dará um passo em direção aos Nomes-do-Pai, rebaixando a função do NP único até “fazer dele nada mais que um Sinthoma”[43].
Miller ressalta que ao abordar o Édipo pela metáfora paterna, a questão que se coloca são os significantes, sobretudo da tradição, que vêm batizar o gozo de cada um. Porém, o Pai, enquanto operador da simbolização, “se choca contra o objeto pequeno a”[44], justamente por este último não ser nomeável, irredutível à simbolização: “o objeto a vale como o fracasso do Nome-do-Pai”[45].
Do Pai morto à “versão em direção ao pai”[46], no último ensino de Lacan o pai é aquele que transmite a causa de desejo em sua particularidade. Na père-version, conserva-se algo da metáfora paterna ao mesmo tempo que há uma inscrição singular de gozo que foge à universalização. A perversão caminha lado a lado com a variedade, generaliza a operação da metáfora paterna acentuando “o caráter muito pouco típico da norma masculina”[47]. Por isso, para Lacan, na perversão há “uma subversão da conduta apoiada num saber-fazer”[48] gozar. Mesmo que desoriente, o desejo nos serve como bússola e, por muito tempo, ele apontava para o Pai. Édipo é a forma normalizada do desejo, mas existem outras soluções patogênicas.
Subversões
A era do Pai “segundo a tradição”[49] ficou para trás. O discurso da ciência e do capitalismo prevalecem e remodelam a estrutura. Se “o gozo se ordena e pode se estabelecer como rebuscado e perverso”[50], Lacan aponta para o uso que disso se faz no mercado dos modos de gozar. Estamos, como aponta Laurent, na “democratização das práticas perversas na civilização”[51].
Na era da pornografia[52], há uma reivindicação de liberdade. Se a liberdade de desejar “resulta ela querer também que a lei seja livre”[53], reconhecer sua máxima levaria ao “egoísmo da felicidade”[54], pois “há uma moralidade”[55]. Crítica a toda norma, dela se desdobra “uma norma que se coloca como uma espécie de utilitarismo do gozo, que se une ao utilitarismo da civilização da ciência”[56].
Por outro lado, vemos uma conjunção de fundamentalistas (e até psicanalistas) em prol do Nome-do-Pai frente aos avanços da ciência. Se Lacan sublinha o caráter de protesto que a perversão traz, é no sentido que essa se coloca contra tudo “o que o sujeito sofre no nível da identificação”[57]. “A perversão, entendida em sua forma mais geral como o que, no ser humano, resiste a toda normalização”[58].
Esse valor contestatório da perversão nos coloca uma questão quanto à nossa ética e frente as normas sociais. O desejo do analista é a subversão própria da Psicanálise “na medida em que este aponta um além do bem-estar”[59] e demonstra que, se há gozos no plural, como sublinha Laurent, a subversão lacaniana não parte de “uma abertura do campo de um direito ao gozo, mas do fato que a psicanálise tem a ver com o gozo como imperativo”[60]. Não há gozo último que apague definitivamente a angústia: goze como puder, “mas como está na civilização da ciência, é necessário que goze mais, é necessário que seja responsável de sua maximização”[61]. Para cada falasser, devemos perguntar se se trata de sua perversão particular ou se trata de uma perversão permitida no “empuxo da época do gozo”[62]. Não perder de vista nosso “diamante de subversão”[63].