Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
Subversões do corpo na Arte
Marisa Nubile (Associada ao CLIN-a)
Na apresentação da Jornada 2020 da EBP-SP, Valéria Ferranti lembrou que o tema Subversões surgiu na Jornada anterior, quando recolheram-se as invenções, sempre singulares, frente à solidão estrutural do ser. E é aí, diz ela, que “o único encontra o subversivo” na medida em que a invenção, radicalmente única, rompe com “o instituído pelo discurso do mestre”[1].
A arte nos diria algo sobre esse processo de criação única e subversiva? Se subversão supõe “fazer cair”[2] o estabelecido, em que medida a criação artística atende tal premissa?
Em Homenagem a Marguerite Duras, Lacan ressalta que a arte recupera o objeto[3], objeto de gozo, de maneira que podemos usar tal recuperação como critério para saber se estamos ou não diante de uma obra de arte. A partir desse apontamento, Brousse[4] propõe um discurso do artista e da arte, avesso ao do mestre e da universidade, em que é o objeto a – desvelado na obra – que conduz a um saber. “A arte e o artista, portanto, não operam a partir do significante mestre; a esse respeito, eles são sempre e resolutamente subversivos, mesmo quando têm ar acadêmico”[5].
Diante dessa tese, talvez possamos comentar a famosa escultura de Moisés[6], do renascentista Michelangelo, pois algo nela foi capaz de despertar uma “inquietante estranheza” no sujeito Sigmund. Ele conta que, quando estava em Roma, muitas vezes, ia à igreja admirar a estátua e se sentia ameaçado pelo olhar do profeta. No esforço de entender o enigma que ela lhe provocava, seu ensaio de 1914[7] recaiu sobre “divinos detalhes”: a posição das tábuas da lei, a posição da barba, a postura da mão… Assim, embora seja uma escultura em que há a presença do S1, pois foi feita a partir da demanda do Papa e retrata um Moisés bíblico, como se trata de uma obra de arte, há algo a mais nela, um objeto a que conduziu Freud a experenciar aquilo que, subversivamente, está além do visível, além da imagem, além da encomenda do Papa.
Para fazer um contraponto a essa experiência estética de Freud frente a uma escultura que obedece aos moldes clássicos, trago outro aspecto sobre aquilo que podemos aprender com a arte.
Como “o artista sempre nos precede”[8], ele também nos ensina as inovações no modo de gozar de sua época, diz Brousse[9]. Segundo a autora, durante muito tempo o objeto a foi tomado sob a forma de agalma, e a arte expressou isso através da estética do belo. Não se pode furtar à constatação de que a estátua de Moisés, por exemplo, exibe um corpo majestoso e imponente.
O que acontece na arte contemporânea? Para começar, ela rompe com essa estética do belo e, ao ultrapassar tal barreira, outros limites também são transpostos, mudando radicalmente a função e as modalidades de arte. Rompe com a concepção do objeto sob a forma agalmática e escancara o objeto sob a forma de um objeto comum como os ready made de Duchamp[10] ou como dejeto, como a máquina de fazer excrementos de Damien Hirst[11]. A forma corporal tão “adorada” pelo humano é esfacelada, e o que vemos são experiências com pedaços de carne, fotos, raio X, exames clínicos, cabelos, unhas, enfim, parcialidades que desvelam o corpo orgânico fragmentado, sem o véu de uma imagem corporal.
Assim, ainda no contraponto do grandioso monumento de Moisés de Michelangelo – talhado em mármore e exposto há séculos na não menos monumental tumba do Papa Júlio II -, trago a exposição de corpos fluidos e efêmeros feitos de gelo. Trata-se do Monumento mínimo da artista plástica brasileira Néle Azevedo, uma obra feita para viver e morrer em cidades como Tóquio, Paris, Berlim, Santiago do Chile e São Paulo, alguns dos lugares em que a instalação foi realizada.
Embora também tenha sido exposta em espaços fechados e com diferentes propostas, foi na cidade que as esculturas em gelo ganharam uma dimensão maior. A artista explica que, nessas ocasiões, a confecção dos moldes conta com a participação de voluntários e que, no dia da exposição, estimula os transeuntes a ajudar no arranjo das peças no espaço público. Assim, materializa a ideia já apregoada por Duchamp de que o espectador faz a obra ou, no mínimo, ele é sempre coautor.
Longe de exaltar os feitos humanos, os frágeis esboços questionam nossa relação com o tempo e o espaço nas urbes. Como o corpo habita a corpo do mundo? Suas indagações a levaram a colocar, dentre as esculturas de gelo, uma feita com seu próprio sangue: “arte como emergência”. O gelo que derrete, a água e o sangue que escorrem rua abaixo…. dejetos que, segundo a artista, marcam o desmantelamento social e político dos tempos atuais.
Deixo, com Néle Azevedo, a palavra sobre as subversões promovidas por sua obra: “Propus o Monumento Mínimo como um antimonumento, subvertendo uma a uma as características dos monumentos oficiais. No lugar da escala grandiosa, largamente utilizada como ostentação de grandeza e poder, propus uma escala mínima. No lugar do rosto do herói da história oficial, uma homenagem ao observador anônimo, ao transeunte, numa espécie de celebração da vida, do reconhecimento do trágico, do heroico que há em cada trajetória humana. E no lugar de materiais duradouros, propus as esculturas em gelo que duram cerca de trinta minutos. Elas não cristalizam a memória, nem separam a morte da vida, mas ganham fluidez, movimento, e resgatam uma função original do monumento: lembrar que morremos”[12].
Mais recentemente, a artista desenvolveu outro projeto intitulado Estado de suspensão usando ainda os moldes humanos fundidos em gelo, mas em tamanho maior e suspensos por um fio de nylon. Nessa instalação, a artista traz uma inovação interessante: recolhe a água do derretimento em bacias que, ao caírem, produzem um som, propositadamente, amplificado. A ideia é que o ruído perturbe e funcione como um corte no som ao redor de maneira que nos acorde!
Essas exposições foram feitas antes da pandemia. Hoje, impossibilitados de participar de eventos em que haja uma interação de corpos vivos, o “estado de suspensão” dos corpos talvez faça ressoar, ainda mais, o “estado” em que vivemos. Junto com confinamento, mudanças de hábitos e incertezas de todos os tipos, assistimos a um derretimento, uma queda (para remeter à etimologia da palavra subversão) da vida que tínhamos. Tudo está em questão, para o melhor e o pior.
O que fazer com as gotas recolhidas? Que artifícios o corpo vivo de cada um e o corpo social criarão?