Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
SUBVERSÕES
Maria Helena Barbosa (EBP/AMP)
Com clareza e síntese, Valeria Ferranti introduz o tema das Jornadas, ao dizer que, “Da pena Freudiana, o inconsciente perdeu seu caráter de adjetivo e surge como conceito que abala o narcisismo da humanidade e subverte a certeza cartesiana, afinal o eu não é senhor em sua casa. ‘Penso onde não sou, sou onde não penso’: afirmação onde localizamos, com Lacan, o sujeito da ciência moderna, fruto da revolução copernicana, subvertido”[1].
Em sua provocação, Daniela de Camargo Barros Affonso cita Miller, em Lacan Elucidado, contando que “Lacan, que amava a palavra subversão, começou por subverter a obra freudiana. ‘O caráter próprio da criação de Lacan na psicanálise tem algo de subversivo’, diz. O desejo de Lacan tem a ver com a subversão criativa da autoridade. ‘Freud lhe era familiar, sua familiaridade de leitor foi, precisamente, o que lhe permitiu a subversão criativa da obra freudiana’”[2].
Por sua vez, Paola Salinas desenvolve qual foi o emprego clínico que Lacan fez deste termo no texto A subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente. Destaca a subversão do sujeito em relação ao saber, o sujeito como um efeito de corte na cadeia significante e a formulação lacaniana “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, que se enlaçam na afirmação de que o “inconsciente é o discurso do Outro”[3].
Niraldo de Oliveira Santos recupera “uma passagem do Seminário 20, mais ainda, onde Lacan retoma o tema da revolução coperniciana para questionar a condição subversiva da psicanálise desde Freud: ‘A subversão, se ela existiu em algum lugar e em algum momento, não é ter-se trocado o ponto de rotação do que gira, é ter-se substituído o ‘isso gira’ por um ‘isso cai’”[4].
São empregos distintos da mesma palavra, todos articulados à psicanálise.
Valeria destaca o efeito subversivo que a psicanálise fundada por Freud introduziu na civilização, numa referência às três feridas narcísicas – Copérnico, Darwin e Freud, apresentadas por Freud artigo de 1916, Uma dificuldade no caminho da Psicanálise e onde se localiza a famosa frase: “o ego não é o senhor da sua própria casa”[5]. Há uma nova razão desde Freud.
Daniela apresenta, com Miller, que Lacan em sua leitura da obra freudiana também a subverte. É o que ele explicita em seu curso O lugar e o Laço, ao dizer que, “em seu primeiro ensino Lacan dedicou-se a fazer uma tradução do aparato freudiano, uma releitura, uma nova língua, mais rigorosa e reduzida, que se precipitou em fórmulas operatórias que possibilitaram a transmissão dos fenômenos da clínica, em nossa comunidade”[6].
Já Paola aborda o emprego clínico do termo subversão utilizado por Lacan para “demonstrar a função do sujeito, tal como instaura a experiência freudiana”[7]. Lacan, neste texto de 1960, procede a uma releitura da obra freudiana utilizando a linguística moderna. Apresenta o sujeito em sua relação ao desejo sendo o Complexo de Édipo “a mola mestra da própria subversão”[8].
Niraldo retoma as feridas narcísicas da humanidade, agora com o viés clínico que o seminário mais ainda introduz e onde a subversão não é mais a subversão do sujeito tal como trabalhada no texto anterior de Lacan; trata-se mais de sua queda – “O ponto vivo (…) não há nada”[9].
Valeria e Daniela trouxeram o caráter subversivo da psicanálise frente à civilização. No entanto, Daniela se pergunta se ainda ela porta “algo de sua ‘virulência’”. O final de sua provocação indica Lacan apontando que a psicanálise de Freud foi engolida pelo american way of life.
Lacan é profético em sua interpretação. Vimos a psicanálise ser apropriada pela psicoterapia de tal forma que, “na atualidade de toda irrupção de real convoca uma palavra que forneça sentido, às vezes com urgência”[10]. Frente aos traumatismos da época vemos a oferta de escuta ser oferecida de forma indiscriminada e a priori, antes mesmo de qualquer demanda se colocar e no intuito de tamponar o real. “Entramos agora em uma era da prevenção generalizada do traumatismo”[11].
Paola e Niraldo, por suas vezes, trouxeram o termo subversão em seu emprego clínico em tempos bastante distintos no ensino de Lacan.
O texto de 60 traz a relação do sujeito com o saber inconsciente. O simbólico estruturado como uma linguagem promove um rebaixamento do sentido entendido como significado – no lugar, o fora-de-sentido. O real é um real fora-de-sentido, do sentido entendido como significado e, enquanto tal, Imaginário. Esta distribuição dos elementos em jogo numa análise e na teoria psicanalítica, repartidos nos três registros, a partir do simbólico, costumamos chamar de primeiro ensino de Lacan.
Já no Seminário mais ainda, Lacan está iniciando o que será a transmissão do seu último ensino, centrado no nó borromeano, marcando uma mudança e ruptura com o paradigma do inconsciente estruturado como uma linguagem, do primeiro ensino. O campo lacaniano é o campo do gozo: “[…] se há algo a ser feito na análise é a instituição desse outro campo energético que é o campo do gozo”[12]. O sujeito passa a ser tomado como arremedo, aparência, semblante. Além do rebaixamento de sentido, há um rebaixamento da palavra e do significante enquanto suporte fônico do sentido. O saber é desqualificado pelo rebaixamento do sentido e da palavra – não há discurso que não seja do gozo.
Então, como localizar a “subversão” no último ensino de Lacan?
A subversão mais evidente é a subversão que o último ensino, em si, promove. Lacan vai mais além da releitura que fez da obra freudiana. Com a manipulação do nó, Lacan “inaugura algo totalmente diferente, um regime de pensamento completamente distinto concernente à psicanálise”[13].
Qual o lugar da psicanálise na civilização contemporânea?
Miller, em O Lugar e o Laço, aponta qual foi a solução de Lacan, ao recuperar sua frase: “A cada um lhe cabe reinventar a psicanálise”[14]. “Para Lacan, fazer existir a psicanálise por meio da lógica, não da história (…) A Lacan interessou fazer ex-sistir mediante o que agora chamo sua lógica, por seu necessário; despejar sua essência, pois aqui a ex-sistência da análise depende de sua essência. (…) Se baseia no laço estabelecido entre psicanálise pura e o ensino da psicanálise”[15].